Às avessas

O mundo anda às avessas por outra pessoa. A revolução francesa decapitou o rei. Steve Jobs, o gênio da gola rolê, decapitou o mercado fonográfico – e agora começa a rolar as cabeças dos donos das mídias tradicionais



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No final do século 19, Huysmans, ao publicar “À rebours” (Às avessas), gerou a ideia de que tudo pode nascer de seu contrário. E de fato tem nascido: Watergate, o maior furo que a mídia deu no mundo, trazia a crônica de dois jornalistas que denunciavam a invasão de um prédio, ilegalmente, por motivos políticos e eivados de espionagem. Era o jornalismo denunciando a realpolitik dos republicanos. Ao que parece, agora invertemos a narrativa: um político, Zé Dirceu, diz que a imprensa invadiu ilegalmente seu hotel, por motivos políticos e eivados de espionagem. O mundo anda às avessas, como predicou o francês Joris-Karl Huysmans, numa tarde fria e calculista, de chuva horizontal, na Paris de 1882.

O mundo anda às avessas por outra pessoa. A revolução francesa decapitou o rei. Steve Jobs, o gênio da gola rolê, decapitou o mercado fonográfico – e agora começa a rolar as cabeças dos donos das mídias tradicionais. E não foi por uma dessas eventualidades com as quais, singularmente, o acaso se compraz: foi porque Steve Jobs intuiu, antes de todo mundo, o que poderiam representar para o futuro as metáforas que Marcel Duchamp entranhou nos seus “ready mades”, já se vão quase cem anos. Sagaz, Steve Jobs sacou, num desbunde armagedônico, a iminência do advento do mundo do corta-e-cola. Vivemos no mundo da bricolagem, do bric-à-brac. Cada um quer montar o seu, e bem do seu jeito. Foi o que Picasso, há quase cem anos também, começou a ver na arte africana, e que o esteta Jean Laude via no pastiche da África: um agenciamento de formas. Cada um quer agenciar a sua informação, seja o jornal ou a música. E agenciar não bastou mais: cada um quer criar a sua música, e o seu jornal. Steve Jobs matou a indústria fomográfica tradicional, com o I-Pod. Agora o I-Pad liquida, lentamente, a mídia impressa. O futuro, para os barões da mídia, é mais negro que asa de graúna, tio.

Quando, há cinco anos, as páginas dos jornais começaram a colocar na internet aquele avisozinho com as letras RSS (Realy Simple Sindication), estavam abanando o rabo pro leitor e dizendo, quase que genuflexamente, “por favor, não deixem de nos ler. Pelo RSS vocês vão poder editar as ordens das coisas que te damos”. O atalho que era a oferta de uma ediçãozinha era a primeira droga que os traficantes de informação paga tentavam dar ao seu pobre leitor. Mas não bastou. Vieram os hoje quase cem milhões de blogs no mundo, e o leitor ele mesmo passou a assumir a narrativa que sempre esteve nas mãos de seus titulares só porque tinham um diploma de jornalismo.

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Veja como as coisas caminham: quando Gutemberg inventou a imprensa por volta de 1450, um monge levava um ano para copiar um único exemplar da Bíblia. Em seu primeiro ano de trabalho, com sua máquina de impressão, Gutemberg produziu 180 Bíblias. Antes disso, a Universidade de Oxford, por exemplo, possuía apenas 122 livros, e o preço de cada um equivalia a uma fazenda de 200 alqueires. Por volta de 1501, cinqüenta anos após a invenção de Gutemberg, aproximadamente um milhão de cópias de 27 mil livros editados já circulavam pela Europa, e segundo o Oxford English Dictionary, o vocábulo “fato” aparece na língua inglesa apenas no século XVI, cem anos após a invenção de Gutemberg e com a seguinte definição: “algo que realmente ocorreu, com testemunho particular, mediante observação ou testemunhos autênticos, sumamente opostos às meras inferências.

É uma questão de tempo que os blogueiros não jornalistas comecem a dar credibilidade às suas páginas, deixando de fazer inferências em prol de relatos autênticos. Quando chegar essa fase, os jornais estarão definitivamente enterrados porque o público terá pendido tudo aquilo que ele sempre demandou do jornalismo feito por jornalistas: isenção, ética e o mínimo de correlação com os fatos.

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O mercado já reage: as vagas de jornalistas eliminadas nos jornais dos EUA desde que o centro de monitoramento “Paper Cuts” começou a contagem, em 2007, são de 21.008 em quatro anos e meio. O recorde foi em 2008, com 15.992 cortes. O ano de 2011 traz, até junho, 1.133 cortes. Um dado fornecido por Rosental Calmon Alves, tido e havido como o Umberto Eco do século 21, revela a redução de 21% no número de matérias submetidas ao Prêmio Pulitzer na categoria “reportagem investigativa”, ao comparar 1984-2010. E 43% de redução na categoria jornalística chamada de “interesse público” no mesmo período. Em 2006, 37% dos 100 maiores jornais não tinham repórteres investigativos: e só 10 tinham quatro.

Vejamos a música: é cada vez mais preocupante o cenário da indústria fonográfica mundial. De acordo com a IFPI, entidade que reune empresas do setor musical, em 2009 houve uma queda de 7% em relação ao ano

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anterior, de 2008 no número de vendas de musica física (CD por exemplo). Em contrapartida, as vendas de música na forma de faixas digitais tiveram um enorme crescimento de 9,2% totalizando um lucro de US$ 4,3 bilhões. Outro setor que também foi prejudicado é o de entretenimento musical que utiliza a publicidade nas rádios e a realização de shows: a queda desse setor foi de 8%.

Ano retrasado um amigo produtor musical fez um estudo engraçado: pegou por seis meses as músicas nos dez primeiros lugares da parada das rádios dos EUA. 80% delas tinham sido compostas a partir de “presets” extraídos do home Studio chamado “garage band”, que você encontra até no Apple Macintosh mais barato. Ou seja: compor música virou exatamente o que Picasso e Jean Laude haviam visto na arte africana: um agenciamento de formas. Viver virou editar. Estávamos acostumados a um espaço cênico em que jornalistas, artistas plásticos e músicos dominavam a cena com suas respectivas expertises. Como já referiu Giles Deleuze, o cênico se tornou obscênico, transparente. É por isso de São Paulo, por exemplo, e vê obras de arte que são instalações a convidar o público a entrar nelas, a alterá-las, a modificar a sua forma. Steve Jobs anteviu tudo isso. Os músicos também estão sendo decapitados porque pessoas sem formação musical formal estão compondo melhor do que eles, na base do corta-e-cola e da estética intuitiva: a diferença entre Luan Santana e o câncer é que o último evolui.

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O gênio da gola role sai de cena. Mas, antes, decapitou platéia, diretor e crítica.

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