A arte da quietude. Na era do movimento constante, nada é tão urgente quanto parar um pouco
O lugar que o escritor viajante Pico Iyer mais gostaria de visitar? Lugar nenhum. Numa meditação contra-intuitiva e lírica, Iyer analisa a incrível descoberta que surge quando reservamos um tempo para a quietude. É a palestra para todos que se sentem sufocados com as demandas de nosso mundo.
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Vídeo: TED – Ideas Worth Spreading
Tradução: Gustavo Rocha. Revisão Túlio Leão
Em nosso mundo de movimento e distrações constantes, existem estratégias que todos podemos usar para reservar alguns minutos de cada dia, ou alguns dias de cada estação.
Aclamado escritor de viagem, Pico Iyer começou sua carreira documentando um aspecto esquecido da viagem: a desconexão que tantas vezes observamos entre os aspectos globais da cultura pop e os usos e costumes das tradições locais que visitamos. A partir disso, e das sua imensa experiência de viajante, Iyer aprendeu tudo aquilo que a experiência da viagem pode fazer para nos libertar dos condicionamentos e das distrações da atual cultura tecnológica.
Pico Iyer escreveu mais de dez livros, nos quais explora também as consequências culturais do isolamento, tanto ao examinar a existência de líderes espirituais budistas tibetanos que vivem no exílio, quanto ao estudar as consequências do embargo imposto à sociedade cubana.
Iyer diz também que um outro aspecto pouco compreendido das viagens é como elas podem nos fazer recuperar nosso senso de quietude e de focagem da atenção. Como ele afirma: “Quase todos que conheço estão intoxicados por uma overdose de informação e ficando atarantado ao viver nas atuais velocidades pós-humanas. Ao mesmo tempo, quase todos tentam fazer alguma coisa para limpar as próprias cabeças e conquistar suficiente tempo e espaço para poder pensar... Instintivamente, todos nós sentimos que algo dentro de nós clama por mais espaço e mais quietude, para sair um pouco da roda-viva atordoante em que se transformou a existência dentro do atual modelo cultural”.
Vídeo:
Tradução integral da palestra de Pico Iyer:
Eu sou um viajante vitalício. Mesmo durante minha infância, eu estava calculando que seria mais barato ir a um internato na Inglaterra do que à melhor escola perto da casa de meus pais na Califórnia. Então, desde que eu tinha nove anos, já sobrevoava o Polo Norte sozinho várias vezes ao ano só para ir à escola. E claro, quanto mais eu voava, mais eu gostava de voar, e na mesma semana em que terminei o colegial, eu consegui um emprego para limpar mesas para que eu pudesse passar cada estação do meu 18º ano em um continente diferente. E assim, quase inevitavelmente, tornei-me um escritor viajante e então meu trabalho e minha alegria se unificaram.
Comecei a perceber que se você tiver a sorte de caminhar pelos templos à luz de velas do Tibete ou passear ao longo da orla de Havana com a música passando por você, você poderia levar esses sons e os altos céus azul-cobalto e o brilho do oceano azul consigo para seus amigos em casa, e realmente trazer a magia e a clareza para a sua própria vida. Exceto, como vocês sabem, uma das primeiras coisas que você aprende quando viaja é que nenhum lugar é mágico a não ser que você o veja com os olhos certos. Leve um homem raivoso para o Himalaia, e ele vai começar a reclamar da comida...
Descobri que o melhor jeito de desenvolver olhos mais atentos e apreciativos, curiosamente, era ir a lugar nenhum, ficar onde estou. E é claro, ficar onde estamos é como muitos de nós obtemos o que mais queremos e necessitamos em nossas vidas aceleradas: uma pausa. Mas também foi o único jeito que eu encontrei para vasculhar a apresentação da minha experiência e dar um sentido ao futuro e ao passado. E assim, para minha grande surpresa, descobri que ir a lugar nenhum era ao menos tão empolgante quanto ir ao Tibete ou a Cuba. E quando digo "ir a lugar nenhum" não quero dizer nada mais assustador do que tirar alguns minutos de cada dia ou alguns dias de cada estação, ou até mesmo, como alguns fazem, alguns anos de uma vida para poder parar um pouco por tempo suficiente para descobrir o que mais o motiva, para relembrar onde está sua felicidade mais verdadeira e lembrar que, às vezes, ganhar a vida e construir uma vida apontam para direções opostas.
Claro, é isso que os sábios durante os séculos, de todas as tradições, têm nos dito. É uma ideia antiga. Mais de dois mil anos atrás, os estoicos lembravam-nos que não é nossa experiência que faz nossas vidas, e sim o que fazemos com ela. Imagine que um furacão de repente devaste sua cidade e reduza absolutamente tudo a pó. Um homem fica traumatizado pelo resto da vida. Mas outro, talvez até mesmo irmão dele, sente-se quase libertado, e decide que essa é uma ótima chance para começar sua vida do zero. É exatamente o mesmo evento, mas reações radicalmente diferentes.
Não há nada bom ou ruim, como Shakespeare nos diz em "Hamlet", mas o pensamento faz com que sejam. E certamente essa tem sido minha experiência como viajante. Há 24 anos, eu fiz a viagem mais alucinante pela Coreia do Norte. Mas a viagem durou alguns dias. O que eu fiz com ela, sentando quieto, voltando para lá em minha cabeça, tentando entendê-la, achando um espaço em minha mente, já dura 24 anos e vai durar provavelmente por toda minha vida. A viagem, em outras palavras, me proporcionou algumas visões incríveis, mas é só ao sentar quieto que eu consigo transformá-las em percepções duradouras.
Às vezes penso que tanto de nossas vidas acontece dentro de nossas cabeças, na memória ou imaginação ou interpretação ou especulação, que se eu quiser mesmo mudar minha vida talvez seja melhor começar mudando minha mente. Novamente, nada disso é novo; é por isso que Shakespeare e os estoicos já nos diziam isso há séculos, mas Shakespeare nunca teve que enfrentar 200 e-mails em um dia. (Risos) Os estoicos, até onde eu sei, não estavam no Facebook.
Todos sabemos que em nossas vidas sob demanda, uma das coisas com a maior demanda somos nós mesmos. Onde quer que estejamos, a qualquer hora do dia ou da noite, nossos chefes, spams, nossos pais conseguem falar conosco. Sociólogos descobriram que nos últimos anos os americanos estão trabalhando menos horas do que 50 anos atrás, mas temos a sensação de que trabalhamos mais. Temos cada vez mais dispositivos para poupar tempo, mas às vezes, ao que parece, cada vez menos tempo. Podemos contatar as pessoas cada vez mais facilmente nos cantos mais distantes do planeta, mas às vezes, nesse processo, perdemos contato conosco mesmos.
Uma das minhas maiores surpresas como viajante foi descobrir que muitas vezes são exatamente as pessoas que mais nos possibilitaram chegar a qualquer lugar que pretendem ir a lugar nenhum. Ou seja, precisamente aqueles seres que criaram as tecnologias que derrubam tantos dos limites do antigo, são os mais sábios a respeito da necessidade de limites, mesmo quando se trata de tecnologia. Eu fui visitar a sede do Google uma vez e vi todas as coisas sobre as quais muitos de vocês já ouviram falar, as casas na árvore, os trampolins, funcionários, na época, usufruindo de 20% de seu tempo livremente para que pudessem deixar sua imaginação viajar. Mas o que mais me impressionou foi que, enquanto eu esperava pelo meu registro digital, um funcionário do Google me contava sobre o programa que ele estava prestes a iniciar para ensinar aos outros funcionários que praticavam ioga como se tornar treinador, e outro funcionário estava me contando do livro que ele estava prestes a escrever sobre a ferramenta de busca interna, e as maneiras como a ciência mostrou empiricamente que sentar-se quieto, ou meditação, podem não só levar à melhor saúde ou pensamento mais claro, mas até mesmo à inteligência emocional.
Tenho um outro amigo no Vale do Silício que era realmente um dos porta-vozes mais eloquentes para as tecnologias mais recentes, e era, de fato, um dos fundadores da revista Wired, Kevin Kelly. E Kevin escreveu seu último livro sobre novas tecnologias sem ter um smartphone ou um laptop ou uma TV em casa. E como muitos no Vale do Silício, ele dá duro para observar o que eles chamam de “Sabá da Internet”, no qual por 24 ou 48 horas toda semana eles ficam completamente offline para poder reunir um senso de direção e proporção de que vão precisar quando voltarem online.
Uma coisa, talvez, que a tecnologia ainda não nos proporcionou é um senso de como usar a tecnologia de modo sábio. E quando falamos do Sabá, lembrem dos Dez Mandamentos; só há uma palavra lá que é descrita com o adjetivo "sagrado", e é exatamente o Sabá. Eu peguei o livro judaico sagrado, a Torá; seu capítulo mais longo fala sobre o Sabá. E todos sabemos que é realmente um dos maiores luxos, o espaço vazio. Em várias canções, é a pausa ou o intervalo que dá à canção sua beleza e sua forma. E eu sei que como escritor vou sempre tentar incluir bastante espaço vazio na página para que o leitor possa completar meus pensamentos e sentenças e para que sua imaginação tenha espaço para respirar.
Agora, no domínio físico, é claro, muitas pessoas, se tiverem os recursos, vão tentar arranjar um lugar no campo, um segundo lar. Eu nunca comecei a ter esses recursos, Mas às vezes eu me lembro de que sempre que eu quiser eu posso arranjar um segundo lar no tempo, se não no espaço, apenas tirando um dia de folga. E nunca é fácil, porque sempre que tento, eu passo a maior parte do tempo preocupado com todas as coisas que vão cair sobre mim no dia seguinte. Às vezes eu penso que preferiria abrir mão de carne, sexo ou vinho do que da chance de checar meus e-mails. (Risos)
Em todas as estações do ano, tento tirar três dias de retiro, mas uma parte de mim sente-se culpada por deixar minha pobre esposa e por estar ignorando todos os e-mails aparentemente urgentes de meus chefes e talvez por estar perdendo a festa de aniversário de um amigo. Mas assim que chego num lugar bem quieto, percebo que é só estando lá que terei algo novo, criativo ou alegre para compartilhar com minha mulher, chefes ou amigos. De outro modo, realmente, só estou descontando neles minha exaustão ou minha distração, o que não é uma benção de maneira nenhuma.
Então, quando eu tinha 29 anos, decidi recriar toda minha vida em função de ir a lugar nenhum. Certa noite, voltava do escritório, já tinha passado da meia-noite, eu estava num táxi passando pela Times Square e de repente percebi que estava correndo tanto de um lado para o outro que eu nunca conseguia acompanhar minha vida.
Minha vida, na época, era basicamente aquela com que sonhei quando era criança. Tinha amigos e colegas bem interessantes, tinha um bom apartamento na esquina da Park Avenue com a 20th Street. Tinha um emprego fascinante escrevendo sobre questões mundiais, mas eu nunca conseguia me separar o suficiente para ouvir a mim mesmo; ou melhor, para entender se estava mesmo feliz. Assim, abandonei minha vida dos sonhos por um quarto único nas ruelas de Quioto, no Japão, que era o lugar que havia exercido uma forte e muito misteriosa atração gravitacional sobre mim. Mesmo quando criança, eu olhava para uma pintura de Quioto e ela me parecia familiar; eu já a conhecia, antes mesmo de vê-la. Mas também, como vocês todos sabem, trata-se de uma bela cidade rodeada por colinas, com mais de 2 mil templos e santuários, onde as pessoas ficam sentadas quietas há 800 anos ou mais. E logo depois de me mudar para lá, eu cheguei aonde ainda estou hoje, com minha esposa, antigamente com meus filhos, num apartamento de dois quartos no meio do nada onde vivemos sem bicicleta, sem carro, sem TV que eu entenda, e ainda tenho que apoiar meus entes queridos como escritor viajante e jornalista. Claramente isso não é o ideal para se avançar no emprego ou para o entusiasmo cultural ou para distrações sociais. Mas notei que isso me dá o que eu mais prezo, que são dias e horas. Nunca precisei usar um celular lá. Quase nunca preciso olhar as horas. Todas as manhãs, quando acordo, o dia se estende à minha frente como um campo aberto. E quando a vida me lança uma das suas surpresas desagradáveis, como ela já fez, mais de uma vez, quando um médico entra no meu quarto com uma expressão séria, ou um carro repentinamente me fecha na estrada, eu sei, lá no fundo, que é o tempo que eu passei indo a lugar nenhum que vai me segurar mais do que o tempo que passei viajando pelo Butão ou para a Ilha de Páscoa.
Sempre serei um viajante; minha sobrevivência depende disso; mas uma das belezas de viajar é que lhe permite trazer quietude ao movimento e na comoção do mundo. Uma vez eu peguei um avião em Frankfurt, na Alemanha, e uma jovem alemã veio e sentou-se ao meu lado e nós tivemos um papo amigável por cerca de 30 minutos, até que ela simplesmente se virou e ficou quieta por 12 horas. Ela não ligou sua telinha nem uma só vez, nem pegou um livro, nem sequer dormiu um pouco. Ela só ficou quieta, e algo de sua clareza e calma transferiram-se para mim.
Tenho notado cada vez mais pessoas agindo conscientemente nos últimos dias para tentar abrir um espaço em suas vidas. Algumas pessoas vão para resorts buraco-negro onde elas gastam centenas de dólares por dia para entregar seu celular e laptop na recepção quando chegam. Algumas pessoas que conheço, antes de irem dormir, em vez de passar por suas mensagens ou checar o YouTube, só apagam as luzes e escutam música, e percebem que dormem bem melhor e acordam mais revigoradas.
Certa vez, tive a sorte de dirigir pelas pequenas estradas das altas montanhas escuras por trás de Los Angeles, onde o grande poeta, cantor e galã internacional Leonard Cohen viveu e trabalhou por muitos anos como monge em tempo integral no centro Mount Baldy Zen. E não fiquei inteiramente surpreso quando a música que ele lançou, aos 77 anos de idade, a qual ele, deliberadamente, nomeou de modo nada sexy "Ideias Antigas", chegou ao primeiro lugar das paradas em 17 países do mundo, e ficou entre as cinco primeiras em outros nove. Algo em nós, eu acho, está clamando pelo senso de intimidade e profundidade que sentimos de pessoas como ele, que se dão o tempo e o esforço de sentarem quietos. E acho que muitos têm a sensação, eu certamente tenho, de que estamos a cerca de cinco centímetros de uma tela enorme, e está barulhento e está lotado e muda a cada segundo, e essa tela é a nossa vida. E só ao se afastar um pouco e depois um pouco mais, e ficar onde estiver, é que podemos começar a ver o que a tela significa e entender a grande imagem. E algumas pessoas fazem isso por nós, indo a lugar nenhum.
Então, numa era de aceleração, nada pode ser mais emocionante do que ir devagar. E numa era de distração, nada é mais luxuoso do que prestar atenção. E numa era de movimento constante, nada é tão urgente quanto parar um pouco. Você pode tirar suas próximas férias em Paris ou no Havaí ou em Nova Orleans; aposto que vai se divertir bastante. Mas se quiser voltar para a casa vivo e cheio de nova esperança, apaixonado pelo mundo, acho que você deveria considerar ir a lugar nenhum. Obrigado
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