A história das santas cristãs

Mos juntas sobre o peito, olhar voltado para o alto, expresso de compaixo: assim que costumamos imaginar a figura das santas crists



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Por Luis Pellegrini

Mãos juntas sobre o peito, olhar voltado para o alto, expressão de compaixão: é assim que costumamos imaginar a figura das santas cristãs. Condicionados pela iconografia tradicional dos santinhos, das pinturas e estátuas sobre os altares, confundimos beatitude com santidade. Embora uma não exclua necessariamente a outra, um passeio pela história das santas mostra que as coisas nem sempre foram assim. Muitas santas pouco ou nada têm de beatas convencionais: ao contrário, mostram-se aguerridas, combativas, destemidas, apaixonadas, capazes inclusive de enfrentar os poderosos do seu tempo quando isso se fazia necessário para a defesa dos valores em que elas acreditavam. Este é o caso de Teresa de Ávila, a Primeira Doutora da Igreja (1515-1582), Catarina de Siena (1347-1380) e Ildegarde de Bingen (1098-1179). Usando o dom da palavra inteligente, elas enfrentaram reis, altos prelados e inclusive papas. Santas, sim. Mas, ao mesmo tempo, mulheres de personalidade forte. Doces e terríveis. Possuídas pelo amor a Deus. Mas capazes de desafiar a lei dos homens.

Essa mesma lei dos homens que, no passado, excluía as mulheres da vida pública e política, restringindo o seu papel social à simples função procriativa ou às orações intermináveis nas clausuras dos conventos. Na história da sociedade cristã essas restrições e preconceitos vêm de longe. Remontam aos primórdios do cristianismo, quando as mulheres passaram a ser consideradas seres frágeis e, por natureza, inferiores aos homens. Foi então que os Pais da Igreja elaboraram para elas uma graduação de mérito entre as escolhas de vida possíveis. Estabeleceu-se que, com vistas ao crescimento espiritual que conduz ao paraíso, a virgindade frutifica 100%; a castidade depois da viuvez 60%; e, em último lugar, o casamento, que rende apenas 30%. Parece mentira, mas é verdade: o casamento era apresentado como opção de vida adequada às mais fracas; o status matrimonial merecia maior atenção quando podia ser evitado, ou quando deixava de existir pela morte do cônjuge ou pela decisão de viver em castidade, renunciando aos prazeres da carne. O tempo se encarregou de rever e corrigir esses parâmetros ao longo dos séculos. Mas traços deles sobrevivem até hoje nas sociedades cristãs.

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A Igreja moderna reconsiderou esses valores, e reconheceu os méritos da vida cotidiana com seus heróicos aspectos domésticos, profissionais, matrimoniais e maternais. Nos dois últimos séculos chegou inclusive a beatificar - o primeiro passo para a santificação - várias mulheres, como as italianas Elisabetta Mora e Gianna Molla, cujo grande mérito foi serem ótimas donas de casa, esposas e mães. Mas, na Idade Média, quando aquela outra graduação de mérito ainda vigorava em plena força, entrar na vida monástica era, paradoxalmente, a única opção para a mulher que reivindicasse o direito de ser livre autora e dona da sua própria vida. Contando, para isso, apenas com a força que vem do diálogo direto com Deus. Diálogo que, no caso de Teresa de Ávila, produziu poesia de primeira grandeza. Mas poesia de mulher audaciosa. Apaixonada, “ébria de Deus”.

Teresa correu o risco de ser queimada viva ao se insurgir contra a autoridade eclesiástica de seu tempo, reclamando para si e para as outras mulheres a autonomia da própria experiência religiosa. Não à toa, em 1578, o núncio apostólico na Espanha dirigiu-se ao Papa a propósito de Teresa e afirmou que “essa freira é uma mulher irrequieta, gosta de vagar sem eira nem beira, é desobediente e obstinada”. Uma mulher escandalosa, em suma, como todas as mulheres que, naqueles tempos, ousavam tomar da palavra e fazer bom uso dela. Sem esquecer do bom humor. Teresa gostava de rir de histórias engraçadas e, do seu acervo de preces preferidas, havia uma que seus ouvintes adoravam: “Deus, livrai-me dos santos carrancudos”. Além disso, Teresa de Ávila é o melhor exemplo de um tipo particular de busca do divino que parece mais próprio da natureza feminina. Diferentes dos homens que, nessa busca, lançam mão predominantemente das ferramentas intelectuais, ou das qualidades e atributos do herói, as mulheres parecem muito mais buscar a liberdade espiritual na ascese, nas visões, nos êxtases místicos, na experiência direta de Deus.

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Os movimentos religiosos femininos que nascem dessa postura espiritual preconizada por santas como Teresa de Ávila formulam uma autonomia de busca mística que as autoridades eclesiásticas consideraram muito perigosa. Essas formas femininas de buscar Deus pareciam muito próximas da anarquia. Era preciso colocar um paradeiro na santidade de fogo das santas medievais.

A Contra-reforma, e o advento da modernidade no século 17, quis domesticar as paixões femininas. As santas já não eram aquelas grandes figuras que intervinham na história do mundo. A apologia da maternidade, da família, dos sonhos de amor romântico, apresentados como exclusivo apanágio da condição feminina, aprisionou ainda mais a mulher e diluiu o seu potencial subversivo. A partir daí as mulheres tornam-se santas por que sabem suportar as traições do marido, como a já citada Elisabetta Mora; por que preferem morrer a ceder à tentação carnal, como Maria Goretti; por que morrem ao dar à luz, como Gianna Molla. Ou, ainda, por entregar-se a portentosas obras sociais como Madre Francisca Cabrini que, na virada do século, responsabilizou-se por importante movimento assistencial aos imigrantes europeus que chegavam aos Estados Unidos. O mesmo caso da mais recente candidata a santa, Teresa de Calcutá, a quem, por justiça, ninguém negará os méritos necessários.

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ILDEGARDE DE BINGEN (1098-1179)

Teóloga, cientista, musicista, médica, botânica, escritora e grande visionária, a alemã Ildegarde de Bingen definia a si própria como a “boca de Deus”. Uma boca severa e destemida que foi capaz, mais de uma vez, de fustigar os “hábitos de escorpião” e as “obras de serpentes” de imperadores como Frederico Barba Ruiva e de papas como Alexandre III. Nascida na família nobre dos Bermershein, a história desta santa se desenvolve num mundo exclusivo de mulheres, dentro das paredes e na solidão e o saber dos conventos. No Dia de Todos os Santos de 1106, aos oito anos de idade, e acompanhada de duas outras garotas, Ildegarde entra no mosteiro de Disibodenberg para ser, como as outras, “murada viva”. A expressão significava ser trancada num pequeno quarto ser adornos, unido a um pequeno jardim cercado por altos muros. Ali dentro, Ildegarde aprende a cantar, a ler, a escrever, a conhecer as propriedades curativas das plantas que ela mesma cultiva. Desenvolve pouco a pouco aquilo que a notabilizou: uma indestrutível força de caráter e um extraordinário senso de equilíbrio e medida.

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Sozinha na clausura, ela tem visões que a deixam pasma e ,“como elas não aconteciam a ninguém mais, que eu soubesse, escondi enquanto pude os seus conteúdos no fundo da minha alma”. Até que, saída da clausura e tornada monja beneditina aos 42 anos de idade, uma voz celestial lhe disse: “Eu sou a luz viva que ilumina toda a escuridão. Escreve e proclama isso”. E ela começa a escrever e a publicar seus livros. Inspirada por visões místicas, fala de um universo infinito em contínua expansão; das relações entre o homem-microcosmo e a natureza-macrocosmo; da doença como ruptura da harmonia cósmica na pessoa humana, e da medicina das ervas como o caminho natural para se restabelecer a sintonia entre o corpo e o espírito. Ildegarde compôs mais de setenta sinfonias, fundou mosteiros e conventos, manteve intensa correspondência com as maiores autoridades políticas e religiosas do seu tempo.

CATARINA DE SIENA (1347-1380)

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“Eu, Catarina, vos escrevo movida pelo desejo de ver-vos sair das trevas e da cegueira nas quais tombastes”, escrevia a santa italiana com letras de fogo aos grandes da Terra. Ela os exorta, instiga e ameaça para que cumpram “a vontade de Deus e a minha vontade”, sem dispor de nenhuma outra autoridade que não fosse a sua apaixonada busca de santidade. “Exorto-vos a fazer virilmente aquilo que deveis fazer, e com temor a Deus”, ela intima publicamente o papa Gregório XI que, instalado em exílio na cidade francesa de Avignon, hesita em retornar a Roma por medo de ser assassinado. “Parai de dormir; por que o tempo é breve e deveis morrer, embora não saibais quando”, ameaça a Carlos V, rei da França, adepto de uma vida devassa. E se impõe até a Deus: “Minha mãe acaba de morrer sem confissão: por isso peço-vos que ela me seja mandada de volta. É isso que desejo, e não arredarei pé daqui enquanto não restituirdes minha mãe”. E Deus atende o seu pedido. Sua mãe volta à vida, viverá até os 80 anos, e assistirá à morte de Catarina, a 29 de abril de 1380.

Uma “santa galharda”, dirá o Papa Paulo VI que a promoveu a Doutora da Igreja. Sua vida é breve, apenas 37 anos. Seus biógrafos dizem que ela teve uma primeira visão mística aos seis anos de idade. Aos sete decide dedicar a própria virgindade à Madona e não mais comer carne. Mas, ao contrário do que em geral acontecia, seus pais querem a todo custo forçá-la a casar-se. Aos quinze anos, após testemunhar a morte por parto da irmã mais velha, Catarina decide romper suas relações mundanas e raspa os cabelos a zero. A família a pune trancando-a num quarto, onde ela passa o tempo a meditar e a flagelar-se.

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O pai, finalmente, aceita sua vocação, permitindo que ela entre para a Ordem Terceira da Penitência, uma ordem religiosa laica, constituída por mulheres em geral viúvas ou solteironas, que vivem fora dos muros dos conventos. Catarina continua a viver na casa da família, num quarto separado, como um eremitério doméstico. Ela cumpre por três anos seguidos um voto de silêncio, reduz o sono a meia hora a cada dois dias, sobre um estrado de madeira, se autoflagela três vezes ao dia com uma corrente de ferro, e se alimenta unicamente de água, pão e verdura crua. As autoridades católicas começam a suspeitar que em tanto ascetismo deve estar a mão do diabo, e a obrigam a comer pelo menos uma vez ao dia. Ela obedece, mas cai gravemente enferma. Seu confessor a autoriza a alimentar-se unicamente da eucaristia. Catarina começa então a praticar uma série interminável de jejuns totais, sem alimento sólido nem líquido. Jejua pela paz, pelo retorno do papa a Roma, contra o nepotismo dos cardeais, contra a injustiça e a falta de caridade dos poderosos. Finalmente, quando os cardeais elegem em Avignon o antipapa Clemente VII, dando início a um grande cisma na Igreja, Catarina comunica ao papa “romano” Urbano VI que deseja concluir sua vida “por vós e pela Santa Igreja”. Nada come nem bebe por três meses, até morrer.

RITA DE CÁSSIA (1381-1447)

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Rita não possui o talento de Teresa, nem a inteligência de Ildegarda ou a vontade férrea de Catarina. Sua maior virtude é a fé. Foi boa filha, esposa devotada de um “homem muito feroz”, e mãe de dois filhos. Depois, monja de vida exemplar. Um estigma se lhe aparece na fronte e dura 14 anos, até a morte. “Santa das Impossibilidades”, como ficou conhecida, capaz de afastar a peste, curar doenças incuráveis, fazer conceber mulheres estéreis e proteger as parturientes. Santa poderosa, mas dotada de virtudes mais domesticadas, mais de acordo com os novos tempos de maior domínio patriarcal que se estavam formando, depois da fase das santas de tremenda autoridade que a precederam.

Mas a mulher Rita vai além de Santa Rita. Após dezoito anos de dócil matrimônio, seu marido foi assassinado por adversários políticos. Embora aflita pela atrocidade do acontecimento, “com assíduas e fervorosas orações a santa viúva pedia a Deus o perdão para quem matara seu marido. Mas como temia que seus jovens filhos partissem, no futuro, para ações de vingança, dedicou-se a suavizar os ânimos deles. Mas, ao perceber que a vontade deles não se dobrava à sua, com ferventes orações suplicou ao Senhor que se dignasse levar-lhe os filhos”. Exatamente assim. Preferiu pedir a morte dos filhos a ver-lhes cometer pecado. Rita, portanto, tornou-se santa contra os seus filhos, e só depois da morte deles e do marido pode finalmente viver para si mesma e construir a própria santidade.

 

VERSOS DE TERESA DE ÁVILA

 

Tentação muito traiçoeira é o sentimento seguro

de que jamais cairemos novamente em nossas

antigas faltas ou voltaremos a ter desejo dos

prazeres mundanos.

 

A menos que tenhas cuidado, os elogios dos

outros podem fazer-te muito mal. Uma vez

começados, jamais terminam, e geralmente

acabam por arruinar-te.

 

Deus, livrai-me dos santos carrancudos.

Só o amor, sob qualquer forma, leva à união com Deus.

 

Se quiseres progredir nesta vida,

o importante não é pensar muito,

mas amar muito. Faze, pois,

tudo aquilo que te estimula a amar.

 

Para chegares a saborear tudo,

não queiras ter gosto em coisa alguma.

Para chegares a possuir tudo,

não queiras possuir coisa alguma.

Para chegares a ser tudo,

não queiras ser coisa alguma.

Para chegares a saber tudo,

não queiras saber de coisa alguma.

 

Para chegares ao que não gostas,

hás de ir por onde não gostas.

Para chegares ao que não sabes,

hás de ir por onde não sabes.

Para vires ao que não possuis,

hás de ir por onde não possuis.

Para chegares ao que não és,

hás de ir por onde não és.

 

Quando reparas em alguma coisa,

deixas de arrojar-te ao tudo.

Porque para vir de todo ao tudo,

hás de negar-te de todo em tudo.

E quando vires a tudo ter,

hás de tê-lo sem nada querer.

Porque se queres ter alguma coisa em tudo,

não tens puramente em Deus teu tesouro.

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