Nolan Higdon: das notícias falsas às notícias-lixo
Escritor Nolan Higdon comenta o caso do jornal USA Today e sua repórter Gabriela Mirando, que publicou reportagens com personagens inventados

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Por Nolan Higdon.Publicado no site Project Censored, traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247
Em 16 de junho de 2022, o jornal USA Today anunciou que removeria 23 estórias escritas pela sua repórter de “breaking news” Gabriela Mirando dos seus arquivos. A decisão foi tomada depois que uma auditoria interna descobriu que as estórias eram notícias falsas [fake news]. Miranda incluiu citações atribuídas à uma pessoa errada e, em alguns casos, à indivíduos que não existiam. Uma rápida leitura das estórias revela que Miranda não era uma repórter super-zelosa que pegava atalhos em nome de um jornalismo destemido. Ao contrário, ela era uma jovem repórter ambiciosa que produzia as próprias iscas de cliques [clickbaits] que não mereceriam ser noticiadas que são recompensadas pelas mídias corporativas tradicionais. Aqui estão alguns exemplos:
[“O passeio da Bela Adormecida no parque de diversões da Disneylândia enfrenta uma retaliação pelo beijo no Príncipe Encantado”]
[“'Amigos também são família': Como cresceu o feriado não-oficial de Dar-amigos”]
[“Os dez licores mais populares durante o Natal e por que você deve agarrar o seu agora”]
[“Funcionário do McDonald's pula para fora de uma janela do 'drive-thru' para salvar uma mulher que estava se asfixiando com um 'nugget' de frango”]
[“Um opositor às vacinas promove a terapia de urina como 'antídoto ao COVID' sem evidência científica”]
[“Se não for o jeans 'skinny' [justo], então o que será? A Geração Z diz aos Millenials que os jeans deles estão fora de moda”]
nota do tradutor: não surpreendentemente o jornal USA TODAY publicou com destaque cada uma destas junk-news; quando estas foram denunciadas e desmentidas, o mesmo jornal as tirou do arquivo – alegando que não estavam de acordo com os padrões deles (cliquem em qualquer uma e vejam).
Jornalismo de qualidade merece ser noticiado – isso quer dizer que é novidade, não-usual, interessante, significativo e é uma estória de interesse humano. Durante décadas, os estudiosos alertaram que, na sua busca pelo lucro, a mídia corporativa tradicional abandonou o jornalismo. Hoje em dia, as notícias corporativas não recompensam o jornalismo de qualidade; assim como nos dias do “jornalismo amarelo” de cem anos atrás, elas promovem conteúdos triviais que podem viralizar agora online. Há quarenta anos, o fundador do website 'Project Censored', Carl Jensen, se referia ao renascimento deste tipo de conteúdo como “junk food news” [notícias de comidas-lixo] porque, assim como o fast-food parece falsamente ser comida de verdade, 'junk food news' não merecem ser notícias, são lixo sensacional que parece ser jornalismo integral.
A auditoria consentida de Miranda revela que, na tradicional mídia corporativa de notícias, quem estiver interessado em subir na carreira deve produzir junk-food news mesmo se tiverem que inventá-la. Muitos jovens na indústria [de notícias] reconhecem esta realidade. Depois de terminar a faculdade em 2021, Miranda passou quase um ano produzindo conteúdos falsos como jornalista no The Gainesville Timese no USA Today. Miranda não é uma 'outlier' [ela é do ramo].
Outros, como Taylor Lorenz, do Washington Post, cuja idade está em disputa, porém se acredita estar na segunda metade da sua terceira década de vida, teve uma carreira lucrativa vendendo conteúdos que não mereciam ser notícias e com reportagens desleixadas. Efetivamente, no seu posto de escritora de destaques na WaPo, Lorenz identificava publicamente que operava a conta 'Libs of TikTok', fazendo com que aquele usuário fosse 'doxxed'. Este episódio ilustra o fato que o WaPose desviou muito do que caracterizou os seus jornalistas, que eram conhecidos pelas reportagens investigativas que derrubaram o presidente Richard Nixon durante o seu mandato. Agora, eles elogiam os seus repórteres por identificar usuários insignificantes das mídias sociais.
Lorenz não só foi acusada de reportar notícias de junk-food, mas, como Miranda, ela é acusada de reportar falsidades. Em 2020, quando ela trabalhava no The New York Times, Lorenz foi processada pela agente de talentos de influencer e empresária Ariadna Jacob por divulgar “numerosas declarações falsas e depreciativas”. O processo judiciário ainda está em tramitação. Em junho de 2022, o The New York Timesrevelou que Lorenz havia fabricado duas entrevistas com YouTubers durante o julgamento de Amber Heard e Johnny Depp. Como resultado disso, Lorenz foi demovida do seu posto como escritora de destaques no WaPo.
As notícias de junk food inventadas por repórteres corporativas como Miranda e Lorenz teriam sido inofensivas caso não distraíssem o público do jornalismo de qualidade. Isto ficou dolorosamente claro num episódio de junho de 2022 do show televisivo 'Real Time with Bill Maher'. O apresentador Bill Maher, que parece estar atualizado sobre qualquer assunto trivial reportado pela rede MSNBC, ficou estupefato quando a sua entrevistada, Krystal Ball, observou que a maior parte dos fundos de ajuda do governo alocados em resposta ao colapso da bolsa de valores em março de 2020, em plena pandemia do COVID-19, beneficiou as indústrias e não os indivíduos. Ao invés de discordar, Maher admitiu que ele não tinha qualquer lembrança do colapso da bolsa, nem dos fundos alocados às indústrias. Isso ajuda a explicar por que Maher repetiu como um papagaio o legado vácuo da mídia corporativa, assinalando que a pequena parte dos gastos governamentais alocados aos indivíduos era responsável pela inflação.
Ao invés de assumir a responsabilidade para desenvolver um sistema de mídias que recompensa falsidades e notícias de junk food, as mídias corporativas de notícias na sua maior parte fica na defensiva. Por exemplo, a CNN desenvolveu o programa 'Reliable Sources' ['Fontes Confiáveis']de Brian Stelter, o qual argumenta semanalmente que os competidores da rede [CNN] estão vendendo falsidades, mas que a CNN é um bastião do verdadeiro jornalismo nos EUA. No entanto, Stelter, aos 36 anos de idade, é mais uma pessoa jovem enamorada por vender notícias de junk food e falsidades. Por exemplo, ele se curvou sob pressão quando Stephen Colbert, um comediante dos shows da noite, perguntou como a CNN havia permitido que o apresentador Chris Cuomo inventasse desculpas sobre as impropriedades do seu irmão Andrew Cuomo quando este era governador do estado de New York. Stelter disse que isto era uma questão “difícil” para a CNN, porque nada parecido como isso havia ocorrido antes. Ele alegava que “se abrirmos o livro de ética do jornalismo, não existe uma página para isso.” Na verdade, o código de ética jornalística sempre inclui textos sobre como os repórteres precisam ser independentes de conflitos de interesse e devem evitar até a aparência destes.
Ao invés de confiar em falsidades, como ele fez no show de Colbert, Stelter frequentemente evita questões sobre aa falhas jornalísticas da CNN. Em 2022, ele sem-vergonhamente evitou uma pergunta de um estudante de uma faculdade sobre isso que citava exemplos específicos nos quais as reportagens da CNN foram imprecisas. De maneira parecida, ele reagiu com confusão quando, no seu programa, um Professor da Universidade de Yale acusou a CNN de ser uma rede de partido [político].
Assim como na queda de Roma, o declínio do jornalismo estadunidense é lento, porém é óbvio até para o mais jovem observador. O The New York Times, que revelou a estória do USA Today, é um caso interessante de estudo de caso desta trajetória. Há quase duas décadas, eles – e o Boston Globe– publicaram estórias fabricadas durante anos por Jayson Blair que incluíam fábulas mentirosas sobre o 'D.C. Sniper' [o atirador de elite] e a invasão do Iraque pelos EUA. Eles pareciam haver aprendido um pouco de Blair, porque logo depois eles publicaram estórias de fake news sobre armas inexistentes de destruição de massa no Iraque, divulgadas por Judith Miller, as quais ajudaram a convencer o público estadunidense sobre a invasão do Iraque em 2003. Mesmo após ter prometido de reassumir o seu compromisso com o jornalismo após a eleição de Trump, o The New York Timespublicou um podcast intitulado 'Caliphate' sobre um canadense que se tornou membro do ISIS e sobreviveu para contar a estória – a qual se provou ser falsa. Estas estórias ilustram o dano corrosivo causado pelas mídias corporativas tradicionais com a venda de fake news.
Parece claro que os jornalistas atuais querem ser vistos como bravos contadores da verdade, porém se recusam a fazer o trabalho árduo que requerem as reportagens investigativas sólidas. Ao invés disso, eles preferem fabricar estórias e sinalizar virtudes nas mídias sociais para gerar mais 'clicks', compartilhamentos e 'likes'. Muitas figuras ambiciosas nas mídias reconhecem corretamente que fabricar conteúdos sensacionalistas farão avançar as suas carreiras nas mídias corporativas tradicionais.
(*) Nolan Higdin é um estudioso sarcástico, julgador no 'Project Censored' (https://www.projectcensored.org/) e palestrante sobre Estudos e História das Mídias na Faculdade Merrill e na Universidade da California – Santa Cruz. Ele é autor do livro 'The Anatomy of Fake News' [A Anatomia das Notícias Falsas' (Fake News)] e coautor, com Mickey Huff, dos livros 'United States of Distraction' [Os Estados Unidos da Distração] e 'Let's Agree to Disagree' [Vamos Concordar em Discordar].
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