Zeballos, o "tataravô" argentino de Assange
Ex-chanceler platino vazou telegrama diplomtico do Baro do Rio Branco, em 1908, e quase levou as duas maiores naes da Amrica do Sul guerra
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Por Dario Palhares
Nada contra o australiano Julian Assange, que coleciona desafetos mundo afora na diplomacia, na política e no meio empresarial, mas bem que o seu célebre site WikiLeaks (http://213.251.145.96/) poderia se chamar WikiGossips. Sim, isso mesmo: fofocas instantâneas. Afinal, como classificar o teor de telegramas trocados entre funcionários do Departamento de Estado americano – e vazados pelo WilkiLeaks – em que o premiê italiano, Silvio Berlusconi, é considerado “irresponsável e inconsequente”, seu colega russo, Vladimir Putin, e o atual presidente da terra de Dostoiévski, Dmitri Medvedev, são comparados a Batman e Robin, e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é acusado de chamar o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, de caipira – condição, aliás, da qual este filho de Pindamonhangaba (SP), no Vale do Paraíba, se orgulha? O trabalho de Assange tem méritos conhecidos e indiscutíveis, mas até o momento, ao que se sabe, não causou a mobilização de exércitos, a derrubada de qualquer governo ou a condenação de uma única corporação transnacional. Nesse quesito, o jornalista da Oceania ainda está a oceanos de seu “tataravô”, o argentino Estanislao Severo Zeballos, que quase levou Brasil e Argentina à guerra em 1908 ao vazar um telegrama.
Nascido em Rosario, a 7 de julho de 1854, Zeballos foi uma referência política, cultural e intelectual na Argentina da década de 1880 até a sua morte, em 1923. Autor de diversos livros – entre os quais “La Conquista de Quince Mil Leguas”, “Viaje al País de los Araucanos”, “Relmu: Reina de los Pilares” e “Payne y la Dinastia de los Zorros” –, atuou como jornalista, antropólogo, jurista, historiador, geógrafo, diplomata e político. Dentre suas várias obras, destaca-se a magnífica “Revista de Derecho, Historia y Letras”. Editada de 1898 a 1923, a publicação reuniu textos dos principais pensadores, políticos e cientistas do Cone Sul, entre eles vários brasileiros.
Nacionalista radical e ardoroso, o rosarino defendeu o massacre de povos indígenas executado na Conquista del Desierto, campanha militar de 1879 que viabilizou o domínio do governo de Buenos Aires sobre o Pampa e a Patagônia oriental. Na política externa, sempre teve um pé atrás, não raro os dois, em relação ao Chile e, principalmente, ao Brasil. Seu maior desafeto na diplomacia, aliás, foi justamente um brasileiro dos mais ilustres: José Maria da Silva Paranhos Junior, o célebre Barão do Rio Branco.
A primeira trombada entre os dois ocorreu no longínquo 1875, depois que Carlos Tejedor, enviado plenipotenciário do governo argentino ao Rio de Janeiro, voltou para casa sem se despedir do imperador D. Pedro II. O incidente, que causou indignação entre os súditos do monarca, foi relevado por Rio Branco no jornal carioca “A Nação”: “No fato que tantos comentários tem suscitado não houve, a nosso ver, nenhuma ofensa internacional ao Brasil. Houve apenas uma gaucherie”.
Zeballos, à época redator do “Nacional”, jornal de Tejedor em Buenos Aires, interpretou livremente o galicismo – que significa gafe, falta de tato – como “gaucharia”, “gauchada”, e soltou os cachorros, manifestando um preconceito racial que mancharia as relações entre os dois países daí em diante: “Um dos diários mais importantes do Brasil qualificou de gaucherie a retirada do Sr. Tejedor. Este modo de exprimir-se não é mais do que uma macacada de má lei. É melhor ser gaucho do que macaco!”. Juca, como Rio Branco era conhecido, não abriu mão da tréplica, ainda que em tom ameno: “Se o escritor que traçou estas linhas tivesse aprendido o francês conheceria a significação da palavra gaucherie e não acreditaria ingenuamente que ela tem relação com o que nós diríamos em português gauchada”.
Depois desse “ensaio”, os dois voltariam a duelar entre 1893 e 1895. O confronto, dessa vez, envolvia a região de Missões, também chamada de Palmas, uma área de cerca de 30 mil quilômetros quadrados no oeste de Santa Catarina que, devido a imprecisões nas demarcações efetuadas por portugueses e espanhóis, acabou reivindicada pela Argentina. Zeballos já chegara a festejar a divisão do território litigioso, negociada com o primeiro chanceler da República vizinha, Quintino Bocaiúva (1889-1891), e formalizada em 23 de janeiro de 1890 pelo Tratado de Montevidéu. Sua alegria, no entanto, não durou muito: com o veto ao acordo por parte dos deputados brasileiros, em 10 de agosto de 1891, a disputa foi encaminhada à mediação do presidente americano Stephen Grover Cleveland, que em 1893 iniciou sua segunda tempo rada na Casa Branca.
Para cumprir a missão, Rio Branco permaneceu durante oito meses em Washington, longe da família. Sua equipe, que já contava com boa munição, garimpou paciente e incansavelmente mapas e documentos antigos na Espanha e em Portugal. Juca montou, assim, uma sólida argumentação e obteve a chancela de Cleveland em fevereiro de 1895. Levou a melhor na parada, mas ganhou um inimigo para o resto da vida. Na avaliação do historiador Miguel Angel Scenna, autor de “Argentina-Brasil: Cuatro Siglos de Rivalidad” (E. La Bastilla, Buenos Aires, 1975), Zeballos era “impulsionado por un nacionalismo primario, agresivo, ingenuo, y por su imbatible aborrecimiento al barón de Río Branco”.
Os Dreadnoughts
Os argentinos perderam com classe a disputa pelo território de Missões, sacramentada pela sentença arbitral de 11 novembro de 1895. Alguns anos mais tarde, no entanto, as relações entre os governos de Buenos Aires e do Rio de Janeiro foram fortemente estremecidas pelo programa de rearmamento da Marinha brasileira. Depois de ser superado na liderança militar no Cone Sul por Argentina e Chile – que se lançaram a uma corrida bélica no fim do século 19 –, a jovem república decidiu recuperar seu potencial de ataque e defesa. Na empreitada, deu especial atenção à Marinha, que se encontrava obsoleta e em frangalhos, em consequência da Revolta da Armada (1893-1894).
O Programa Naval, elaborado pelo almirante Júlio Cesar de Noronha, foi sancionado em 14 de dezembro de 1904 pelo presidente Francisco de Paula Rodrigues Alves (1902-1906), na forma do Decreto 1.296. Seriam encomendadas a estaleiros estrangeiros 28 embarcações, uma armada cuja espinha dorsal teria três encouraçados com deslocamento de até 14.500 toneladas, equipados com 12 canhões de 254 mm e 16 de 76 mm, e três cruzadores-encouraçados de até 9.500 toneladas, com oito canhões de 254 mm e 14 de 76 mm. Além destes, estavam previstos seis caça-torpedeiros, seis torpedeiras, três submarinos e um navio carvoeiro.
Estava tudo encaminhado até que, entre 27 e 29 de maio de 1905, a frota russa do Báltico sucumbiu diante dos grandes encouraçados japoneses na batalha naval de Tsushima. O confronto repercutiu entre militares e estrategistas mundo afora. No Brasil, provocou uma revisão radical no Plano Naval anunciado em 1904. Em 23 de novembro de 1906, oito dias após ter sucedido a Noronha no Ministério da Marinha, o almirante Alexandrino Faria de Alencar comemorou a aprovação do Decreto 1.576, que anulava o de nº 1.296 e apresentava uma nova lista de encomendas, com um poder de fogo substancialmente maior. Se a frota projetada em 1904 contaria com um total de 162 canhões de 47 mm a 254 mm, a de 1906, com 26 navios, previa 266 canhões de 47 mm a 305 mm.
Os cruzadores-encouraçados planejados dois anos antes foram descartados em nome de três encouraçados concebidos à imagem e à semelhança do HMS Dreadnought, da Marinha Britânica, a mais poderosa nave de guerra construída até então. Eram eles: o Minas Geraes e o São Paulo, ambos com deslocamento de 21.200 toneladas, 12 canhões de 305 mm, 22 de 120 mm e 8 de 47 mm; e o descomunal Rio de Janeiro, que deslocaria 30.200 toneladas e seria equipado com 14 canhões de 305 mm, 20 de 152 mm e 10 de 76 mm. Cada um desses portentos, aliás, seria mais intimidador até do que a sua própria matriz inglesa, a qual, com deslocamento de 21.845 toneladas, somava 10 canhões de 305 mm e 27 de 76 mm.
O gato havia subido no telhado, na leitura de José Figueroa Alcorta, que assumira o poder na Argentina em março de 1906, com a morte de Manuel Quintana. Para o novo presidente, nada disposto a abrir mão da hegemonia bélica na região, o verdadeiro propósito do Brasil ao rearmar-se, longe de garantir a segurança de sua enorme costa, era atacar o seu velho rival ao sul. Afinal, raciocinavam as autoridades de plantão em Buenos Aires, por que diabos os brasileiros precisariam de três colossos da classe Dreadnought se o hegemônic o Império Britânico, com interesses a defender em praticamente todos os mares e oceanos, ostentava somente um na ocasião?
Para a felicidade geral dos grandes fabricantes de armamentos, todos do hemisfério norte, uma nova corrida militar raiava no horizonte da América do Sul. De 1906 a 1907, enquanto o estaleiro britânico W. C. Armstrong Whitworth & Company recebia as encomendas dos brasileiros, o Executivo argentino, entre outras medidas, estendeu o serviço militar obrigatório em um ano e anunciou a criação, no Exército, de sete batalhões, uma companhia de infantaria, um regimento de artilharia montada e uma bateria de metralhadoras. E mais: solicitou ao Congresso verbas para reforçar a Marinha.
Antes mesmo de receber o sinal verde dos parlamentares, Alcorta reforçou sua artilharia por conta própria: em novembro de 1906, colocou Estanislao Severo Zeballos no comando da chancelaria. A nomeação do ministro – que já havia ditado os rumos da diplomacia platina por duas vezes, entre setembro de 1889 e outubro de 1892 – causou preocupações e temores, e não apenas a Rio Branco, que desde 1902 chefiava o Ministério das Relações Exteriores do Brasil. “Un sujeto que durante veintecinco años há estado predicando la guerra com todo el mundo, á quien no há satisfecho ninguna paz y para quien el armamento del país es uma cuestión especial, porque el país tiene á la fuerza que pelearse com alguién, Chile, el Brasil ó el demónio – un sujeto en tales condiciones de mentalidad, puede ocasionarse las más ingratas sorpresas”, disparou o jornal oposicionista “El Diario”, de Buenos Aires, poucas horas após posse de Zeballos.
O editorial revelou-se profético. Em meados de 1908, o chanceler preparava uma surpresa e tanto, deixando momentaneamente em paz os chilenos e o príncipe das trevas. Adepto da tese de que a melhor defesa é o ataque, Zeballos propôs ao gabinete presidencial, em 10 de junho de 1908, um plano de ação militar. A idéia era tornar ultimato uma sugestão apresentada anteriormente ao Brasil: este teria que se contentar com apenas um dos Dreadnoughts encomendados, vender um segundo à Argentina e cancelar a encomenda do terceiro. Se a resposta tardasse ou fosse negativa, Zeballos previa, in extremis, a mobilização de 50 mil reservistas e o envio de uma esquadra para tomar o Rio de Janeiro, então capital brasileira. Dessa maneira, o governo de Affonso Penna não teria opção a não ser abdicar de seus supostos projetos expansionistas e imperialistas.
“En caso de resistencia formal de Brasil, le hariamos saber que no estabamos dispuestos a permitir la incorporacion de los grandes acorazados a su escuada [...] le dariamos al Brasil ocho dias de plazo para resolver su situación; y al mismo tiempo hariamos jestiones en Europa para explicar a las grandes potencias nuestra actitud por la paz y para asegurarla por muchos años, aunque tuvieramos que pasar um mês de ajitaciones en esta negociación diplomática ó en la ocupación de Rio de Janeiro, que según los ministros de Guerra y Marina, era un punto estu diado y facil, por la situación indefensa de Brasil”, escreveu Zeballos a Roque Sáenz Peña, ministro argentino na Itália, em 27 de junho daquele ano.
O problema do chanceler argentino é que, como visto acima, ele também colecionava rivais graúdos em sua própria terra. A começar pelos grupos dos ex-presidentes Bartolomé Mitre (1862-1868), falecido em 1906, e Julio Roca (1880-1886 e 1898-1904), ambos defensores de uma entente com o Brasil e o Chile. De certa forma, portanto, não pode ser considerada uma surpresa absoluta o vazamento da ultra-secreta proposta de ataque ao Rio de Janeiro pelo jornal “La Nación”, da família Mitre, na edição de 11 de junho de 1908, ou seja, no dia seguinte à sua aprese ntação na reunião do gabinete presidencial.
O furo de reportagem – que teria contado com a “colaboração” do ministro da Marinha, Onofre Betbeder, que ocupara o mesmo posto no segundo governo de Roca – tornou insustentável a permanência de Zeballos no cargo. No dia 16, ele entregou sua carta de demissão a Alcorta, recusando a oferta para assumir o Ministério da Justiça e Instrução Pública. Em 22 de junho, transmitiu o comando da pasta a Victorino de La Plaza, que governaria o país de 1914 a 1916.
O Telegrama nº 9
Mesmo afastado do governo, Zeballos continuou a disparar contra o Brasil, mirando em seu chanceler. E causava estragos. Desde a época de sua renúncia ao Ministério das Relações Exteriores, insinuava que tinha em mãos documentos que comprovavam as intenções imperialistas do grande vizinho. Em setembro, voltou à carga em artigo publicado na sua “Revista de Derecho, Historia y Letras”, reafirmando ter provas de que o Itamaraty pretendia intrigar a Argentina com a Bolívia, o Peru e o Uruguai, aproveitando-se disso para estender sua influência sobre essas nações.
Rio Branco rebateu a denúncia em 19 setembro, por meio de nota oficial em que acusava o desafeto de agir de má-fé. Zeballos, então, lançou um desafio, publicado na edição de 20 de outubro de “La Prensa”: “Revise el barón de Rio Branco su archivo secreto del Pacífico y lea el documento original que en él existe con las siguientes señas: 17 de junho 1908, a las 6 horas e 57 minutos. Número 9, quarta 17 Ponto”.
O texto em questão era um telegrama cifrado enviado pela legação diplomática brasileira em Buenos Aires para a representação de Santiago e que teria sido interceptado pelo então demissionário chanceler argentino. Na versão que Zeballos fez vazar, publicada inicialmente pelos jornais “La Argentina” e “Diario del Comercio” em 30 de outubro, Rio Branco instruía os diplomatas brasileiros no Chile a “propalar las pretensiones imperialistas del Gobierno argentino en los centros politicos y sus pretendidos avances de dominio sobre Bolivia, Uruguay e Paraguay y nuestro Río Grande”. O trecho final era devastador: “Demonstrar bien el hecho de que debido al carácter voluble de los argentinos, ellos no tienen, en tiempo alguno, estabilidad interna y externa, y que la ambición de figurar los desmoraliza, sacrificando el mérito, como sucede en la actualidad, con descrédito de sus estadistas, sin reparar los perjuicios que irroga la falta de seriedad que tanto los caracteriza. Es indispensable aprovechar la oportunidad de este momento”.
Para tentar encerrar a polêmica, e minimizar seus efeitos sobre as já combalidas relações entre os dois países, Rio Branco agiu rápido. Antes mesmo de a “bomba” de Zeballos chegar às rotativas, pediu ao novo ministro brasileiro em Buenos Aires, Domício da Gama, que obtivesse uma cópia do texto e providenciasse junto às autoridades argentinas reproduções autenticadas do Telegrama nº 9. A munição brasileir a foi reforçada com cópias da mensagem recebida pela representação diplomática em Santiago, devidamente reconhecidas pelo serviço de telégrafos do Chile. Todos esses documentos foram divulgados pelo chanceler, que também tornou pública a chave criptográfica usada no despacho. Decifrada, a mensagem versava sobre um tratado de aliança entre as três principais nações do Cone Sul, o Pacto ABC, que começara a ser discutido na gestão de Bartolomé Mitre e ganhara corpo no segundo mandato de Roca:
“Sobre o projeto de tratado político, independente das modificações e acréscimos que teríamos de propor, devo desde já declarar, e convém dizê-lo a esse governo, que não achamos a opinião suficientemente preparada em Buenos Aires para um acordo com o Brasil e o consideramos inconveniente e impossível enquanto o sr. Zeballos for ministro. Jornais por ele inspirados têm feito uma campanha de falsas notícias, com o fim de despertar, como tem despertado, velhos ódios contra o Brasil. Não podemos figurar como aliados de governo de que faz parte um ministro que, temos motivos para saber, é nosso inimigo. O seu propósito, como disse a íntimos, não era promover a tríplice aliança Brasil-Argentina-Chile, mas sim separar o Chile do Brasil”. O tom de Rio Branco nas linhas finais em nada lembrava a arrogância e a insídia presentes na versão circulada por Zeballos: “Sempre vi vantagens em uma certa inteligência política entre o Brasil, o Chile e a Argentina [...] mas a idéia não está madura na República Argentina. Houve ali até um retrocesso, estando hoje afastados do Governo e hostilizados todos os nossos melhores amigos”.
O Barão acusou o ex-ministro argentino de ter entregue o telegrama cifrado a um “conhecido embusteiro”, para que fosse “decifrado”, e de usar a versão falsificada para enganar o presidente Alcorta. Tudo com o objetivo de facilitar a aprovação, pelo Congresso argentino, do projeto do Executivo para a compra de armamentos. A denúncia e os documentos apresentados pelo Brasil ao governo argentino e à opinião pública tiveram boa acolhida nos jornais oposicionistas de Buenos Aires, caso de “La Nación”, mas foram contestados pelos situacionistas, como “La Prensa”. O temor era de que o tiroteio verbal se transformasse em tiroteio de fato.
“No faltaron, por cierto, incidentes premonitorios de un conflicto armado como el célebre Telegrama nº 9, presentado entonces por Zeballos como prueba de la política antiargentina de Rio Branco y que éste calificara de vulgar 'faux', por nuestro canciller”, escreveu, em “Historia de las Relaciones Internacionales Argentinas” (Editorial Pleamar, 1978), o historiador e chanceler (1962) Roberto Etchepareborda, que tinha lá suas dúvidas em relação ao texto apresentado pelo Barão. “El oscuro episodio sigue aún en tineblas.”
Desde o início da confusão, o ministro brasileiro na Argentina, Domício da Gama, fora contrário a uma resposta às insinuações e acusações do ex-chanceler platino. Ponderou com Rio Branco, sem sucesso: “Os que o conhecem de longa data [Zeballos] sabem que nada o abate e mortifica tanto como o silêncio feito em torno de sua espetacular pessoa".
Por ironia, foi justamente o silêncio do governo Alcorta durante a querela que levou o sempre comedido Gama não ao abatimento, mas à ira. Na segunda quinzena de novembro, o diplomata quase chegou a bater boca com o chanceler Victorino de La Plaza, em jantar oferecido pelo ministro americano, Spencer Eddy, no Jockey Club portenho. Ao saber que La Plaza queria marcar uma reunião para agradecer o envio da documentação sobre o Telegrama nº 9, e nada além disso, ele se irritou e foi cobrar o colega de ofício: “Apezar da minha insistência sobre o bem que fasia uma declar ação mais completa, menos reservada do que o simples agradecimento, não autorisou a fazer suas as minhas palavras e manteve-se no simples agradecimento. Declarei-lhe então que isso não telegrapharia [ao Rio de Janeiro], que era insufficiente, e levantamo-nos sem chegar ao accordo. Muitas pessoas puderam ouvir a conversa em voz alta, levantando eu muito a voz varias vezes”, escreveu Gama a Rio Branco, em 4 de dezembro.
O Itamaraty pode até ter levado a melhor no episódio do Telegrama nº 9, mas a vitória no atacado coube a Zeballos. Em 16 de dezembro, os congressistas argentinos sancionaram a Ley 6.283/08, a “Ley de Armamentos”, autorizando a compra de dois encouraçados, seis destroyers de primeira classe, destinados à esquadra oceânica, e 12 de segunda classe, para a defesa da foz do rio da Prata e de Bahía Blanca, que em 1896 passara a abrigar a principal base da Marinha de guerra, Puerto Belgrano. O texto previa ainda, se o Executivo julgasse necessária, a aquisição adicional de um encouraçado, três destroyers de primeira classe e quatro de segunda, limitando o investimento total a 32 milhões de pesos ouro.
A Argentina preparava-se para entrar na era dos Dreadnoughts. Encomendados a estaleiros norte-americanos, os encouraçados Rivadavia e Moreno deslocariam até 31.496 toneladas e teriam, cada um, quatro canhões de 76 mm, 12 de 152 mm e 12 de 305 mm. Seu poder de fogo seria equivalente ao dos brasileiros São Paulo e Minas Geraes, que já ganhavam contornos. Em setembro de 1908, enquanto Rio Branco e Zeballos travavam um novo duelo, o Minas Geraes era lançado ao mar em Southampton, iniciando-se então a última fase de sua construção.
Até a entrega do primeiro encouraçado, o que ainda demoraria uns bons meses, o Brasil continuaria em posição muito frágil para defender seus portos. Rio Branco chegou a propor a Affonso Pena a compra de alguns vasos de guerra ingleses, o “que nos daria logo esquadra superior à argentina, pondo-nos ao abrigo de qualquer premeditado insulto”. Mas a idéia, apesar de contar com a simpatia presidencial, foi torpedeada pelo ministro Faria de Alencar, que temia prejuízos ao seu Programa Naval. O jeito era torcer para que o “tresloucado governo Alcorta”, na definição do Barão, não abrisse fogo.
Não abriu. As relações entre Brasil e Argentina, embora tensas, não sofreram sobressaltos no ano seguinte. O Pacto ABC acabou esquecido em alguma gaveta pelo governo brasileiro, que julgava contraditório e inútil discutir uma política regional de alianças enquanto Alcorta permanecesse na Casa Rosada. A antipatia pelo mandatário argentino, aliás, ficou mais do que evidenciada pela ausência de uma delegação oficial brasileira nos festejos do centenário da Revolução de Maio, em 1910.
Dos três Dreadnoughts encomendados pelo Brasil, dois reforçaram sua Marinha, o Minas Geraes e o São Paulo. Em novembro de 2010, pouco após a sua incorporação, a dupla aterrorizou não a cidade de Buenos Aires, como temiam Alcorta e Zeballos, e sim a do Rio de Janeiro, durante a Revolta da Chibata. Ao fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918, ambos os encouraçados, assim como seus pares argentinos, eram considerados obsoletos. Além dos estaleiros britânicos e americanos, o único sujeito que deve ter ganho algum dinheiro com a implicância do “tataravô” de Julian Assange com Juca Paranhos foi Eduardo Leite, diretor do curta-metragem “Zé Bolas e o Famoso Telegrama Número Nove”, grande sucesso nos cinemas na temporada de 1909.
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