Vizinhos da Terra Ianomâmi já discutem vida pós-garimpo ilegal

No dia 13, porta-vozes de garimpeiros convocaram um protesto para "mostrar o caos que está ficando Roraima”. A manifestação foi um completo fiasco

Terra Ianomâmi
Terra Ianomâmi (Foto: Júnior Hekurari/Divulgação)


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Por Rubens Valente e Evilene Paixão, Agência Pública - No último dia 13, porta-vozes de garimpeiros em Roraima convocaram um protesto para uma rua de Boa Vista (RR) a fim de coincidir com a visita que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva faria naquele dia à terra indígena Raposa Serra do Sol. Segundo a mensagem distribuída por telefone entre os garimpeiros, era “a hora de mostrar o caos que está ficando Roraima”. Foram convocados “os garimpeiros de verdade desempregados e já passando dificuldades para mostrar ao Brasil que não está tudo bem”.

A manifestação foi um completo fiasco. Vídeos que registraram o evento mostraram não mais que uma dúzia de pessoas com alguns cartazes escritos à mão. Semanas antes, os garimpeiros haviam convocado um outro ato na praça central de Boa Vista (RR). Apareceram não mais do que 200 pessoas. Passados quase dois meses do início da operação de retirada dos garimpeiros da Terra Indígena Yanomami determinada em decreto pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o suposto “caos” que existe em Boa Vista é aquele que atinge os Yanomami, as próprias vítimas do garimpo desenfreado, e os venezuelanos empobrecidos, êxodo que vem se agravando em Roraima desde 2018. Inexiste acampamento de “garimpeiros desempregados”.

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A alegação do governador pró-garimpo Antonio Denarium (PP-RR), apresentada de forma espalhafatosa à imprensa de Brasília no início de fevereiro por ocasião de uma visita ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, de que “50 mil” pessoas viviam do garimpo em Roraima, o que projetava uma grave emergência social, logo caiu no esquecimento. 

Nas principais localidades do entorno do território indígena, reina a paz. Aos poucos esses lugares, que ajudavam os garimpos principalmente com a venda de alimentação e de combustíveis, voltam à normalidade pré-garimpo. 

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A Agência Pública visitou de carro três dessas pequenas localidades que ficam a poucos quilômetros dos limites da terra demarcada (Campos Novos, Samaúma e “Paredão”), onde encontrou um clima já de conformismo sobre o futuro sem garimpo e conversas sobre a necessidade de se encontrar alternativas econômicas para a região.

Em Samaúma, pequeno distrito do município de Mucajaí (RR) com população estimada de 500 famílias, localizado a cerca de 2 horas de carro a oeste da capital, Boa Vista, moradores já falam em voltar à agricultura e à criação do gado, atividades históricas da região. Samaúma era considerada uma das “portas de entrada” dos garimpeiros na terra Yanomami. Até poucos meses atrás, dezenas de garimpeiros paravam ali todos os dias para comprar alimentos e combustível, que eram levados para os garimpos dentro da terra indígena por aviões, que partiam de várias pistas de pouso clandestinas, ou por terra em uma estradinha de terra quase intransitável que sai da localidade vizinha do “Paredão” até a beira do rio Uraricoera.

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“O dinheiro do garimpo não trouxe benefício para a população daqui, como posto de saúde, escola, asfalto, rede de esgoto. Não aconteceu nada na vila. Quando o garimpo veio para cá, gerou para algumas pessoas alguma renda, não fixa. As pessoas estavam trabalhando, tirando o recurso daí de dentro, o minério, essas coisas, e indo pra fora. Não fica nada aqui no nosso Estado”, disse o servidor público da prefeitura de Mucajaí Laurício Oliveira Chaves, o “irmão Lauro”, que atua como uma espécie de “administrador” de Samaúma e é fiel da igreja Assembleia de Deus.

Para Chaves, a tendência é que seus moradores retomem as atividades econômicas que foram deixadas de lado com a chegada do dinheiro gerado pelo garimpo ilegal, “que todo mundo sabia que ia acabar, era uma temporada”.

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“[Com o garimpo] muitas pessoas deixaram de plantar, deixaram de fazer coisas. Aqui sempre se plantou mandioca, banana, hortaliças e tomate. E a carne aumentou na região, e isso não foi o garimpo. Quando surge um projeto de assentamento, todo mundo mexe com plantação. Quando vai ficando mais antigo, começa a mexer com a pecuária. Ela aumentou aqui bastante”, disse Chaves.

A atividade garimpeira persiste dentro do território indígena, com diversos pontos ainda tomados pelos invasores, o que impede ações emergenciais de socorro aos indígenas doentes de malária e desnutrição, conforme vêm denunciando as principais lideranças indígenas da terra Yanomami, informação também confirmada por Sonia Guajajara, a ministra dos Povos Indígenas, no programa Roda Viva da última segunda-feira. 

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A atividade garimpeira ainda é uma ameaça à saúde e à existência dos Yanomami. O combate ao garimpo, agora realizado principalmente pelo Ibama, pela Funai e pela Força Nacional, ainda não tem prazo para acabar.

Porém, no entorno da terra indígena é unânime a opinião de que as medidas tomadas pelo governo federal até aqui geraram impacto negativo para os garimpos, levaram à redução dos vôos clandestinos para dentro do território, o que repercutiu na cadeia econômica vinculada à extração ilegal do minério, e pressionaram pela saída dos garimpeiros por barcos ou em caminhadas dentro da mata, as chamadas “varações”.

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Para Chaves, “administrador” de Samaúma, “50% ou mais” dos garimpeiros já haviam deixado a terra Yanomami até o final de fevereiro. O maior impacto, disse ele, tem sido na venda de alimentos e na hospedagem em pousadas. Ele calcula que, no auge do garimpo, no ano passado, cerca de 500 pessoas a mais do que a população normal circulavam por Samaúma. Essa população flutuante, segundo Chaves, foi embora após o início, em fevereiro, da operação de desintrusão. Não houve nenhuma ocorrência policial de relevo ou distúrbios na localidade após o início da saída dos garimpeiros.

O “irmão Lauro” espera que os governos federal e estadual apresentem projetos de infraestrutura a fim de amenizar o impacto social que a região deve sofrer. “É [por exemplo] melhorar a saúde, o que nós temos aqui é o município que providencia, é um posto de saúde. O médico vem uma vez por semana. Muita gente vai buscar atendimento em Alto Alegre [cerca de 30 km de Samaúma], onde tem um hospital do Estado. A demanda de imigrantes venezuelanos também cresceu bastante.”

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Na principal rua de Samaúma, o comerciante Josimar Pinheiro calcula que o movimento no seu mercadinho, segundo ele o mais frequentado da localidade, caiu “mais de 80%” após o início da operação anti-garimpo. Os clientes compravam “de tudo” que fosse enlatado e também carnes de boi e de galinha, animais que o mercado também abate e comercializa. “Eu matava cinco bois por semana [antes da operação]. Hoje estou matando um. De cinco pra um. Eles colocavam [a carne] no avião, quando dava duas horas estava lá [no garimpo].”

Pinheiro disse que a queda no movimento o levou a demitir três dos seus quatro funcionários. “Eu não posso fazer nada, não vou sair daqui, moro aqui há 20 anos. Eu já tenho minha fazendinha, tenho minha esposa”, disse o comerciante, nascido em Bacabal (MA). Contou que ele próprio já foi garimpeiro na Venezuela. “Eu já passei dois meses perdido na mata, em 1975. O garimpeiro é muito resistente aqui, ele é acostumado naquele sistema. Ele não morre fácil não.”

Na vizinha localidade do “Paredão”, um lugarejo de cerca de 100 famílias a cerca de 40 minutos de carro de Samaúma, uma estrada incrivelmente esburacada leva os garimpeiros até a beira do rio Uraricoera, onde os garimpeiros pegam os barcos para ingressar na terra Yanomami. O trecho de terra é tão difícil que os garimpeiros usam carros especialmente adaptados ao terreno, como picapes altas e de pneus reforçados. No sentido contrário desse caminho, carros de aplicativos do tipo Uber ficam estacionados em um posto de gasolina perto da divisa da terra indígena esperando para levar os garimpeiros que saem da terra Yanomami.

Em um domingo no final de fevereiro, reinava a tranquilidade e nenhuma corrida para os motoristas na outrora feérica “Paredão”. O único borracheiro do lugar lamentou o fim do movimento, mas disse que está conformado com a situação. Ele calculou que no auge do garimpo costumava arrumar de cinco a seis carros por dia, número que caiu quase a zero desde o início de fevereiro. Mas ele não pensa em ir embora porque mora ali “há 30 anos”. Acredita também que a comunidade vai voltar à agricultura e à pecuária para não deixar o “Paredão” morrer.

A localidade de Campos Novos, um distrito de Iracema (RR), vive cenário idêntico ao de Samaúma, com pouco movimento nos mercados e casas de carne. Um morador, que pediu para não ser identificado, disse que seu irmão abatia “de oito a dez bois” por semana para vender aos garimpeiros e agora não passa de um por semana. Disse que as pistas de pouso clandestinas, abertas em diversas fazendas nas cercanias de Campos Novos, pararam de funcionar. Até janeiro era grande o movimento de caminhões com combustível nas várias estradinhas de terra que ligam o povoado às fazendas.

Dona de uma das duas pousadas de Campos Novos, a “Nova Opção”, Sandra Rodrigues disse que no último ano e meio investiu “mais de R$ 500 mil” na compra do terreno e na construção. Em um dia de fevereiro, conforme a Pública pôde comprovar, não havia nenhum hóspede nos 12 quartos da pousada. Seus principais clientes eram pilotos dos aviões e os garimpeiros passageiros. Ela estimou que “mais de 50%” dos garimpeiros deixaram a terra indígena. Com a redução do movimento, disse que ainda estava pensando “no que ia fazer da vida”. Na semana passada, por telefone, lamentou “que continua tudo igual, tudo parado”. Mas manteve a pousada aberta, com esperança de dias melhores.

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