O fim de Kadafi, contradições e maniqueísmos

O ditador também exibe algumas realizações civilizatórias. Respaldado pelo petróleo, investiu em saúde e educação e até distribuiu alguma renda



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Parte da esquerda via Muammar Gaddafi como uma pedra no sapato do imperialismo (embora, passada sua fase carbonária, já tivesse se acertado com as grandes nações e corporações capitalistas) e como o responsável por algumas melhoras nas condições de vida do povo líbio.

Outra, como pouco mais do que um tirano megalomaníaco e sanguinário.

Esta última, na qual me incluo, tem sensibilidade mais aguçada em relação a tudo que se pareça com as ditaduras que enfrentamos por aqui.

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Além de não esquecer as lições do pesadelo stalinista: o dano imenso à causa revolucionária produzido por regimes ditos de esquerda que, em nome de Marx, arquivaram a promessa marxista de instauração do "reino da liberdade, para além da necessidade", acreditando que bastasse impor a justiça social a ferro e fogo, de cima para baixo e sobre montanhas de cadáveres.

Marx incumbiu os revolucionários de criarem condições para que o proletariado assumisse seu papel de sujeito da História.

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Era-lhe estranha, para não dizer inaceitável, a noção de que chegassem ao poder de qualquer jeito (inclusive as quarteladas de militares nacionalistas) e então, segurando firmemente suas rédeas, oferecessem alguns benefícios ao povo, reduzido à condição de objeto da História.

Se não são os explorados que conquistam o poder, também não vão ser eles que o acabarão exercendo. E despotismos, mesmo que inicialmente pareçam ser benígnos, acabam degenerando em intimidações bestiais e privilégios grupais ou familiares...

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É exatamente o quadro que Hélio Schwartsman nos apresenta em sua inspirada coluna desta 6ª feira, Combinação mortal:

"...Não há dúvida de que Gaddafi foi um tirano particularmente selvagem. A lista de malfeitos inclui assassinato, estupro, terrorismo e roubo.

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Estima-se que ele e sua família tenham pilhado bilhões.

Irascível, eliminava opositores até por críticas leves ao regime. Conta-se que, numa ocasião, deixou os corpos de adversários que enforcara apodrecendo na praça central de Trípoli. Para garantir que todos captassem a mensagem, desviou o trânsito, forçando motoristas a passar pelo local.

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O mundo, porém, não é um lugar tão simples como gostaríamos. O ditador também exibe algumas realizações civilizatórias. Respaldado pelo petróleo, investiu em saúde e educação e até distribuiu alguma renda. A expectativa de vida saltou de 51 anos em 1969 para mais de 74. A Líbia tem os melhores índices de educação da África. O ditador também fez avançar os direitos das mulheres. O maniqueísmo funciona melhor em nossas mentes que na realidade..."

...para que o 'guia da revolução' se tornasse o assassino em massa que virou, foi preciso acrescentar o idealismo, isto é, a convicção de servir a um Deus e a uma ideologia infalíveis. Foi uma combinação mortal".

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Como vimos do nosso lado do mundo, ditaduras, mesmo quando tenham avanços econômicos para exibir, acabam saturando. Ninguém aguenta viver indefinidamente debaixo das botas.

E é bom que tal aconteça, aliás. Ai de nós se os seres humanos se conformassem com a vida de gado em fazenda-modelo ("povo marcado, povo feliz", no dizer do Zé Ramalho)! Nesta eventualidade, bastaria os donos do mundo serem um pouquinho menos gananciosos, aumentando a quota de migalhas do banquete distribuídas ao povão, que sua dominação seria eterna.

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Então, Gaddafi caiu porque a maioria do povo líbio ou estava contra ele, ou indiferente à sua sina. O engajamento das nações ocidentais ao lado dos rebeldes não foi o fiel da balança, pois o apoio das massas reequilibraria as forças, se Gaddafi o tivesse.

Inimigo pior, bem pior, o glorioso povo espanhol encarou em 1936, detendo a marcha triunfal dos generais fascistas para o poder e obrigando-os a travarem uma terrível guerra civil.

Já a ditadura líbia caiu de podre, em curto espaço de tempo e sem nada que caracterizasse uma legítima resistência popular ao avanço dos revoltosos.

Fica para a esquerda a lição de que precisa voltar a levar em conta as contradições, como marxistas devem fazer, deixando de lado o maniqueísmo simplista de não enxergar defeitos em quem tem algumas virtudes que lhe agradam.

Militares nacionalistas, contrários ao colonialismo e ao imperialismo, não equivalem a revolucionários. Ditaduras que ofereçam alguns benefícios ao povo não equivalem ao mundo novo pelo qual socialistas e anarquistas lutamos.

Portanto, não nos cabe, jamais, os apoiarmos incondicionalmente, nem nos identificarmos com eles sem ressalvas.

Caso contrário, o homem comum deduzirá que nosso objetivo final é a implantação de regimes sanguinolentos como o de Gaddafi -- o que, aliás, a propaganda da direita não cansa de trombetear.

Celso Lungaretti é jornalista e escritor, autor do livro Náufrago da Utopia

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