A lição da Nova Zelândia. O que pode ensinar Jacinda Ardern aos outros líderes políticos?
No panorama da política mundial, animadores ventos novos sopram da Nova Zelândia a partir da pessoa e do governo de Jacinda Ardern (*), a jovem primeira-ministra do país. Não à toa, apesar da pandemia e da crise geral, ela acaba de ser reeleita com estrondosa vitória nas eleições. Os demais líderes do mundo deveriam prestar prestar mais atenção ao trabalho e à postura de Jacinda. Ela é o melhor exemplo de futuro que se materializa no presente.
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Por: Rui Tavares Guedes. Fonte: Courrier Internacional (Lisboa)
A economia da Nova Zelândia encolheu 12,2% no segundo trimestre, em comparação com os primeiros três meses do ano – uma percentagem superior à média registada nos países da OCDE. O país perdeu também uma das suas principais fontes de receitas – o turismo – devido ao fechamento de fronteiras. As suas exportações, muito dependentes da procura chinesa, também diminuíram. O desemprego continua a aumentar.
Em tempos “normais”, uma situação econômica com esta magnitude seria, com toda a probabilidade, o anúncio de um desastre para qualquer primeiro-ministro que se apresentasse a eleições.
Como sabemos, não vivemos em “tempos normais”. E se os números econômicos podem ser assustadores já os indicadores da Nova Zelândia face à pandemia estão entre os melhores do mundo: menos de 1900 casos positivos, desde fevereiro, e apenas 25 mortes, num país com cerca de 5 milhões de habitantes.
No balanço entre os dois fatores, os eleitores neozelandeses não deixaram margem para dúvidas em relação ao que mais valorizam: Jacinda Ardern foi reeleita de uma forma histórica, com o seu Partido Trabalhista a recolher cerca de 50% dos votos e a garantir a maior maioria absoluta de que há memória no parlamento de Auckland, desde que a Nova Zelândia reformulou o seu sistema eleitoral em meados da década de 1990 (os resultados oficiais, no entanto, só serão conhecidos a 6 de novembro).
Quando um terrorista australiano matou vários muçulmanos no interior de uma mesquita na Nova Zelândia, Jacinda cobriu a cabeça com o véu islâmico e foi prestar solidariedade à comunidade dessa religião que vive em seu país. A população aplaudiu o gesto.
“A Covid-19 mudou tudo, incluindo antigas lealdades”, escreveu o jornal NZ Herald, poucas horas depois de serem conhecidas as primeiras projeções das eleições legislativas deste sábado, 17 de outubro, quando já ninguém tinha dúvidas acerca da dimensão da vitória de Jacinda Ardern. “O resultado desta noite confirma o que tem sido evidente desde que a Covid-19 foi detectada pela primeira vez na Nova Zelândia, em fevereiro: o povo confia em Ardern para liderar a Nova Zelândia perante os novos desafios”.
A força da empatia
O mais impressionante é que Jacinda Ardern conseguiu, apenas aos 40 anos de idade, tornar-se numa quase unanimidade nacional e numa personalidade de referência quando, há bem pouco tempo, era praticamente desconhecida.
Há três anos, em 2017, ela foi escolhida para liderar os trabalhistas apenas sete semanas antes das eleições e só chegou à chefia do governo, depois de ficar em segundo lugar na votação, graças a uma espécie de “geringonça” com o partido dos Verdes e com os conservadores e nacionalistas do partido Nova Zelândia Primeiro.
Os anos seguintes foram suficientes para cimentar a sua liderança, graças à forma como geriu a resposta aos ataques terroristas de Christchurch (a sua imagem, de véu, a abraçar uma neozelandesa muçulmana tornou-se icônica), à erupção do vulcão White Island e à pandemia – sem mencionar o nascimento do seu primeiro filho, pouco tempo depois de assumir o poder, para além de uma série de aparições públicas de grande impacto.
Num mundo cada vez mais dominado por personalidades populistas, de verbo autoritário e musculado, Jacinda Ardern fez a diferença com o seu discurso empático, mas firme, sem nunca esconder a compaixão pelos mais fracos e desprotegidos, chegando ao ponto até de apresentar o primeiro Orçamento de Estado, no mundo ocidental, em que se privilegiava o bem-estar da população e não o crescimento do PIB.
Conforme recordou o New York Times, Jacinda Ardern foi, nos últimos tempos, uma autêntica lufada de ar fresco na política internacional. A revista Vogue chamou-lhe a “anti-Trump”, enquanto o sempre circunspecto Financial Times a apelidou de “Santa Jacinda”. O próprio New York Times chegou também a escrever em editorial que “A América merece um líder tão bom quanto Jacinda Ardern”. (… e até eu me rendi a ela, confesso, num editorial da revista Visão , por causa da sua afirmação de que, afinal, pode haver vida para além do PIB).
Lições da pandemia
A singularidade de Jacinda acentuou-se ainda mais no início do ano, quando começaram a chegar as primeiras notícias sobre o novo coronavírus na China, lançando o alarme em todos os países da zona da Ásia-Pacífico (onde a Nova Zelândia se insere), ainda traumatizados com as experiências da SARS/MERS – ao contrário da Europa e das Américas, onde o vírus foi desvalorizado como uma ameaça distante e que seria pouco mais do que uma gripe.
Sabemos hoje uma parte do resto de uma história que ainda prossegue, mas, em abril, na revista Atlantic, Uri Friedman já alertava que se estava a viver um momento decisivo para todos os líderes mundiais: “A pandemia Covid-19 pode ser o teste mais importante à qualidade de governação, jamais vista. Cada governante do planeta enfrenta a mesma ameaça. Cada um reage à sua maneira, de acordo com a sua personalidade. E todos serão julgados pelos seus resultados”.
Num artigo assertivo e premonitório, o jornalista continuava: “A chanceler alemã, Angela Merkel, depende da ciência. O presidente brasileiro Jair Bolsonaro vira as costas à ciência. As conferências de imprensa diárias do presidente dos EUA, Donald Trump, são atos de circo, enquanto o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, não comunica nada, enquanto confina 1,3 mil milhões de habitantes.”
“Jacinda Ardern, a primeira-ministra da Nova Zelândia, abriu um caminho novo”, escreveu. “O seu estilo de governação, em momentos de crise, é baseado na empatia. As suas mensagens são claras, coerentes e, ao mesmo tempo, calmas e tranquilizadoras”. Em duas palavras: consegue transmitir emoção e eficácia.
Estilo descontraído
Entre as inovações introduzidas por Jacinda Ardern no combate à pandemia incluem-se as sessões de perguntas e respostas ao vivo no Facebook, em que ela, especialista em comunicação, conseguiu tornar tão informais quanto informativas.
Em certa ocasião, a 25 de março, quando a Nova Zelândia tinha acabado de entrar em confinamento total, ela apareceu em frente à câmera caseira de camiseta (daquelas que se usam em casa), e explicou que tinha acabado de colocar a filha na cama, e encetou um bate-papo informal com os seus compatriotas, dando diversos conselhos para tentarem ultrapassar a situação. Entre outras coisas, ela sugeriu que todos encarassem as pessoas com quem partilham a vida como se fossem a sua bolha e que, no exterior dela, se comportassem como se estivessem infetados.
Este estilo descontraído não a impediu de, quando necessário, decidir impor confinamentos férreos, apenas porque tinham sido detectados algumas dezenas de novos casos numa cidade – em claro contraste com o que se tem vivido na Europa, onde a ocorrência de centenas de novos infetados por dia passou a ser considerado normal.
Via própria
O fato é que a sua liderança permitiu à Nova Zelândia adotar um estilo de combate da pandemia “à asiática”, mas mantendo as regras das democracias ocidentais.
Embora beneficiando do fato de ser um arquipélago relativamente remoto, o país conseguiu identificar e isolar os focos de contágio, sem necessitar de intrusões na vida privada, como as que fizeram “escola” em Singapura, Taiwan ou Coreia do Sul.
O mais relevante é que, neste momento, vive-se um ambiente de relativa normalidade – quando comparado com o resto do mundo -, exemplificado pelos mais de 30 mil espectadores que, há poucos dias, assistiram, no estádio, ao desafio de rugby, em Wellington, entre a Nova Zelândia e os rivais australianos.
Por tudo isto, a vitória de Jacinda Ardern foi festejada em várias latitudes, tanto por políticos considerados de esquerda como de direita.
Entre as mensagens divulgadas, merece referência a que o Dalai Lama publicou no Twitter: “Felicito Jacinda Ardern pela vitória retumbante de seu partido nas eleições gerais da Nova Zelândia. Admiro a coragem, sabedoria e liderança, bem como a calma, compaixão e respeito pelos outros, que ela demonstrou nestes tempos difíceis.”
Alguém ainda tem dúvidas em relação às lições que Jacinda pode dar?
(*) Jacinda Kate Laurell Ardern, 40 anos, é uma política da Nova Zelândia, atualmente primeira-ministra de seu país. Integrando o Parlamento desde 2008, exerce ainda a função de líder do Partido Trabalhista desde 2017 e ainda foi líder da oposição por três meses antes de virar chefe de governo.
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