Banco do Brasil cria política climática para guiar investimentos, mas financia desmatadores
Desde 2021 instituições financeiras devem ter normas para evitar exposição a riscos ambientais, mas BB mantém clientes associados à devastação da Amazônia e do Cerrado
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Por Janaína Camelo e Naira Hofmeister, Repórter Brasil - Insuficiente, defasada, vaga e pró-forma. Esses são alguns dos adjetivos que analistas consultados pela Repórter Brasil atribuíram à Política de Responsabilidade Social, Ambiental e Climática do Banco do Brasil. Aprovada em junho de 2022 pelo Conselho de Administração do banco, o documento de três páginas deveria estabelecer princípios que protegessem a instituição pública de realizar negócios com pessoas físicas ou empresas que representem riscos para o equilíbrio ambiental e o clima, ou que não respeitem os direitos humanos.
Porém, desde então o BB manteve ou acrescentou em sua carteira investimentos que somam US$ 370 milhões em sete controversas empresas do setor agrícola associadas ao desmatamento da Amazônia e do Cerrado e à exploração de mão de obra em condições análogas à escravidão. São valores retidos principalmente em ações de companhias e um empréstimo.
“As políticas do Banco do Brasil são claramente insuficientes para evitar que o banco financie o desmatamento”, avalia Merel van der Mark, coordenadora da Florestas e Finanças (F&F), coalizão de organizações que monitora globalmente fluxos de dinheiro que abastecem empresas que colocam as florestas do planeta em risco.
No âmbito do crédito à pessoa física, o Banco do Brasil destinou quase um milhão de reais a um fazendeiro multado por desmatamento ilegal na Amazônia durante a vigência do contrato, que terminou em maio de 2022, um mês antes que a nova política climática do BB fosse aprovada. Segundo apurou a Repórter Brasil, o produtor financiado possui apenas uma propriedade em seu nome no município da autuação. É justamente a fazenda onde o desmate ilegal ocorreu.
Além de ir na direção oposta ao que prega o guia de investimentos que o banco elaborou, se confirmado, esse financiamento violaria uma norma editada pelo Banco Central, segundo a qual não é permitido financiar fazendas sobre as quais recaem embargos nesse bioma. Mas o BB se absteve de comentar e fornecer dados que permitiriam verificar os detalhes do empréstimo, deixando a dúvida no ar.
“Se o Banco do Brasil não tem uma política convincente, não é porque não sabe que é importante. Sabe, só que talvez isso tenha algum conflito com o modelo de negócio do tipo de empreendimento que eles apoiam”, observa Fábio Pasin, advogado e pesquisador do Programa de Serviços Financeiros do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), que anualmente avalia o grau de comprometimento socioambiental dos maiores bancos brasileiros no Guia dos Bancos Responsáveis. Em uma nota de 1 a 10, o Banco do Brasil recebeu, no ano passado, nota 3,7.
Em janeiro, Tarciana Medeiros tomou posse como presidente da instituição financeira pública – é a primeira mulher a ocupar o cargo na história. Entre as prioridades de sua gestão, a executiva citou o “reforço do compromisso do banco com a sustentabilidade ambiental”.
Consultado, o Banco do Brasil informou que “a avaliação dos aspectos socioambientais na concessão de crédito está em contínua evolução”. O BB reforçou ainda que tem meta de zerar suas emissões de gases de efeito estufa até 2050 e que possui “soluções financeiras para apoiar a transição para uma economia mais verde e inclusiva”. A íntegra da manifestação pode ser lida aqui.
Um milhão para desmatar ilegalmente
Segundo o próprio Banco do Brasil, suas “operações de crédito contam com cláusulas que permitem a decretação do vencimento antecipado e a suspensão imediata dos desembolsos em caso de ocorrência de infringências socioambientais”. Mas documentos obtidos pela reportagem indicam que essas cláusulas podem não ter sido acionadas no caso de um empréstimo concedido ao pecuarista Rogério de Paula Leite, dono de propriedades desmatadas e embargadas no Pará.
Em junho de 2016, o fazendeiro tomou um financiamento de quase um milhão de reais do Banco do Brasil, utilizando linha de crédito do BNDES. O sistema de transparência do BNDES não indica a fazenda à qual se destinava o valor, mas informa que ficava no município de São Félix do Xingu. Porém, Leite só possui uma propriedade registrada no Cadastro Ambiental Rural (CAR) nessa localidade, e ela possui um embargo desde 2017, aplicado por desmatamento ilegal de 360 hectares, o equivalente a duas vezes a área do Parque Ibirapuera, em São Paulo.
Se realmente os valores foram destinados a essa propriedade, seria um caso em que a dívida deveria ter sido cobrada imediatamente após a detecção do embargo – inclusive respeitando o que determina o Manual de Crédito Rural, que veta empréstimos para fazendas embargadas e vale para todos os bancos que operam no Brasil. Porém, segundo o BNDES, no caso de Leite, a liquidação do financiamento ocorreu apenas em maio de 2022. “O BNDES não recebeu qualquer notificação de irregularidades do agente financeiro credenciado [o BB], responsável pela análise, aprovação e acompanhamento do financiamento”, informou o banco de desenvolvimento.
O Banco do Brasil não quis comentar o caso específico de Leite “em respeito ao sigilo bancário, comercial e empresarial” – e por isso, não foi possível obter a comprovação do número do CAR utilizado para solicitar o empréstimo, informação necessária para comprovar a irregularidade.
A instituição financeira informou que desde 2019 realiza consultas automáticas a bases geográficas públicas que impedem “a contratação de operações quando identificada sobreposição com terras indígenas, áreas embargadas e áreas de desmatamento ilegal” (íntegra aqui).
Apesar disso, o banco parece ter ignorado os alertas do Prodes, sistema de satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), que anotou pelo menos 19 desmatamentos ocorridos no interior da fazenda financiada desde 2008. Dois deles ocorreram em 2020, após, portanto, a vigência das consultas automáticas do BB a bases de dados sobre desmatamento. A reportagem não localizou nenhuma autorização de desmate nos sistemas públicos do Pará que justificasse as supressões.
Rogério de Paula Leite já havia sido multado em 2014 por desmatar 72 hectares em outra fazenda, em Cumaru do Norte, também no Pará. A área foi embargada, mas ele não respeitou a proibição de cessar atividades na parcela e, em 2015, foi novamente autuado por impedir a reconstituição da vegetação natural. O sistema de Cadastro Ambiental Rural também mostra apenas uma propriedade em seu nome neste município, para onde, entre 2012 e 2013, o BNDES enviou mais de R$ 600 mil em empréstimos cujos prazos de pagamento eram de pelo menos seis anos – incluindo, portanto, o momento do embargo e da multa por descumprimento do embargo.
Mesmo com todos esses antecedentes, se o financiamento para Leite fosse analisado à luz da política ambiental e climática do Banco do Brasil, não seria barrado. Isso porque o texto determina que só serão vetadas operações com “terceiros que sejam responsáveis por dano doloso ao meio ambiente” – ou seja, casos em que seja comprovada a intenção de provocar o dano na Justiça, o que reduz a margem para se afastar de potenciais desmatadores.
“Não importa se o dano é doloso ou se é culposo. A questão é saber se o seu cliente está adotando tudo o que for possível para minimizar riscos. Mas a política do Banco do Brasil não traz elementos de análise de mérito, fica apenas no âmbito da formalidade”, observa Gustavo Pinheiro, coordenador de Economia de Baixo Carbono do Instituto Clima e Sociedade (iCS).
A Repórter Brasil entrou em contato com Rogério de Paula Leite e com seus advogados por e-mail, telefone e mensagens de texto, mas não recebeu nenhum comentário sobre o caso até o fechamento desta matéria. O espaço permanece aberto para seus esclarecimentos.
Programa ABC financiou desmatador
O recurso destinado à Rogério de Paula Leite em São Félix do Xingu veio do Programa ABC, que aplica juros subsidiados para estimular a agricultura de baixo carbono. Mas neste caso, o dinheiro pode ter sido aplicado na direção contrária do objetivo da linha de crédito: além de possuir multas e embargos por desmatamento, Leite é criador de bovinos de corte e foi essa a atividade que ele utilizou para solicitar o financiamento público em 2016.
Entre as atividades econômicas medidas pelo Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG) do Observatório do Clima, a agropecuária é responsável pela maior fatia dos gases poluentes que chegam à atmosfera. Nesse total, estão incluídas as emissões específicas do setor, como os gases emitidos pela digestão de animais ruminantes, mas também o desmatamento provocado para abrir novas áreas de cultivo e pastagem – esta é a principal contribuição brasileira para a emergência climática enfrentada pelo planeta.
Segundo estimativas do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), 90% da área desmatada na Amazônia até 2019 foi destinada a pastagens. Outra estatística produzida pela ONG, que se dedica a monitorar os impactos da cadeia produtiva da carne na natureza, revela que entre 2016 e 2018, quase todos os animais abatidos nos frigoríficos da região vieram das áreas de maior risco de desmatamento da floresta.
Mas nenhum desses dados impediu o BB de manter em seu poder ações dos três maiores frigoríficos brasileiro, JBS, Marfrig e Minerva. O valor total investido em ações das três gigantes da carne brasileira chega a 92,5 milhões de dólares, segundo a F&F – as empresas possuem forte presença na região amazônica e suas atividades são recorrentemente associadas ao desmatamento.
BB apoia empresa vetada por BID
Além dos valores rastreados pela Florestas e Finanças, a Repórter Brasil localizou outros dois acordos de financiamento do BB para o frigorífico Marfrig que podem estar levando o banco a financiar o desmatamento. Essas transações ocorreram entre o final de 2021 e o início de 2022, no exato intervalo em que a política socioambiental e climática do banco estava sendo elaborada – e no mesmo período em que a Marfrig teve negado um pedido de empréstimo feito ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) por não se enquadrar à política de sustentabilidade da instituição financeira.
Em setembro de 2021, poucos dias após a determinação do Banco Central para que bancos publicassem suas políticas socioambientais, a Marfrig decidiu contratar crédito de R$ 700 milhões junto ao Banco do Brasil por meio da emissão de um título de dívida chamado Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio (CDCA), cujo vencimento ocorre no ano de 2027. Depois disso, em maio de 2022, houve nova aprovação de outro CDCA com o mesmo valor – R$ 700 milhões – este com vencimento em 2028. Juntos, os dois instrumentos capitalizaram o frigorífico em R$ 1,4 bilhão.
Entre uma operação e outra do BB, no final de 2021, organizações da sociedade civil pressionaram o BID pedindo que um empréstimo de US$ 43 milhões proveniente dessa instituição não fosse concedido à Marfrig. E, em fevereiro do ano seguinte, a negociação acabou engavetada.
“Realizamos uma auditoria completa antes de decidir se um projeto é elegível para financiamento. Isso inclui a avaliação de fatores financeiros, legais e riscos ESG em linha com nossa Política de Sustentabilidade”, explicou o BID à Repórter Brasil em fevereiro de 2022. A instituição financeira disse que após realizar esses procedimentos nos planos do frigorífico, “chegamos a um acordo mútuo de que as condições não eram as ideais para avançar com o empréstimo”.
Mais recentemente, em fevereiro de 2023, o banco francês BNP Paribas foi levado aos tribunais em seu país também por financiar – de forma irresponsável, na visão de organizações ambientalistas e de direitos humanos – as atividades da Marfrig no Brasil. “Os fornecedores da Marfrig estão envolvidos em atividades que levaram a um grave desmatamento da Amazonia, à apropriação ilegal de terras situadas em territórios indígenas e ao trabalho forçado”, acusaram as organizações Comissão Pastoral da Terra e Notre Affaire à Tous, que lideram a ação judicial.
Em resposta à Repórter Brasil, a Marfrig elencou os avanços em seu sistema de controle de fornecedores: além de monitorar 100% das fazendas que enviam gado diretamente à suas plantas de abate, a empresa garante já ter informações socioambientais sobre 72% dos produtores indiretos de gado na Amazônia e 71% no Cerrado, “sendo que os fornecedores localizados nas áreas mais críticas (de risco alto e muito alto) já estão monitorados”. “A Marfrig está ciente dos desafios da cadeia produtiva da pecuária e tem trabalhado fortemente para buscar soluções que conciliem os processos de produção, preservação e inclusão na cadeia da pecuária brasileira”, complementa a empresa, cuja manifestação pode ser lida aqui na íntegra.
Parceria com banco suíço
A pressão da sociedade civil tem levado a União Europeia a um debate intenso sobre como reduzir sua contribuição com o desmatamento – não só no ‘velho continente’, mas em outras regiões do planeta onde empresas de lá atuam, como é o caso do Brasil.
Tramita no parlamento europeu uma regra supranacional que deverá obrigar companhias de todos os países integrantes do bloco econômico a conduzirem minuciosas avaliações de risco em suas atividades – a chamada devida diligência ou devido cuidado. “Será uma verdadeira virada de jogo na forma como as empresas operam suas atividades comerciais em toda a sua cadeia de suprimentos global. Não podemos mais fechar os olhos”, afirma Didier Reynders, integrante da Comissão Europeia.
Se essa lei já estivesse valendo, o banco suíço UBS precisaria ter avaliado se uma joint venture com o Banco do Brasil formalizada em 2019, para apoiar a produção agrícola em terras brasileiras, estaria de acordo com a expectativa da norma.
O UBS BB Investment Bank foi coordenador líder de uma operação financeira que levantou R$ 240 milhões para financiar a BrasilAgro, no ano passado – também no período em que a política socioambiental e climática do banco brasileiro estava sendo elaborada. A operação – uma emissão de título de renda fixa do tipo CRA, o chamado Certificado de Recebíveis do Agronegócio – não aparece no levantamento do Florestas & Finanças.
Porém, o banco de dados da iniciativa lista, além da participação acionária no valor de US$ 13 milhões na empresa, um empréstimo do Banco do Brasil à BrasilAgro no valor de R$ 115 milhões em 2020. O BB também prestou serviços financeiros ao grupo Cresud, sócio da empresa, quando, em 2019, atuou como coordenador de uma oferta de bondsna qual investiu quase US$ 6 milhões por meio do Banco da Patagônia – incorporado pela instituição brasileira em 2011.
Segundo um estudo promovido por organizações ambientalistas internacionais, só entre 2012 e 2017, a BrasilAgro foi responsável pelo desmatamento de 21.690 hectares de vegetação nativa no Cerrado brasileiro, especificamente na região do Matopiba (sigla para o encontro de fronteiras entre Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), onde mais avança a fronteira agrícola nacional.
Dados do Sistema de Alerta do Desmatamento do Cerrado (SAD Cerrado), desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), mostram que o desmatamento no Cerrado cresceu 35% no primeiro trimestre de 2023, comparado ao mesmo período do ano passado, somando 188 mil hectares. A Bahia concentrou um quarto de todo o desmate, o que representa mais do que o dobro do registrado em 2022.
Por meio de nota, a BrasilAgro garantiu que “prima em suas operações pelo respeito ao meio ambiente e à governança corporativa”. A íntegra pode ser lida aqui. Procurado, o UBS BB preferiu não comentar o caso.
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