Pataxós reagem depois de terem imóveis destruídos por trator da prefeitura de Porto Seguro (BA)

Indígenas bloqueiam rodovia e se reúnem com órgãos institucionais para denunciar o poder municipal e cobrar reparação

Pataxós se manifestam contra racismo e truculência policial no sul da Bahia
Pataxós se manifestam contra racismo e truculência policial no sul da Bahia (Foto: Gabriela Moncau)


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Brasil de Fato - Pneus e troncos queimados bloqueando a BR-367, que liga os municípios de Porto Seguro e Santa Cruz de Cabrália no sul da Bahia. Oitiva com o Ministério Público Federal (MPF). Reunião com procuradores e servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai). Os caminhos tomados pelos Pataxós para denunciar a prefeitura de Porto Seguro (BA) têm sido variados. O clima de tensão na Terra Indígena Ponta Grande - região cobiçada por empresários e políticos ligados ao turismo - se acirra exatamente no contexto de mobilização indígena nacional contra o marco temporal, que está sendo votado a passos lentos no STF.

O episódio que impulsionou a reação dos Pataxós foi em 31/8: uma terça-feira que amanheceu com uma operação envolvendo a prefeitura de Porto Seguro, o MPF, a Polícia Militar (PM), a Guarda Civil Municipal, a Polícia Rodoviária Federal e a Polícia Federal. Feita sem ordem judicial, a ação destruiu – com maquinário da prefeitura – oito imóveis de pataxós na orla da praia de Mutá. Recém-construídas, as casas seriam pequenos comércios de artesanato e comida.  

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Na última sexta-feira (10), ao sair de uma reunião com a Advocacia Geral da União e a Funai, Zeca Pataxó, cacique da Aldeia Coroa Vermelha, afirmou que a demanda apresentada pela comunidade foi de entrar na justiça contra a prefeitura de Porto Seguro pedindo indenização coletiva por danos materiais e morais. 

Na ocasião em que as casas foram demolidas, indígenas foram ameaçados e agredidos pela PM que, de acordo com a assessoria jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), chegou a dar um mata-leão em um cacique e algemar três pessoas, em seguida liberadas. "O Prefeito Jânio Natal, grande aliado do presidente Bolsonaro, usou seu poder de influência para executar as demolições ilegais", afirma Emerson, membro da Associação de Jovens Indígenas Pataxó.

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Em nota, a Prefeitura de Porto Seguro alega que a ação fiscalizatória constatou edificações irregulares. O governo municipal diz que, antes disso, havia realizado notificações e reuniões com indígenas, Funai e Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), nas quais teria apresentado um Termo de Ajustamento de Conduta que prevê a demolição de barracas de praia em desacordo com as normas vigentes. Acusa, ainda, lideranças indígenas e Funai de não terem cumprido o pacto dessas reuniões, de paralisar as obras. A versão da prefeitura, no entanto, não condiz com o que afirmam as lideranças indígenas Pataxós e os donos dos imóveis. Segundo eles, não houve qualquer diálogo ou aviso prévio às demolições. 

O MPF declarou que sua participação no episódio se restringiu a apuração de possíveis infrações e que “não tem relação” com a “demolição de construções na área litorânea de Ponta Grande”. A reportagem procurou a Polícia Militar da Bahia e até o fechamento dessa matéria não obteve resposta.

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A costa que foi “descoberta”

O cenário no trecho da BR-367 interditado pelo protesto indígena durante 31/8 tornou explícitas as históricas disputas territoriais e políticas na chamada “Costa do Descobrimento”, um dos grandes polos turísticos do Nordeste. Ao lado das barricadas de fogo, indígenas Pataxós entoavam cantos e gritos de ordem. Pelo meio da rua caminhavam grupos de turistas brancos com suas malas, recém descidos de ônibus de agências de viagem, impossibilitados de chegar aos hotéis de outra maneira que não a pé. 

“Isso tudo faz parte do território do nosso povo”, explica Timbira Pataxó, vice-cacique da Aldeia Coroa Vermelha, em entrevista ao Brasil de Fato. A orla, tombada como Patrimônio Natural Mundial pela Unesco, é reconhecida como de ocupação tradicional Pataxó de acordo com a advogada do Cimi, Lethícia Reis. Segundo o monitoramento da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anai), toda a região que integra a Terra Indígena de Ponta Grande está em fase de estudo. “O processo demarcatório está paralisado por conta do governo Bolsonaro”, aponta Reis. 

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“Esse solo é sagrado, tem muito sangue derramado dos nossos antepassados”, afirma Timbira, enquanto se afasta da barricada e passa na frente de construções de alto padrão localizadas, assim como os imóveis destruídos, na areia da praia. São restaurantes, muitos ligados aos hotéis e resorts de luxo do outro lado da estrada. “Esse massacre aconteceu em 1500 e está acontecendo hoje de novo”, atesta o vice-cacique, ao passar na frente de um restaurante com a placa “capitania” pendurada na entrada e, em seguida, a um com uma estátua de Pedro Álvares Cabral. 

Outro monumento homenageando o mesmo Cabral, porém localizado na entrada do município de Porto Seguro, foi alvo de protesto durante manifestação contra o presidente Bolsonaro no feriado de 7 de setembro. Na ocasião, mulheres pataxós enrolaram uma lona preta em volta da imagem do suposto descobridor do Brasil. 

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“Por que só derrubaram as barracas dos indígenas?”

“Nós não somos contra não”, afirma o cacique Zeca Pataxó, se referindo à proibição de instalação de barracas na areia da praia. “Mas se tiver que derrubar, que derrubem todas então. Por que só derrubaram de indígenas e as dos brancos estão todas aí?”. 

Um dos grandes empreendimentos localizados na orla da praia em que os pataxós tiveram suas construções destruídas é, justamente, do vice-prefeito e secretário de Turismo de Porto Seguro, conhecido pelo nome de seu bar e restaurante: Paulinho Tôa Tôa (PL). Outro estabelecimento do qual o trator da prefeitura passou longe foi o restaurante do La Torre Resort, de propriedade do empresário europeu Luigi Rottuno. Tendo se candidatado à prefeitura de Porto Seguro nas eleições de 2020 pelo PSDB, Rottuno preside a Associação Brasileira de Resorts. 

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Em contraste com as intactas e vistosas portas de vidro do estabelecimento gastronômico do luxuoso Resort La Torre, as telhas e paredes do imóvel recém construído de Curió Pataxó se misturavam, quebradas, aos grãos de areia. “A gente sabe que é tudo dono de hotel que quer essa área pra eles, né? Que na verdade pertence à gente. É uma luta constante com esses brancos, sempre querem tomar o que é nosso”. 

Nascido e criado em Coroa Vermelha, Curió conta que desde criança rodava a região a pé vendendo artesanatos indígenas. “Aqui ia ser a primeira vez que eu conseguiria vender coisas na minha própria barraca. Aí o sonho acabou” afirma, com o rosto pintado e olhando o mar ao lado dos escombros. “E a polícia ainda falou o seguinte, que se não saísse da frente eles iam atirar”, relata Curió: “A Polícia Federal, que protege o índio, fala isso para você? Mandando você sair da sua própria casa? Não existe isso, só Brasil mesmo. O Brasil está vivendo uma ditadura hoje”. 

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Nenhuma das oito casas destruídas chegou a ser inaugurada como pequeno ponto de comércio que venderia comida e artesanato. Paulatinamente erguidas desde outubro do ano passado, estavam quase todas prontas. Foi o caso da cabana de Antônia Santos e Antônio Correia. Ela saiu para buscar rejunte para um último retoque na pia e quando voltou, estava tudo no chão. “Isso daqui é o sonho da gente destruído. A gente gastou o que tinha e o que não tinha pra poder construir isso daí. É pegar dinheiro emprestado. Pra pagar isso daí ó, é mais de 5 anos. Toda prontinha. Toda pintadinha, arrumadinha.”, lamenta. “Cadê que eles derrubaram a dos ricos? só as cabanas dos indígenas eles derrubam. Eles não avisaram, não conversaram, nunca vieram aqui!”, afirma Antônia.

Marco temporal

"Quando falamos de marco temporal, estamos falando de uma ameaça real ao território Ponta Grande, onde vivem mais de 500 famílias indígenas", atesta Emerson Pataxó. Se aprovado, o marco temporal limitará o reconhecimento de terras indígenas à comprovação de sua ocupação antes de 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal.

A votação do tema se arrasta desde 26/8, enquanto milhares de indígenas de todo o Brasil se organizam em acampamentos, atos e Marcha das Mulheres Indígenas do lado de fora dos muros do Supremo, em Brasília. Até o momento, o único voto feito foi de Edson Fachin. O ministro, que é também o relator do processo, defendeu que a Constituição garante aos povos indígenas o direito originário às suas terras. 

Para Emerson Pataxó, a tese jurídica do marco temporal precisa ser "enterrada de uma vez". Na visão do membro da AJIP, o momento exige atenção: "Nossa história nunca foi um mar de rosas, mas em especial nesse governo temos visto um aumento significativo de conflitos fundiários entre indígenas e pessoas do agronegócio". 

De placas de quiosques batizados como “Pataxó Beach Bar” ao portal da prefeitura de Porto Seguro que tem, em primeiro plano, a foto de um indígena com o rosto pintado e um cocar na cabeça, o apelo turístico da região se baseia justamente na constatação de que toda a costa “descoberta” pelos portugueses era habitada, desde muito antes, por povos originários. “Se aprovado o marco temporal, o Estado brasileiro estará negando a sua própria história”, avalia a advogada Lethícia Reis, que fez uma das sustentações orais no julgamento do tema no STF. 

Questionados se consideram que o momento escolhido para a demolição das casas tenha sido intencionalmente próximo à votação do marco temporal – seja para desmobilizar ou para aproveitar a ausência dos cerca de 600 pataxós que viajaram à Brasília –, os caciques consideram provável. 

“O que a gente sabe é que vieram com falta de respeito com o nosso povo. Mas se a intenção foi nos atacar nesse momento de mobilização, então apenas anteciparam nosso trabalho”, constatou Timbira Pataxó, no meio da BR-367 interditada. “Aqui dizem que foi descoberto o Brasil”, afirma o cacique Zeca Pataxó: “Não foi descoberto, foi invadido. Mas nós sabemos resistir. Fazemos isso há 521 anos”.

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