Como as mudanças climáticas podem piorar a atual crise migratória mundial

Relatos de uma jornalista brasileira. Imigrantes desembarcam por Lampedusa e muitos não conseguem lograr o fim da viagem e acabam por se afogar

(Foto: Liliana Tinoco Bäckert (Plurale))


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Liliana Tinoco Bäckert, Plurale

Lampedusa (Itália) - Um outro lado sombrio das mudanças climáticas se descortina com o avançar do aquecimento global. Além de todas as consequências adversas ligadas ao meio ambiente, o aumento de temperatura da Terra irá impactar significativamente nos movimentos migratórios de povos – algo que já se vê hoje, em muitos países, como uma tragédia humanitária, e que terá proporções muito maiores. O desequilíbrio climático, que causa inundações de áreas de plantio em alguns lugares, seca em outros, calor excessivo ou chuva em demasia, mostram o potencial de desalojamento de pessoas.

Dessa forma, se atualmente testemunhamos horrorizados grupos de refugiados tentando cruzar mares para fugir de conflitos armados, perseguições políticas e religiosas, e obviamente fome, esse quadro tende a se agravar com o desequilíbrio do clima, caso nada seja feito. E pior, você pode ser um refugiado em potencial. Basta morar próximo ao mar, a rios, ou em áreas com tendência a incêndio. Vemos isso o tempo todo atualmente na mídia, e a vulnerabilidade não poupa nem áreas nobres, como a California, por exemplo.

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Migração e refúgio

Gostaria de começar a destrinchar o tema falando sobre a migração por refúgio. Pudemos ter uma breve ideia do que significa ao relembrar o horror da retomada do Talibã, em agosto deste ano. O desespero de pessoas penduradas na asa de um avião ilustra o que representa continuar em alguns lugares do mundo, sob a égide de governos déspotas ou perseguições de vários tipos.

Buscar refúgio é, além de sobrevivência, uma perda pessoal de enorme proporção, trata-se do abandono de uma vida construída para tentar se salvar. O aspecto humano envolvido nessa questão tem uma profundidade ímpar, cujo efeito é superior à vida em si, mas à existência, tem a ver com a dimensão da nossa subjetividade de sermos quem somos. Paro aqui para falar sobre a questão climática.

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Aliados e vítimas

O olhar sobre a migração sob o viés da sustentabilidade, segundo especialistas, não deve se conectar com o sentimento de ameaça, como é vista em muitos casos por nativos que recebem povos de outros países. Nesse novo contexto, a migração precisa ser encarada como uma aliada na busca de soluções para conter o avanço do próprio aquecimento global, inclusive como fornecedora de mão de obra já que a Europa não tem conseguido com a baixa natalidade.

A ideia geral é a de que “os imigrantes deveriam encorajados, porque eles podem inclusive ajudar no cumprimento dos objetivos da sustentabilidade. Seria bom que fossem aproveitados nessa nova virada da indústria, que não poderá funcionar do jeito que está para o bem da humanidade”.

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A transição para a economia verde é uma grande oportunidade para incluir outros agentes da sociedade, como os imigrantes. Um conceito em concordância com vários especialistas: “custa muito mais manter pessoas excluídas do que integrá-las ao bem-estar social. É o momento de treinar essas pessoas e convidá-las a embarcar na mudança”

Teorias e práticas sobre economia circular, troca de experiências locais e antigas de outros povos, a inclusão de todos para que o bem-estar mínimo social de uma maioria promova condições para o meio ambiente foram longamente apresentados no curso sobre Migração e Sustentabilidade, oferecido pela School on International Migration (Escola de Migração Internacional), promovido durante os meses de setembro e outubro.

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Cerca de 50 alunos de várias partes do mundo - inclusive eu - assistiram a aulas sobre as duas temáticas em quatro módulos, apresentados em cinco semanas de curso online e três dias presenciais. Professores de Universidades da Espanha, Itália, França falaram sobre os temas sob diversos enfoques.

Entre tantas explanações, me chamou atenção a do Secretário Geral para a União pelo Mediterrâneo, Grammenos Mastrojeni, que falou sobre Clima, Fome, Conflitos e Migrações. Mastrojeni trouxe um exemplo prático de como o intercâmbio de conhecimento entre povos será necessário em um futuro bem próximo. Ele citou o exemplo do Yakhchal, que é um tipo de estrutura e sistema desenvolvido por povos persas e mongóis que, sob o calor de 50 graus, é usado para produzir e manter gelo do inverno durante o restante do ano, a temperaturas de zero a quatro graus. “Em alguns anos, a Europa poderá alcançar temperaturas usuais na África. E quem tem experiência com tecnologia de altas temperaturas?”, questiona.

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Juntos somos mais fortes

Ainda considerados apenas em discursos acadêmicos e vistos ainda com desconfiança por uma parte dos políticos e população, muitos estudiosos do tema Migração e Sustentabilidade podem parecer utópicos, mas são categóricos: a união será a única solução econômica possível.

Se para muitos soa como utopia, para o pesquisador da Universidade de Liége, François Gemenne, é uma questão de colocar em ação e em prática as diferentes experiências e sabedorias em prol do benefício comum. “Não se trata somente de fronteiras, do meu país, mas de uma maneira de trocar experiências e conhecimentos” Trata-se, de acordo com especialistas, de uma união de forças para o bem da humanidade.

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Eu sei que a Plurale tem o foco em Meio ambiente e Sustentabilidade, mas como jornalista especializada em Migração e Comunicação Intercultural, preciso falar do aspecto profundamente humano dessa problemática. Ao mesmo tempo em que a migração pode ser tanto causada por mudanças globais, também é encarada como um convite a soluções conjuntas entre povos e um reforço na mudança de mentalidade que o mundo urgentemente necessita.

Para quem se interessa pelo tema Refúgio e Migração, conto aqui rapidamente a minha experiência. Eu tive o privilégio de poder tomar parte na segunda etapa do curso sobre Migração e Sustentabilidade e ir até Lampedusa, na Itália. A ilha é frequentemente local de desembarque de refugiados vindos do norte de África. Todos os meses, centenas de imigrantes desembarcam por lá e muitos não conseguem lograr o fim da viagem e acabam por se afogar.

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Lampedusa como porta de entrada da Europa

Como vivo na Suíça, não foi necessária uma viagem tão longa até a Ilha, que é a parte mais ao sul da Itália. De Zurique a Palermo, capital da Sicília, toma-se um voo de quase duas horas. Depois é só tomar um outro de exatamente uma hora até a pequena ilha. Embora pertença à Sicília, que está localizada abaixo da bota da Itália, Lampedusa fica mais próxima do continente africano que ao Europeu – está localizada a 113 quilômetros da costa da Tunísia e 205 da italiana.

Confesso que não tinha entendido o porquê de ter sido escolhido como local para a realização da segunda fase do curso. Apesar de não ser tão longe, é meio contramão, não tem conexão direta com outras cidades europeias. Obviamente eu conhecia a ilha pela fama de destino de inúmeros refugiados que cruzam o Mediterrâneo advindos da África, mas terminava aí meu parco horizonte.

Então, assim meio que a espera de surpresas, aporto por lá na tarde de 2 de outubro. Dia 3 de outubro, para minha surpresa, é o aniversário de um grande naufrágio próximo ao porto da Ilha. Diversas cerimônias homenageiam e tentam chamar a atenção da comunidade europeia e internacional da morte por afogamento de 366 imigrantes em busca de refúgio em 2013. Essas pessoas eram majoritariamente oriundas da Eritreia.

Entre as 366 vítimas constavam 41 crianças. Alguns corpos nunca foram encontrados. Esse acontecimento é marcado como uma das maiores tragédias da história do Mar Mediterrâneo.

Travessia perigosa

Apesar de impactante, as mortes no Mediterrâneo vêm registrando altas consecutivas. Em 2015, quase 3 mil pessoas morreram ou desapareceram em travessias pelo Mar Mediterrâneo, segundo a Organização Internacional para a Migração (OIM). Segundo a ONU, somente este ano, mais de 630 pessoas morreram afogadas na parte central do Mediterrâneo fazendo a perigosa jornada para chegar à Europa.

Lembrar os mortos é preciso

A experiência da homenagem às vítimas foi o ponto alto do curso; nada sensibiliza mais do que testemunhar, in loco, um evento de tal dimensão. Não falo pelo tamanho, mas pela emoção da causa humanitária em jogo. Dos 155 sobreviventes, vários visitam a ilha todos os anos nesta data para prestar homenagem aos familiares ou amigos que sucumbiram ao Mediterrâneo naquela noite. Segundo os professores, a maioria vive hoje na Suécia.

Cerca de umas 300 pessoas se reuniram, na manhã do dia 3, no monumento Porta D’Europa (que também tem uma história), para homenagear seus mortos, falar de paz, de tolerância, em uma cerimônia ecumênica. Quem chegava, ganhava dos voluntários flores para serem jogadas ao mar. Após inúmeros discursos, de autoridades locais, do Governo da Itália, de padres, pastores e até de imãs, pudemos homenagear os mortos. Neste momento, é possível ver refugiados aos prantos, amparados por pessoas locais ou por outros que viveram o horror da travessia.

Como uma brasileira que viu 600 mil mortos pela Covid 19 e quase nenhum discurso governamental em homenagem às famílias, confesso que fiquei muito impressionada em observar a presença de militares, políticos e a justa comoção em torno do tópico. Desde 2016, o Senado italiano definiu por lei que a data passaria a ser o Dia Italiano da Memória e do Acolhimento, a ser celebrado todos os anos para lembrar todas as vítimas da imigração e para promover iniciativas de consciencialização e solidariedade.

Ficou decidido que o 3 de outubro seria “um dia para comemorar e refletir sobre estas perdas humanas”, nas palavras do presidente italiano Sergio Matarella. “Um dia em que políticas erradas entram em confronto com os valores individuais e europeus. Um dia para recordar o passado, para corrigir o presente e para vislumbrar um futuro de solidariedade e respeito por todas as vidas humanas”.

Nesse ponto consegue-se ver a exata confluência do refúgio e do meio ambiente. Os dois são parte de uma grande crise: uma humanitária e a outra que pode extinguir a humanidade.

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