Países ricos são responsáveis por catástrofes naturais nos países pobres, diz Jeffrey Sachs

O mundo não se esquecerá do papel de liderança que os países ricos têm desempenhado na alteração permanente do clima e por tornar mais prováveis os eventos catastróficos

(Foto: Reuters)


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Artigo de Jeffrey D. Sachs* originalmente publicado no website Project Syndicate. Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247

O Paquistão e a Luta por Justiça Climática

Em todo o mundo, 2022 tem sido um ano de catástrofes climáticas – incluindo secas, enchentes, mega-incêndios, tufões e muito mais. O Paquistão está entre os países mais duramente golpeados. Com as chuvas torrenciais das monções chegando a mais de 190% da sua média nos últimos 30 anos, as enchentes extraordinárias fizeram submergir um terço do país e mataram 1.400 pessoas até agora. Mas, não se engane: isto não é apenas um “desastre natural”; ao invés disso, é também o resultado da prevaricação pela qual os países de renda mais alta devem assumir a maior responsabilidade financeira.

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As enchentes no Paquistão podem ser claramente ligadas à mudança climática induzidas por seres humanos. Porque o ar mais quente contém mais umidade; temperaturas mais altas geralmente produzem monções mais pesadas. As monções têm uma variação natural de ano a ano (sendo mais fortes em alguns anos e mais fracas em outros), a probabilidade de distribuição está mudando na direção de chuvas mais pesadas. O descongelamento das geleiras do Himalaia devido às temperaturas ascendentes também podem contribuir para enchentes crescentes; o mesmo é provavelmente verdadeiro para as mudanças no uso das terras – incluindo o desmatamento e a infraestrutura pobremente planejada.

Os custos das enchentes do Paquistão são enormes. Estimativas preliminares calculam as perdas em mais de US$ 30 bilhões, e os próximos meses trarão o aumento da fome, das doenças, da pobreza e custos massivos para a reconstrução – agora que mais de um milhão dos lares foram danificados ou destruídos.

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É provável que os cientistas produzam estimativas cuidadosas atribuídas às enchentes do Paquistão nos próximos meses (exemplos de estudos de atribuição anteriores podem ser encontrados em www.worldweatherattribution.org. Supondo, hipoteticamente, que a metade das perdas do Paquistão, ao final das contas, seja atribuída a mudanças climáticas de longo prazo, e que a outra metade seja atribuída à variação anual aleatória e às práticas locais de uso da terra. Isto significaria que cerca de US$ 15 bilhões das perdas estimadas resultaram das mudanças climáticas.

A questão, então, se voltaria a estes custos atribuíveis ao clima para a alocação de responsabilidades. Sob os atuais arranjos globais, a responsabilidade financeira recai totalmente sobre o Paquistão. Com certeza, os EUA prometeram dar cerca de US$ 50 milhões de ajuda, o Canadá se comprometeu a dar US$ 5 milhões e provavelmente outros países se juntarão a eles. Porém, mesmo que o total de ajuda ao Paquistão chegue a US$ 150 milhões, isto cobrirá apenas 1% das perdas atribuídas a este cenário.

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Agora, considere uma maneira alternativa de atribuir responsabilidades, baseada nas respectivas contribuições dos países para as mudanças climáticas. É assim que geralmente funciona a atribuição de responsabilidades nos EUA e em outros países. Caso o seu vizinho cause danos à sua propriedade devido ao seu comportamento irresponsável, você pode processá-lo judicialmente pelos danos (compensação); e se uma fábrica próxima polui uma comunidade inteira, aquela comunidade pode processá-la como um grupo (através de uma ação coletiva, no caso dos EUA).

Os países ricos do mundo provavelmente são como aquela fábrica poluente. Eles privaram o Paquistão das condições climáticas de longo prazo sobre as quais ele construiu a sua economia, os seus lares, as suas fazendas e a sua infraestrutura. Caso existisse um tribunal global sobre o clima, o governo do Paquistão teria um caso forte contra os EUA e outros países de renda alta por falhar na limitação das emissões de gases-estufa (GHGs) que produzem mudanças climáticas. Porém, como não existe (ainda) um tribunal global para o clima, os governos devem agir conjuntamente e alocar as perdas e danos atribuíveis causados pelo clima àqueles países que são historicamente responsáveis por eles. Obviamente, o Paquistão (e os seus vizinhos no Himalaya) terão a responsabilidade central pelo gerenciamento sustentável da terra – incluindo o reflorestamento e a infraestrutura segura do ponto de vista climático.

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A maior fonte singular de mudanças climáticas induzidas por seres humanos é a concentração atmosférica de emissões de dióxido de carbono (CO2) resultantes da combustão de combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás natural). Devido ao fato que as moléculas de CO2 emitidas na atmosfera permanecem nela por séculos, é crucial concentrar-se nas emissões cumulativas feitas durante longos períodos.

Entre 1850 e 2020, a queima de combustíveis fósseis resultou em emissões cumulativas de 1,69 trilhões de toneladas de CO2. Deste total, os EUA são responsáveis por aproximadamente 24,6% – 417 bilhões de toneladas –, o que é muito maior do que a sua parcela da população mundial no ano de 2021: aproximadamente 4,2% do total. De maneira similar, os países de alta renda combinados (incluindo os EUA, a Europa, o Japão e alguns outros) são responsáveis por cerca de 58,7% das emissões cumulativas de CO2, porém representam apenas 15% da população mundial atual.

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Contrastando com isso, entre 1850 e 2020, o Paquistão contribuiu com cerca de 5,2 bilhões de toneladas – aproximadamente aquilo que os EUA emitem a cada ano. Assim sendo, a sua parcela de responsabilidade está em cerca de 0,3% - muito abaixo da sua parcela da população mundial (2,9%) e a sua carga de danos relacionados ao clima. Enquanto os EUA e outros países de alta renda são “exportadores líquidos de danos climáticos”, o Paquistão e a maioria dos outros países de baixa renda e de média renda são importadores líquidos involuntários.

É verdade que há algum debate sobre quais datas devem ser usadas para avaliar as responsabilidades históricas. Segundo uma visão, as emissões cumulativas devem ser contabilizadas desde 1850 – porque foi então que surgiu o uso de combustíveis fósseis a nível mundial, com o início da industrialização dos EUA e da Europa. Uma outra visão iniciaria a contagem muito mais tarde – como em 1992, quando os governos do mundo adotaram a Convenção de Enquadramento sobre as Mudanças Climáticas das Nações Unidas e se comprometeram a estabilizar as concentrações de GHG atmosférico “num nível que evitaria a perigosa interferência antropogênica (induzida por humanos) no sistema climático.

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Mas este debate pouco afeta a determinação de responsabilidade. Mesmo se medirmos as emissões cumulativas só no período de 1992 a 2020, a parcela dos EUA é de 19,6%, a parcela do grupo de países de alta renda é de 46,9% e a do Paquistão é de 0,4% do total.

Seja como for, os países ricos deveriam se responsabilizar pela sua parte justa dos custos atribuíveis à adaptação climática, as respostas emergenciais e a recuperação dos países que desempenharam papéis pequenos ou nulos na produção das calamidades atuais. À medida que os danos climáticos aumentam, assim também aumenta a necessidade de se fazer investimentos em larga escala e custosos (incluindo reflorestamento massivo, infraestrutura para o controle de enchentes, armazenagem de água potável e outras coisas) para proteger as sociedades contra enchentes, secas, incêndios selvagens, tufões de alta intensidade e outros desastre relacionados com o clima. As tragédias relativas ao clima – como as enchentes no Paquistão – estão ocorrendo com frequência e intensidade crescentes no mundo inteiro, igualmente em países ricos e pobres. Os atuais desastres são apenas um prelúdio daquilo que nos aguarda nos próximos anos e décadas.

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Frequentemente demais, os países ricos e poderosos negam as suas responsabilidades históricas – seja pelo colonialismo, a escravidão, ou as mudanças climáticas. Todos os países são responsáveis pela descarbonização dos seus sistemas energéticos e pela gestão das suas terras e ecossistemas de maneiras responsáveis e sustentáveis. No entanto, o mundo em desenvolvimento não se esquecerá do papel importante que os países ricos desempenharam na criação dos atuais desastres climáticos do mundo. À medida que aumentam rapidamente as perdas relativas ao clima, as demandas globais por justiça climática só farão crescer.

*Jeffrey D. Sachs é professor universitário e diretor do Centro para o Desenvolvimento Sustentável (Center for Sustainable Development) da Universidade de Columbia (New York) – onde ele dirigiu o Earth Institute (Instituto da Terra) entre 2002 e 2016. Ele é o presidente da Rede de Soluções Sustentáveis de Desenvolvimento da ONU (UN Sustainable Development Solutions Network), presidente da Comissão de COVID19 da Lancet, copresidente do Conselho de Engenheiros para a Transição Energética (Council of Engineers for the Energy Transition), Comissário da Comissão para o Desenvolvimento da Banda Larga da ONU (UN Broadband Commission for Development), acadêmico da Pontifícia Academia de Ciências Sociais do Vaticano (Pontifical Academy of Social Sciences at the Vatican), e Professor Emérito Tan Sri Jeffrey Cheah da Universidade de Sunway. Ele serviu como Conselheiro Especial de três secretários-gerais da ONU e atualmente serve como Advogado das Metas Sustentáveis de Desenvolvimento (SDG – Sustainable Development Goals) da ONU, trabalhando sob a direção do atual secretário-geral da ONU, António Guterres. Ele passou vinte anos como professor da Universidade de Harvard, onde recebeu os seus títulos de bacharelado, mestrado e doutorado. Sachs foi agraciado com 40 doutorados honorários e os seus prêmios recentes incluem o Prêmio Tang de 2022 para o Desenvolvimento Sustentável; a Legião de Honra, por decreto do presidente da República Francesa; e a Ordem da Cruz do Presidente da Estônia. O seu livro mais recente é 'The Ages of Globalization: Geography, Technology, and Institutions' (2020).

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