Abanando o rabo
O público virou o grande concorrente do jornalista “de mercado” e dispõe igualmente da participação na produção de narrativas
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Há seis anos, em Londres, num congresso do International Consortium of Investigative Journalism (www.icij.org), o professor Rosental Calmon Alves, da Universidade de Austin, no Texas, decretou o surgimento de um coquete jornalismo “eucêntrico”. Havia um motivo, que poderia ser até a denegação do jornalismo como o conhecemos, estabeleceu Rosental, para tal: a progressão exponencial dos blogs. O leitor, essa entidade volta-e-meia colocada, pelos jornalistas, naquele nó corredio, que tanto o sabem fazer os carrascos, cansara-se de ver o mundo narrado por outrem. A narrativa passava, aos poucos, para as mãos do narrado.
Quando, nos primeiros cinco anos do novo milênio, os donos das mídias tradicionais se tocaram da perda da primazia que tinham sobre suas plataformas, da perda da hegemonia na contação dos fatos, do diabo enfim, abrandaram as tradicionais petulâncias com algumas reformazinhas. A vibração profunda e regular, brotada do leitor, esse maltratado histórico, vindicava uma participação maior naquele construto que ele teve de engolir por anos a fio: a história narrada por um jornalista profissional.
Foi assim que o mundo eucêntrico, preconizado por Rosental, teve a sua primeira revolução: consistia em abanar o rabo ao leitor, oferecendo-lhe, num primeiro momento, atrativos sob a designação genérica do vocábulo “eu”. Foi assim também que, de um dia para o outro, e amiúde, o consumidor de notícias se viu desimpedido de ter de aturar o jornalista -- num mundo versátil que lhe oferecia, num primeiro momento, a edição das páginas. No mundo primevo da participação do leitor você viu, com um sentimento imensurável de prazer, as mídias te oferecendo a edição de páginas, aqueles quadradinhos vermelhos ao pé dos portais, prometendo um RSS (really simple sindication): em que você, antes esnobado/rejeitado, agora era convidado a ter mecanismos de edição. A congregação, devota e estúpida, a unir jornalistas contra (e sobre) o leitor parecia se dissolver como água na água: quem sempre desprezou o consumidor de notícias passava a abanar-lhe o rabo. E quase genuflexamente pedindo: “Por favor, esgueire-se sobre nossas paginas, agora você pode agora editá-las”.
Mas nem isso bastou ao leitor, esse maltratado (leitor que escreve para jornal é louco, notava Paulo Francis): nos últimos cinco anos, a ideia sentenciosa de reconquistar um público ora em busca de sua própria narrativa teve de adotar novas técnicas. Ao convite de editar o mundo, via RSS, somaram-se novas classes de técnicas. Editar as paginas já não servia. As novas soluções adstringentes foram se sucedendo numa cronologia bem pontual: além de editar as páginas, o público poderia comentá-las, sugeri-las, e compartilhá-las em suas redes sociais. Isso gerou alguns monstrengos, como a teoria da cauda longa virando bem outra cousa: jornalistas remunerados por governos atacam determinado ponto, e liberam comentários, a um suposto público, sem controlar-lhes os comentários. Abaixo da reportagem, assinada pelo dono do site ou blog (geralmente um jornalista outrora famoso), sucedem-se comentários de leitores, cujo controle de identificação é mínimo ou nulo. É o que Noam Chomsky chama de “fabricação de consenso”: você acha que quem comenta aquilo é uma parcela expressiva e real de leitores, quando na maioria dos casos essa cauda longa de comentários é absolutamente falsa – e muitas vezes encomendada, para justamente fabricar-se consenso. Não espanta que os blogs e sites patrocinados por governos, oficial e extra-oficialmente, não disponham de controle nos comentários. Trata-se de uma terra de ninguém. Toda a ética exigida dos grandes jornais, nesta wasteland, vira pó de traque: o futuro da ética nesse território é mais negro que asa de graúna...
Somaram-se ainda novas abanadas se rabo ao leitor. Nos últimos três anos, New York Times e Washington Post lançam jornais de bairro. O Le Monde cria o www.lepost.fr , um jornal escrito por leitores, cuja produção é fiscalizada por um jornalista de carreira. Televisões, jornais, portais, todos passam a pedir que o leitor comum, aquele velho negligenciado do passado, relate as histórias de seu bairro, façam vídeos e fotos, e alguns até são pagos por isso. A frase de Tolstoi, “quer ser universal, fale de sua aldeia” nunca foi tão atual. Um dos sucessos mais retumbantes dos EUA é o www.everyblock.com , um site voltado a interesses paróquias de bairros e guetos, mas que faz sucesso em todo o mundo. A globalização virou blogalização: o bairro, e o leitor, passaram a ser os novos protagonistas. Mas não só protagonistas: o tão falado “crowdsourcing “nada mais é do que tentar fazer do leitor, esse maltratado, fonte de suas histórias. E mesmo as fontes tradicionais mais disputadas nem querem mais tanto falar com jornalistas: botam no seu blog e quem quiser que tire tudo dali. Um exemplo são os blogs do promotor e do ônibus, mantidos pelo promotor de Justiça Saad Mazloum, de resto uma fonte disputadíssima dentre os jornalistas que cobrem cidades. A Revolução Francesa decapitou o El Rey: a revolução da mídia, de seis anos para cá, está decapitando o jornalista.
Mas não é só no jornalismo que a perda da primazia da plataforma se opera. Na música, desde que o Apple Macintosh criou o programa “garage band”, qualquer um pode compor sua canção: basta escolher os milhares de “presets”, com riffs de guitarras e baterias pré-compostos. Compor música virou cortar e colar, um bric-à-brac em que o que vale é agenciar formas, e não mais criá-las. O jornalismo agora é feito pelo povão, e a musica também dá de barato ao populacho elementos para que ele a componha, apenas na base do corta e cola. A arte pós-moderna vai também por ai: ela requer que o consumidor de arte interaja com ela, a altere. No entender de Deleuze, o mundo cênico, tão característico da modernidade, dá origem a um mundo obscênico, transparente, interativo, por moderno, em que caem as tradicionais barreiras entre o musico, jornalista e artista. Requer-se que o povo seja o editor e o produtor de conhecimento.
Agora, que o público virou o grande concorrente do jornalista “de mercado”, e dispõe igualmente da participação na produção de narrativas, os donos das mídias esmeram-se um outro atrativo (que, pressupõe, salve-lhes o bolso). Trata-se da criação de “clouds”, nuvens de informação e o modelo é simples: o leitor, mesmo aquele que produz sua própria narrativa, quer tudo ao alcance das mãos. Um cidadão de 50 anos de idade, que acumulou milhares de livros e CDs ao logo de sua vida, não quer mais se mexer para procurar informação na sua hemeroteca, digamos. Quer CD, disco, informação, debaixo do nariz. A valorização de mercado dos portais está na produção de “nuvens” para que o leitor encontre tudo ali, sem mexer um milésimo de seus fundilhos.
Não se iluda se alguém no jornalismo se lhe abanar o rabo: o olhar do dono de mídia hoje é tão alegre quanto o do violinista do Titanic. Sabe que o futuro é incerto. Mas pode ser um pouco seguro se o leitor, esse antigo vilipendiado, puder participar do lance todo.
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