Flona do Tapajós é modelo de como manter a Amazônia em pé e com renda

Bioeconomia a partir da floresta ainda engatinha, mas é exemplo do papel que povos tradicionais podem desempenhar

Reserva extrativista Tapajós
Reserva extrativista Tapajós (Foto: José Cruz /Agência Brasil)


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Bruna Bronoski, Agência Pública - Quando os moradores da Floresta Nacional (Flona) do Tapajós, unidade de conservação localizada próxima a Santarém (PA), na Amazônia, à beira da BR-163, perceberam o fogo se alastrando, não perderam tempo. Conhecendo bem as trilhas, um grupo de vizinhos levou, amarrado às costas, sacos de farinha de mandioca onde acomodaram barris de plástico com capacidade para 20 litros d’água cada um. Enquanto isso, outro grupo tentava abafar o fogo com galhos. Funcionou.

 “O pessoal que estava atento, viu [o fogo] e avisou a comunidade, pra gente se reunir e ir apagar, levar água nas costas. Ia e voltava, buscar [água] de novo. “Conseguimos, graças a Deus. Não deixamos passar [o fogo] para a área que a gente trabalha com turismo”, conta Joacir Rodrigues Pedroso, 42, que cresceu na área protegida.

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 O incêndio aconteceu no segundo semestre de 2021. Foi o último desde então. Depois disso, foram registradas apenas outras duas ameaças contra os 582,1 hectares de floresta amazônica protegidos da flona – um caso de desmatamento e outra perda de vegetação provocada por vários deslizamentos de terra decorrentes de chuvas intensas. Os dados são do Deter, o sistema de alerta do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

 “Mesmo com mil famílias vivendo nesta unidade de conservação. Você está entendendo? Nós temos mil famílias vivendo aqui dentro, e quase não temos alertas de desmatamento”, afirma o analista ambiental do ICMBio Bruno Delano Chaves do Nascimento, lotado na flona.

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 A Flona do Tapajós tem um modelo que combina turismo florestal, manejo de madeira e venda de produtos não madeireiros, como artesanatos e sementes, um exemplo da chamada economia da sociobiodiversidade. Esses usos econômicos são permitidos de ocorrer em florestas nacionais – tipo de unidade de conservação que prevê um uso sustentável.

 Para especialistas que se debruçam em formas de valorizar a floresta em pé, o caso da Flona de Tapajós se destaca por conciliar, no mesmo espaço, a ocupação humana, a geração de renda e a conservação da Floresta Amazônica. E é um exemplo do papel que povos tradicionais podem desempenhar na proteção da floresta.

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 Segundo levantamento da plataforma MapBiomas, as Terras Indígenas (TIs) e Unidades de Conservação (UCs) do bioma amazônico, tanto de uso sustentável quanto de proteção integral, são os territórios que se mantêm mais intactos. Essas áreas protegidas tiveram perda florestal de 8,4% em 2021, ante 17,2% nas áreas públicas, com ou sem destinação do Estado. Já o desmatamento em propriedades particulares chegou aos 44,5% no mesmo período.

 Por outro lado, a bioeconomia a partir da floresta amazônica ainda está engatinhando. Atividades que mantém a mata em pé movimentaram 298 milhões de dólares em exportações entre 2017 e 2019 – 0,2% do montante exportado pelo agronegócio, de acordo com relatório do BNDES. O documento conclui que a economia gerada pela sociobiodiversidade tem muito espaço para se manifestar na Amazônia, sem precisar alterar a cobertura vegetal.

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 Economia da Sociobiodiversidade

 Na flona do Tapajós vivem 1.080 famílias divididas em 28 comunidades tradicionais, sendo 25 ribeirinhas e três indígenas. Há sobreposição das TIs Munduruku-Taquara e Bragança/Marituba sobre a unidade de conservação do Tapajós. De acordo com os moradores da flona, é interesse das famílias que a vegetação permaneça densa, o suficiente para promover atividades econômicas de baixo impacto lá dentro, como a exploração de recursos da sociobiodiversidade. Entre estes recursos estão os madeireiros, explorados por meio de manejo florestal (com corte seletivo controlado) para a indústria moveleira, e o artesanato; e os não madeireiros, como as frutas, óleos, sementes, fibras, resinas das árvores ou mesmo o espaço natural, entre rios, trilhas e comunidades, que são atrativos para turistas.

 O ICMBio autoriza também pequenos cortes de vegetação – de até dois hectares por família para roçados. “É ali onde eles plantam uma mandioca, para fazer farinha, ou uma horta”, explica Nascimento. Mas segundo ele, a adoção do turismo reduziu essa atividade. “Onde o turismo despontou, é onde a gente tem menos pedidos de autorização para supressão da capoeira [vegetação] para fazer roçado”, conta.

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 A flona é praticamente uma ilha em meio a um mar de soja naquela região do Pará. Em imagens de satélite, a floresta e uma unidade de conservação de uso sustentável vizinha parecem dois pulmões cortados em azul pelo rio Tapajós. À esquerda do rio, está a Reserva Extrativista (Resex) Tapajós-Arapiuns, onde há permissão de moradia para populações tradicionais que viviam no local desde antes da sua criação, em 1998.

 Já à direita, está a Flona do Tapajós, cujas fronteiras sofrem pressão da BR-163 (rodovia que liga Cuiabá a Santarém), projeto desenvolvimentista do período militar. Pela imagem, é possível ver que a agricultura industrial, principalmente para o cultivo de grãos, se espraia na região, mas é interrompida nos limites da flona.

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 Pai de cinco filhos e avô de três netos, todos moradores da flona, Joacir viveu toda a vida na unidade de conservação. Ele nasceu apenas sete anos após sua criação, de 1974. Os conhecimentos tradicionais que possui são creditados por ele ao pai – saberes que hoje ele mostra aos turistas. Além do trabalho como brigadista no combate aos focos de incêndio, parte da renda dele vem da condução de visitantes pelas trilhas da floresta, atividade que desempenha há 17 anos.

 Com curso e certificado para conduzir visitantes na floresta, Joacir leva turistas na baixa e na alta temporada até uma sumaúma – árvore gigante e milenar que é um dos cartões postais da flona. Também faz passeios de canoa e indica os melhores igarapés para banho. Embrenha os visitantes na mata e recomenda o restaurante da família na hora do almoço.

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 “Acho que não ia dar visitante aqui se fosse tudo desmatado, por isso a gente está mantendo a floresta segura”, afirma, ao relembrar o episódio do incêndio. As chamas avançaram sobre a comunidade Maguari, onde ele vive com a família e onde fica a sumaúma, uma das responsáveis por seu sustento. Em 2022, 28.734 turistas visitaram a reserva.

 Joacir não é o único condutor que movimenta o turismo por ali. Ao todo são 42 profissionais cadastrados, sendo 12 mulheres. Ivanilda Fonseca, que também é brigadista, complementa a renda guiando trilhas sombreadas de até 11 quilômetros. Um terceiro motivo a leva para dentro da floresta. Ela colhe sementes de morotó, jutaí, jatobá e açaí. No mesmo percurso, aproveita para sangrar as seringueiras, de onde extrai a borracha. Todos esses recursos servem de matéria-prima para a produção de biojoias.

 “Meu pai era seringueiro. Hoje não trabalha mais com isso, ele está voltado para o turismo, tem lancha de passeio, hospedagem. As seringueiras ele deixou para a gente manusear e fazer as biojoias”, conta Nilda.

 As bijuterias produzidas com manta de borracha e sementes são feitas por ela com ajuda da filha mais velha, além de outros 14 moradores da comunidade, a maioria mulheres, todos membros da Associação dos Moradores de Jamaraquá, outra comunidade da flona. Uma loja foi montada com autorização do ICMBio. Os produtos são vendidos a quem visita a flona e já chegaram a ser encomendados por compradores de São Paulo e do Rio de Janeiro.

 O par de brincos em formato de folhas sai por R$ 20. O colar de sementes varia de R$ 10 a R$ 40. Se a arte for trabalhosa e demandar muito material, o colar pode chegar a até R$ 70.

 Entre as duas ou três atividades que desempenham por conta do turismo e da conservação na flona, os moradores afirmam ganhar entre R$ 2.500 e R$ 3.500 por mês. Os valores variam a cada temporada, já que as cheias dos rios durante seis meses do ano fazem diminuir a visitação. Somado aos produtos da floresta e dos roçados, que complementam as necessidades de alimentação e bem-estar dos moradores, a renda gerada tem mantido as famílias dentro da unidade de conservação.

 Comunidades reivindicam a economia da floresta

 O manejo dos recursos da Flona do Tapajós foi uma reivindicação da população tradicional que habitava a floresta antes da sua criação, em 1974. No princípio, o regime militar definiu que os recursos da floresta seriam explorados por uma empresa privada, o que revoltou as comunidades.

 Quem vivia na área da flona foi convidado a se retirar, o que fez com que a população, num primeiro momento, se ressentisse com a ideia de conservação. A floresta era vista como um empecilho para o então modo de vida que envolvia desmatamento – visão que só mudou quando o turismo e outras atividades da bioeconomia se mostraram mais rentáveis.

 Foi somente 20 anos depois, em 1994, que outro decreto autorizou a permanência das comunidades que comprovaram a presença na área anterior à criação da UC. A autorização da permanência das comunidades da Flona do Tapajós veio junto com a licitação, em 1999, da primeira concessão brasileira de exploração sustentável de madeira em uma floresta nacional brasileira, por cinco anos, para a Agropecuária Treviso LTDA.

 O projeto de concessão, porém, se revelou insustentável. O Tribunal de Contas da União apontou irregularidades no corte de árvores por parte da empresa, além do não cumprimento de compensações previstas em contrato para as comunidades locais.

 A empresa saiu de cena em 2005, e o manejo florestal foi assumido por um grupo de moradores da flona. A Cooperativa Mista da Flona do Tapajós (COOMFLONA) possui hoje 269 cooperados que vivem do Manejo Florestal Comunitário e exploram uma área correspondente a 14% da unidade de conservação. Este tipo de gestão dos recursos madeireiros faz cortes pontuais na vegetação, levando em conta a quantidade de espécies de cada árvore, a presença de cursos d’água, técnicas sustentáveis de colheita, entre outros.

 Uma contrapartida financeira de 10,5% de todo o lucro da venda dos recursos madeireiros da cooperativa é revertida para a Federação das Organizações e Comunidades Tradicionais da Floresta Nacional do Tapajós (FCFT). O fundo serve, por exemplo, para a manutenção de espaços comuns da flona, como estradas, barracões comunitários, construção de pontes e obras que estimulam outras economias da sociobiodiversidade.

 Bioeconomia inclusiva

 O modelo desenvolvido na Flona do Tapajós, porém, ainda é um caso isolado não só no Pará como em toda a Amazônia. O estado acumula a maior taxa de desmatamento nas últimas três décadas – 166 mil quilômetros quadrados foram desmatados no período. Isso corresponde a um terço do total de alteração da cobertura vegetal dos nove estados que compõem a Amazônia Legal. Essa situação piorou durante o governo de Jair Bolsonaro, que desmontou a política ambiental do país e passou mensagens de apoio à atividade madeireira e o garimpo, além do avanço do agronegócio. Ao mesmo tempo em que nada evoluiu em políticas de bioeconomia.

 “As comunidades enxergam a floresta em pé como seu modo de vida, mas eles [moradores] também usam combustível, precisam ir para a cidade levar um filho doente, comprar uma roupa. A ausência de alternativas de renda facilita a pressão sobre eles e sobre as áreas protegidas”, diz Patrícia Cota Gomes, secretária-executiva do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), organização que desenvolve projetos de certificação de produtos da bioeconomia.

 Gomes elenca três medidas que devem ser priorizadas em toda a Amazônia a fim de oferecer alternativas de renda às populações locais da floresta, de maneira que o desmatamento para outras atividades não seja uma opção. “Primeiro, tem que se combater o ilegal, punir o desmatamento. Também é preciso voltar a criar áreas protegidas e assegurar o direito ao território para as comunidades. O terceiro ponto é fazer investimentos na bioeconomia, para colocar esta atividade em outro patamar”, afirma.

 Segundo a especialista, retomar o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal, o PPCDAm, é um importante passo para alcançar estes objetivos.

 O plano, que foi a principal ferramenta por trás da queda do desmatamento observada no país entre 2004 e 2012, foi descontinuado em 2020 por Bolsonaro e é uma das prioridades da nova gestão do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, que tem Marina Silva à frente.

 Em entrevista à Agência Pública, a secretária de Bioeconomia Carina Pimenta ressaltou que um dos eixos do novo PPCDAm serão as atividades de produção sustentável. “Vamos olhar para temas que são estruturantes, como a infraestrutura adequada à realidade da Amazônia, questões de conectividade, energia renovável e água, que são todas importantes para as atividades de produção sustentável”, afirma. É a primeira vez que o MMA possui uma secretaria voltada para a economia da sociobiodiversidade.

 Pimenta também defende a necessidade de subsídios para as comunidades tradicionais. “Financiamento é um motor. Temos uma política importante de crédito rural, que é o Plano Safra, que organiza e que agora pode olhar mais para este perfil de produtor [da floresta]”, afirma. Além de incentivos públicos, completa, são bem vindos os recursos privados e filantrópicos.

 A secretária de Bioeconomia propõe o pagamento das comunidades também pelos serviços ecossistêmicos que prestam ao proteger a floresta. “Queremos uma bioeconomia que seja inclusiva, que oriente a geração de renda e reconheça a proteção que é feita pelas populações tradicionais e indígenas em grandes blocos de floresta”, diz.

 Gomes cita ainda a necessidade de acompanhamento dos custos de produção na floresta, que devem ser considerados antes de fechar relações comerciais externas. Hoje a castanha-do-Pará é vendida a preços que chegam aos R$ 119 o quilo, sem casca, no mercado municipal de São Paulo, por exemplo. A mesma castanha in natura, com casca, tem preço mínimo tabelado a ser pago ao coletor de castanhas na Amazônia. O trabalhador recebe R$ 3,40 pelo quilo se tiver feito a coleta no Acre; R$ 3,61 se estiver no estado do Amazonas e apenas R$ 1,21 se trabalhar, por exemplo, no Pará, que leva a fama da oleaginosa para outras regiões do Brasil e para o exterior. No estado, em vez de seguir a inflação, o preço mínimo pago ao coletor diminuiu de 2022 para este ano, uma queda de 1,63% no preço.

 “É preciso equilibrar o que é um preço satisfatório para as comunidades e para as empresas e periodicamente fazer um balanço dessa parceria comercial, e revê-la, se necessário”, diz. “A agricultura brasileira teve investimento público, estratégia, incentivo, teve assistência direcionada. Se a gente colocasse esse esforço feito há 40 anos na agricultura também na biodiversidade brasileira, poderíamos estar em outra situação, com uma economia mais descarbonizada e com redução da desigualdade”, pontua.

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