Prevaricação humanitária

O Nobel da Paz para duas mulheres da Libéria e uma do Iêmen nos leva a indagar por que autoridades e jornalistas brasileiros costumam se omitir sobre a opressão contra outros povos. Sofreriam de humanofobia ou de maquiavelismo pragmático?



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O sol nasceu mais brilhante em dois dos mais obscuros e remotos pontos do planeta. Um é a Libéria, o outro, o Iêmen. Se algum dos senhores, prezados leitores, jamais ouviu falar de um ou de outro desses pontos, não se culpe por inteiro, mas divida o fardo com as autoridades e os jornalistas brasileiros. Essas duas categorias sofreria de humanofobia crônica, ora aguda. Só conseguem olhar para o próprio umbigo, só sabem praticar a tal “realpolitik”, a diplomacia e a cobertura jornalística pragmáticas e amorais, baseadas nos valores maquiavélicos, profissionais incapazes de identificar o significado de expressões como Humanidade, Humanismo, Solidariedade ou Paz. Nosso consolo é que existe um punhado de homens, cidadãos de um outro ponto remoto e gélido do planeta chamado Noruega, que pegou para si a missão de descobrir pequenos fachos de luz em meio à escuridão.

Pois esses noruegueses acabam de conceder o Prêmio Nobel da Paz para três mulheres que têm se dedicado a lutar pela Liberdade, aqui grafado com letra maiúscula. Duas delas são da Libéria, Ellen Johnson Sirleaf e Leymah Roberta Gbowee. A terceira é do Iêmen, Tawakkul Karman. Quem são elas? Algum dos senhores leitores já ouviu falar de alguma delas? Não? Nem eu. E quanto a esses tais países chamados de Libéria e Iêmen, alguém arrisca dizer algo sobre eles? É natural que poucos saibam, que jamais tenham lido a respeito dessas mulheres ou desses países na imprensa brasileira. Ou na imprensa ocidental.

Sucessivos governos e sucessivos editores brasileiros igualmente não se preocupavam com os conflitos na América Central quando o costa-riquenho Oscar Arias ganhou o Nobel da Paz em 1987. Meses antes, ele esteve no Brasil atrás de conversas com autoridades e jornalistas. Ninguém lhe deu a menor pelota. Ao fim e ao cabo, conseguiu reunir três repórteres em um restaurante em Brasília, que lhe concederam atenção em troca do jantar e atendendo ao pedido de amigos comuns – mas nenhuma linha foi publicada a respeito de sua luta pela paz no sub-continente. Autoridades e jornalistas também não estavam nem aí para a faxina étnica perpetrada já havia dez anos pela Indonésia no Timor Leste, antiga colônia portuguesa, quando em 1996 o bispo Ximenes Belo e o professor José Ramos Horta ganharam o Nobel da Paz. Continuam até hoje sem abrir espaço para o tal Timor, como para outros pontos remotos como a Libéria, o Iêmen, a Somália, o Sudão...

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Mesmo que repassem pela internet mensagens edificantes atribuídas ao Dalai-Lama, tampouco lhes importam os massacres que a China continua efetuando no Tibet, a opressão política do regime comunista contra seu povo, os apedrejamentos das mulheres muçulmanas na Nigéria ou no Irã, ou o fato de haver 150 milhões de mulheres que sofreram a extirpação clitoriana na África e Oriente Médio. Ano passado, quando o professor de literatura Liu Xiaobo ganhou o Nobel da Paz, o governo chinês ameaçou boicote econômico a todo e qualquer país que ousasse prestigiar a cerimônia. O governo Lula optou pela encenação e mandou como representante um diplomata subalterno, discreto o suficiente para não chamar a atenção de Pequim. Não passou, enfim, de um ato de prevaricação humanitária.

Um pouco antes, quando foi denunciada a morte por apedrejamento da iraniana Sakineh Ashitiani por suposto adultério, sensibilizando autoridades e celebridades em todo o mundo, Lula desdenhou da barbárie dizendo-se amigo do presidente doidivanas Mahmoud Ahmadinejad --e, por conseguinte, não poderia se intrometer em assuntos internos ou culturais de outros países. Reeditava, assim, aquela diplomacia da cumplicidade criminosa do primeiro-ministro Neville Chaberlain quando imaginou que pudesse tornar a Inglaterra nação amiga da Alemanha de Adolf Hitler. Pegou tão mal para Lula que logo a seguir ele tentou recuar, encenando oferecer asilo político à condenada. Em junho último, há apenas quatro meses, portanto, a iraniana Shirin Ebadi, Nobel da Paz 2003 em reconhecimento à sua luta pelos direitos das mulheres no Irã, tentou ser recebida pela presidente Dilma Roussef. Em vão.

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Continuamos com nossa política externa oscilando entre o maquiavelismo pragmático, a cumplicidade criminosa e prevaricação humanitária. Portanto, não há surpresa alguma no fato dos leitores nunca terem ouvido falar das premiadas deste ano, ou não saberem o que vem a ser Libéria ou Iêmen. Mas quem são, afinal? Por que chamaram atenção daqueles noruegueses?

Ellen Sirleaf, 72 anos, é a atual presidente da Libéria, primeira mulher eleita chefe-de-Estado na África. Leymah Roberta Gbowee, seis filhos, é a ativista que organizou o movimento que ajudou a colocar fim à Segunda Guerra Civil da Libéria, em 2003, levando, em consequência, Ellen Gbowee ao poder. Tawakkul Karman, por sua vez, muçulmana, 32 anos, mãe de três filhos, é uma jornalista e ativista de Direitos Humanos que têm lutado no limite da responsabilidade pela liberdade de expressão e contra a ditadura no Iêmen. As duas primeiras arriscaram seriamente suas vidas pela Paz. A terceira ainda arrisca pela Liberdade.

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Curioso o destino da Libéria. Foi fundada no início do século 19 como uma colônia para ex-escravos por iniciativa do presidente dos Estados Unidos, James Monroe. Ele fazia parte de um grupo de cidadãos que acreditava seriamente que os negros jamais se adaptariam à sociedade democrática e capitalista que aqueles homens livres e de bons costumes estavam fundando na América. Monroe começa então a se mobilizar para financiar a fundação de uma colônia de libertos na Mãe-África. Só na terceira tentativa, em 1822, os negros sobreviveram à viagem e fundaram uma colônia, chamada de Libéria, de Liberdade, com a capital em Monróvia, assim batizada em homenagem a seu idealizador. Em 1847, a Libéria declara independência dos Estados Unidos e torna-se, assim, a primeira nação livre da África.

Quando a militante Leymah Roberta inicia o movimento pela Paz que levaria Ellen Gbowee anos depois ao poder, a Libéria era um dos pontos mais miseráveis e cruéis do planeta Terra, o mais próximo que possa existir da alegoria do Inferno de Dante. Nas duas guerras civis pelo controle das minas de diamantes, iniciadas em 1989 e só terminadas em 2003, as milícias do terror criadas pelo ditador Charles Taylor cortavam, sem qualquer cerimônia, cabeças, pernas e braços dos adversários, incluindo crianças, concedendo às vítimas tão-somente o direito de escolher entre “manga-curta”, ou seja, corte acima do cotovelo, ou “manga-longa”, corte próximo ao punho. Foram mais de 200 mil mortos e 1 milhão de refugiados. Algum dos senhores, prezados leitores, leu notícias em nossa imprensa pátria sobre os massacres?

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Talvez tenham ouvido falar de assunto similar por conta do filme “Diamantes de Sangue”, estrelado por Leonardo Di Caprio, que se passa na vizinha Serra Leoa, cuja milícias adotaram o terror das “mangas-curtas” e “mangas-longas”. Mas quando o filme foi lançado, em 2008, os massacres já haviam sido interrompidos. Ou talvez muitos dos senhores tenham ouvido falar da Libéria ano passado, quando veio à publico o escândalo de que a modelo Naomi Campbell, quando em visita a Monróvia, aceitou que o ditador Taylor lhe presenteasse com três enormes diamantes, entusiasmado que estava com a possibilidade de adentrar-se à alcova da deusa de ébano.

No caso do Iêmen, trava-se por lá duas lutas simultâneas. Uma, pela Liberdade política e pelo fim da ditadura de Ali Abdullah Saleh. Outra, pela liberdade para as mulheres. As duas lutas se encontraram a partir de Janeiro, quando teve início a Primavera Árabe, primeiro na Tunísia, depois no Egito, recentemente na Líbia. Lideradas pela jornalista Tawakkul Karman, as mulheres estão indo às ruas, mesmo com seus pesados véus, exigindo Liberdade política e o fim de um sistema de opressão medieval às mulheres. Lá é um dos poucos países islâmicos onde elas são obrigadas a usar o niqab, aquele véu negro e espesso que cobre todo o rosto, deixando apenas os olhos de fora. Pior que a niqab, só a burqa dos talebãs do Afeganistão.

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No próximo ano, quando aquele punhado de senhores da Noruega anunciar o próximo agraciado com o Nobel da Paz, é bem provável que sejamos mais uma vez surpreendidos com algum nome ou história que nos seja por demais remota. O mais surpreendente é que as nossas principais heranças culturais, a grega e a cristã, nos legaram um sistema de representações e de valores baseados no Imaginário da Liberdade. Desde de que Eva convenceu Adão a se libertar do julgo do Criador, desde que Prometeu roubou o fogo sagrado para conceder a Liberdade aos homens, somos levados a acreditar que a Humanidade está em evolução, em busca da construção do Paraíso Perdido aqui mesmo na Terra.

Coube a Hegel a melhor síntese desse imaginário da evolução. Segundo o pensador, toda a História da Civilização e da Humanidade tem sido trespassada por um único fio condutor – a da busca incessante pela Liberdade, com suas idas e vindas, às vezes com fluxos, por vezes com afluxos, um passo atrás, dois à frente, a tese e a antítese, mas em síntese, o homem tem construído a História sempre caminhando rumo à Liberdade.

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Nesta hora que somos mais uma vez surpreendidos com o anúncio dos vencedores do Nobel da Paz, cabe-nos questionar se nós, os brasileiros, estamos de fato inseridos na História? Não aquela história que encara os acontecimentos como oportunidades de prevaricar em nome da “realpolitik”. Mas sim aquela História com H maiúsculo, a da busca pela Liberdade, aquela que está sempre lutando por um projeto chamado “Humanidade”. A mesma História que está sendo construída por homens como Oscar Arias, José Ramos Horta e Liu Xiaobo. E por mulheres como Ellen Johnson Sirleaf, Leymah Roberta Gbowee e Tawakkul Karman.

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