A Encíclica verde. Guinada ecológica radical do Papa Francisco
“Louvado seja, sobre o cuidado da casa de todos nós”. É o título da Encíclica recém publicada do Papa Francisco sobre o meio ambiente. O ponto central? “A Terra está ferida, é necessária uma conversão ecológica”. Poluir, contribuir para o aquecimento global, para a desflorestação é – no fundo – um pecado.
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Por: Luis Pellegrini
A Encíclica Laudato Sí, do Papa Francisco, sobre o meio ambiente, foi escrita com a raiva intelectual de um ativista, com a preocupação com os pobres e como um ato de acusação sem precedentes à indiferença dos poderosos. Já surgiu como libelo clássico que permanecerá na história dos esforços voltados à conservação da vida na face do planeta Terra.
Trata-se de uma encíclica para todos, não apenas para os cristãos. Com ela Francisco lavra mais um tento na sua já longa lista de intervenções fundamentais sobre os problemas do mundo contemporâneo. Pela primeira vez a Igreja publica um documento oficial sobre questões do meio ambiente e da sua salvaguarda.
Ao longo dos séculos, muitos homens e mulheres da Igreja e cristãos em geral levaram em consideração o tema do respeito à vida e à natureza, a começar por São Francisco de Assis, citado no próprio título da encíclica. Ele foi extraído do célebre “O Cântico das Criaturas”, obra-prima poética do santo de Assis. Mas o documento de hoje faz parte do Magistério (ou seja, do ensinamento) da Igreja. Representa a voz oficial da instituição católica e está impregnada da sua autoridade. A encíclica foi escrita pessoalmente pelo Papa Francisco, que chamou para assessorá-lo um grande número de especialistas e cientistas.
Mas – a premissa é obrigatória – não se trata de um documento científico, e sim de um repto espiritual que convida antes de tudo a uma “conversão ecológica”. A salvaguarda do ambiente é coligada à justiça em relação aos pobres e à solução dos problemas causados por uma economia que persegue apenas o lucro. As três questões não podem ser dissociadas e, com efeito, o tema ambiental é tratado por Francisco num contexto mais amplo, o da doutrina social da Igreja.
Mudança de estilo de vida, produção e consumo
O ponto de partida é a análise dos dados científicos, mas Papa Francisco não deseja intervir no debate científico ou estabelecer em qual porcentagem o aquecimento global seja causado pelas atividades humanas. Esses temas constituem apanágio apenas dos cientistas. O pontífice explica que “existe um consenso científico muito consistente que indica estarmos diante de um preocupante aquecimento do sistema climático mundial”, devido em sua maior parte à grande concentração de gases de efeito estufa na atmosfera do planeta.
A humanidade deve “tomar consciência da necessidade de mudanças de estilo de vida, de produção e de consumo”.
O Papa também toma em consideração o derretimento dos gelos e a perda da biodiversidade. Os impactos mais pesados “provavelmente recairão nas próximas décadas sobre os países em via de desenvolvimento”.
“Portanto, tornou-se urgente e imperativo o desenvolvimento de políticas de modo que nos próximos anos a emissão de gás carbônico e de outros gases poluidores se reduza drasticamente”.
O quadro descrito por Francisco no primeiro capítulo da sua encíclica é deprimente: deterioração da qualidade da vida humana e degradação social.
O ponto de vista do pontífice é o de um teólogo: Francisco recorda que “o ambiente humano e o ambiente natural se degradam juntos”, atingindo sobretudo os mais frágeis. Problemas que “não encontram suficiente espaço nas agendas do mundo”.
As palavras de Francisco não admitem panos quentes: a seis meses da próxima conferência sobre o clima, que será realizada em Paris, o pontífice convida os grandes da terra a mudar o tom e o conteúdo do discurso, a dar relevantes passos à frente. Ele denuncia “a debilidade da reação política internacional” e afirma que “muito facilmente o interesse econômico prevalece sobre o bem comum e manipula a informação para que seus projetos e interesses sejam protegidos”.
O débito ecológico entre o Norte e o Sul
Existe um “débito ecológico” entre o Norte e o Sul: “O aquecimento causado pelo enorme consumo de alguns países ricos acarreta repercussões nos lugares mais pobres da terra”. Os países desenvolvidos devem contribuir para resolver esse débito ecológico. Como? O pontífice sugere limitar “de modo importante o consumo de energia não renovável”. Enquanto os países mais pobres “têm menos possibilidade de adotar novos modelos de redução do impacto ambiental”.
Tais situações requerem um “sistema normativo que inclua limites invioláveis e assegurem a proteção dos ecossistemas”.
“Os poderes econômicos continuam a justificar o atual sistema mundial, no qual prevalecem uma especulação e uma busca da renda financeira”, hoje “qualquer coisa que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa diante dos interesses do mercado divinizado, transformados em regra absoluta”. Diante do exaurimento de alguns recursos vai-se criando “um cenário favorável para novas guerras, mascaradas como sendo nobres reivindicações”. A política deveria estar mais atenta, mas “o poder coligado com a finança” resiste a esses esforços.
Há diversidade de opiniões
O Papa reconhece que existe diversidade de opiniões sobre a situação e sobre as possíveis soluções. Cita dois extremos: quem sustenta que “os problemas ecológicos serão resolvidos simplesmente com a aplicação de novas técnicas, sem considerações éticas nem mudanças de fundo”. E quem considera que “a espécie humana, não importa qual seja a sua forma de intervenção, só poderá ser uma ameaça e comprometer o ecossistema mundial, de modo que é conveniente reduzir a sua presença no planeta”. Sobre várias questões concretas, a Igreja “não tem motivo para propor uma palavra definitiva”, basta no entanto “observar a realidade com sinceridade para ver que existe uma grande deterioração da nossa casa comum”.
Mas a Encíclica não faz nenhuma concessão ao afirmar a responsabilidade moral dos homens que – com os seus comportamentos – influem sobre o meio ambiente, a poluição, o aquecimento global e – em última análise – de como poderemos impedir tudo isso. O Papa conclama a todos para uma conversão ecológica. Instiga a mudarmos de rota: a nos empenharmos pela salvaguarda do ambiente, da nossa casa comum. E afirma que poluir, contribuir para o aquecimento global, para a desflorestação é – no fundo – um pecado.
Diálogo entre a fé e o conhecimento
Quando o Papa, a partir do segundo capítulo da encíclica, introduz os aspectos de fé, ele o faz com um preâmbulo muito claro: “Por que inserir neste documento, dirigido a todas as pessoas de boa vontade, um capitulo referente às convicções de fé? Tenho consciência de que, no campo da política e do pensamento, alguns refutam com força a ideia de um Criador, ou a consideram irrelevante, a ponto de relegar ao âmbito do irracional a riqueza que as religiões podem oferecer para uma ecologia integral e para o pleno desenvolvimento do gênero humano. Outras vezes, supõe-se que elas constituam uma subcultura que deve ser simplesmente tolerada. Contudo, a ciência e a religião, que fornecem abordagens diversas da realidade, podem entrar em um diálogo intenso e produtivo para ambas”.
São 180 páginas de reflexões teológicas e com numerosos atos de acusação dirigidos aos poderosos e às nações desenvolvidas. Selecionamos abaixo aqueles que consideramos serem os seus pontos principais:
1. Abandono dos combustíveis fósseis: “À espera de soluções melhores (as energias renováveis) é melhor preferir o mal menor. No caso energético, o pior de todos é o carvão fóssil. Sabemos que a tecnologia baseada nos combustíveis fósseis, todos muito poluidores – especialmente o carvão, seguido pelo petróleo e, em medida um pouco menor, pelos gases combustíveis – deve ser substituída progressivamente porém sem hesitação. Na expectativa de um amplo desenvolvimento das energias renováveis, que já deveria ter começado, é legítimo optar pelo mal menor ou recorrer a soluções transitórias”.
2. A falência dos encontros da ONU sobre o clima: “Mais de vinte anos de summits serviram pouco para o controle do aquecimento global. Digna de nota é a debilidade da reação política internacional. A submissão da política à tecnologia e à finança demonstra-se na falência dos vértices mundiais sobre o ambiente. Existem demasiados interesses particulares e muito facilmente o interesse econômico prevalece sobre o bem comum e manipula a informação.
3. Os “créditos de emissão” constituem negociata inútil: “A estratégia de compra e venda de ‘créditos de emissão’ podem redundar em uma nova forma de especulação e não servem para reduzir a emissão global de gases poluidores. Esse sistema parece ser uma solução rápida e fácil, com a aparência de um certo empenho para o ambiente, mas ele não implica de fato numa mudança radical à altura das circunstâncias. Longe disso, pode se tornar um expediente que consente sustentar o super consumo de alguns países e setores”.
4. Importância das iniciativas locais: “Em alguns lugares desenvolvem-se cooperativas para a exploração das energias renováveis que possibilitam a autossuficiência local e inclusive a venda da produção excedente. Esse simples exemplo indica que, enquanto a ordem mundial existente mostra-se impotente em assumir a responsabilidade, a instância local pode fazer a diferença. É nela que podem nascer uma maior responsabilidade, um forte senso comunitário, uma capacidade especial de bons cuidados e uma criatividade mais generosa, um profundo amor pela própria terra, bem como a se pensar naquilo que será deixado para os filhos e os netos. Esses valores têm raízes muito profundas nas populações aborígenes”.
5. Transgênicos? Nem a favor, nem contra: “É difícil emitir um julgamento geral a respeito do desenvolvimento dos organismos geneticamente modificados (OGM), vegetais ou animais, para fins médicos ou na agricultura, pois eles podem ser muito diversos entre si e requererem distintas considerações. Por outro lado, os riscos não devem ser sempre atribuídos à técnica em si, mas à sua aplicação inadequada ou excessiva. Na realidade, as mutações genéticas foram e continuam sendo produzidas muitas vezes pela própria natureza. Nem mesmo aquelas provocadas pelo ser humano são um fenômeno moderno. A domesticação de animais, o cruzamento de espécies e outras práticas antigas e universalmente aceitas podem ser objeto dessas considerações. É oportuno recordar que o início dos trabalhos científicos sobre cereais transgênicos foi a observação de bactérias que naturalmente e espontaneamente produzem modificações no genoma de um vegetal. Todavia, na natureza esses processos têm um ritmo lento, que não pode ser comparado à velocidade imposta pelos progressos tecnológicos atuais, até mesmo quando tais progressos são baseados sobre desenvolvimentos científicos multisseculares.
6. O consumo é o problema mais grave da população mundial: “Culpar o incremento demográfico e não o consumismo extremo e seletivo por parte de alguns, é um modo de não enfrentar os problemas. Pretende-se dessa forma legitimar o atual modelo distributivo, no qual uma minoria se crê no direito de consumir numa proporção que seria impossível generalizar, porque o planeta sequer conseguiria absorver os detritos produzidos por um tal consumo”.
7. Celulares e outros aparelhos estão arruinando nossa relação com a natureza: “Ao mesmo tempo, as relações reais com os outros, com todos os desafios que elas implicam, tendem a ser substituídas por um tipo de comunicação intermediada pela internet. Isso permite selecionar ou eliminar as relações segundo o nosso arbítrio e, dessa forma, gera-se com frequência um novo tipo de emoções artificiais, que têm mais a ver com dispositivos eletrônicos e monitores visuais do que com pessoas e com a natureza. Os meios atuais permitem que nos comuniquemos e que compartilhemos conhecimentos e afetos. Contudo, às vezes eles nos impedem de tomar contato direto com a angústia, com o temor, com a alegria do próximo e com a complexidade da sua experiência pessoal. Por isso não deveria espantar o fato de que, junto à opressiva oferta desses produtos, vá crescendo uma profunda e melancólica insatisfação nas relações interpessoais, ou um danoso isolamento.”
8. A herança para as novas gerações? A desolação: “As previsões catastróficas já não podem ser consideradas com desprezo e ironia. Poderemos deixar às próximas gerações demasiadas ruínas, desertos e lixo. Os ritmos do consumo, do desperdício e de alterações do meio ambiente superaram as possibilidades do planeta, de maneira tal que o estilo atual de vida, sendo insustentável, apenas pode desembocar em catástrofes, como de fato já está acontecendo periodicamente em diversas regiões”.
9. Poluir e extinguir recursos é um pecado: “O ambiente é um bem coletivo, patrimônio de toda a humanidade e responsabilidade de todos. Quem dele possui uma parte, é apenas para administrá-la em benefício de todos. Se não o fizermos, carregaremos em nossa consciência o peso de negarmos a existência dos outros. Por isso os bispos da Nova Zelândia se perguntaram o que significa o mandamento “não matarás” quando cerca de 20 por cento da população mundial consome recursos em medida tal de roubar às nações pobres e às futuras gerações aquilo de que têm necessidade para sobreviver”.
10. A poluição sonora também é condenável: “Para poder falar de um desenvolvimento autêntico, será preciso que aconteça uma melhora integral da qualidade da vida humana, e isso implica analisar o espaço no qual transcorre a existência das pessoas. Os ambientes nos quais vivemos influem no nosso modo de ver a vida, de sentir e de agir. Ao mesmo tempo, no nosso quarto, na nossa casa, no nosso lugar de trabalho e no nosso bairro devemos fazer uso do ambiente para exprimir a nossa identidade. Nos esforçamos para nos adaptarmos ao ambiente, mas quando ele é desordenado, caótico ou saturado de poluição visual e sonora, o excesso de estímulos põe à prova nossas tentativas de desenvolver uma identidade integrada e feliz”.
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