Marxismo, antirracismo e projeto revolucionário: entrevista com o professor August H. Nimtz Jr.
Uma conversa conduzida pelo advogado e professor Mario Soares Neto com o professor de Ciência Política, Estudos Africanos e Afro-Americanos da Universidade de Minnesota (Minneapolis) e autor de várias obras. Como costuma se autodenominar, um “comunista negro”
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Por Mario Soares Neto*
August H. Nimtz Jr. nasceu em 1942 e cresceu na 7ª ala, um bairro da classe trabalhadora de Nova Orleans, nas circunstâncias históricas do regime de segregação racial com base nas Jim Crow Laws, nos Estados Unidos da América. Educado no seio de uma família engajada politicamente, o seu pai que era um rebelde, “lhe forneceu suas raízes radicais”. Sua mãe era professora, pós-graduada pela Universidade de Chicago e membro ativa do sindicato de professores negros, atuando, principalmente, na luta contra o racismo. Ambos ajudaram na fundação das primeiras fileiras da National Association for the Advancement of Colored People (NAACP) [Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor], em Nevada.
August Nimtz despertou cedo para a militância política. Em 1957, aos 15 anos de idade, quando Gana, na África Ocidental, liderada pelo revolucionário marxista e pan-africanista Kwame Nkrumah (1909-1972) conquistou sua independência, toda a sua família comemorou efusivamente. Anos mais tarde, seus pais lhe perguntaram por que ele havia se tornado comunista, nesta oportunidade afirmou que seus familiares foram os verdadeiros responsáveis pelo seu ativismo. As ações de solidariedade internacional em decorrência do Massacre de Shaperville, ocorrido em março de 1960, na África do Sul, também foram muito importantes na sua trajetória política e intelectual. Em palestra que realizou neste período, Nimtz comparou o regime do apartheid sul-africano ao sistema Jim Crow em Nova Orleans.
Os laços geográficos, históricos e culturais entre Nova Orleans e Cuba lhe permitiram desenvolver profundo sentimento de amor por aquele país onde “os negros não eram uma minoria”. Apoiador da Revolução Cubana desde o seu início, em 1959, acompanhou com entusiasmo cada progresso da luta socialista na ilha. Nesta quadra histórica, nos Estados Unidos, a luta em torno dos direitos civis estava a pleno vapor. Entre 1961 e 1962, Nimtz participou de um importante evento da Nação do Islã em sua cidade, vindo a conhecer a história de Malcolm X (1925-1965). Seu primeiro piquete ocorreu no verão de 1962, numa ação realizada ao lado da loja de departamentos Woolworth, agora inexistente, no centro de Nova Orleans, para protestar contra as práticas de segregação racial daquele estabelecimento.
Nos anos 1960, August se tornou um militante pan-africanista. Em 1968, recebeu uma bolsa de estudos para realizar pesquisas na Tanzânia, momento no qual fez contato com inúmeros militantes revolucionários, dentre os quais, Walter Rodney (1942-1980) e sua esposa Patrícia Rodney. Viajou para a Tanzânia como um nacionalista negro e regressou como um comunista, alcançando a compreensão acerca das limitações da revolução nacional. Alguns anos mais tarde, em 1973, em nova viagem à Tanzânia conheceu Angela Davis. Nimtz e Davis conversaram sobre a conjuntura internacional, as suas afinidades e diferenças políticas. Nimtz, na época era filiado ao Socialist Workers Party (WSP) [Partido Socialista dos Trabalhadores], Davis, por sua vez, era uma das principais lideranças do Communist Party of United States of America (CPUSA) [Partido Comunista dos Estados Unidos da América]. Se eu tivesse sido contratado na Universidade de Chicago - meu emprego dos sonhos - provavelmente teria acabado no Partido Comunista. Ali, o PC era forte na comunidade negra. Angela Davis foi uma heroína para nossa geração e a organização em torno de seu caso foi o foco do trabalho em Chicago em 1971. Mas acabei em Minneapolis.
Na década de 1980, com o advento da Revolução Sandinista na Nicarágua, Nimtz atuou no âmbito do Comitê de Solidariedade Internacional. A solidariedade e a perspectiva internacionalista constituem as marcas profundas da sua trajetória como intelectual e militante político. Neste sentido, não é casual o seu apoio a Cuba e às lutas dos povos em diversas partes do mundo nos dias atuais.
Formado em Relações Internacionais, com mestrado em Estudos Africanos pela Howard University, pós-graduação que foi realizada entre os anos de 1963-1965. Em 1966 mudou-se de Howard para a Indiana University, instituição na qual concluiu o seu Doutorado em Ciências Políticas, no ano de 1973.
Dr. August H. Nimtz Jr. é Professor de Ciência Política, Estudos Africanos e Afro-Americanos da Universidade de Minnesota (Minneapolis). O nosso entrevistado, como costuma se autodenominar, é um “comunista negro”. Autor de diversas obras, dentre as quais, Islam and Politics in East Africa (1980); Marx and Engels: their contribution to the democratic breakthrough (2000); Marx, Tocqueville, and race in America (2003); Lenin’s Electoral Strategy from 1907 to the October Revolution of 1917 (2014); Lenin’s Electoral Strategy from Marx and Engels through the Revolution of 1905 (2014); Marxism versus Liberalism: Comparative Real-Time Political Analysis (2019). No Brasil, o professor August Nimtz escreveu o Prefácio à Edição Brasileira da obra Marx e Engels sobre a Guerra Civil dos Estados Unidos (2020).
Confira a entrevista:
Professor August Nimtz, você é autor de diversos livros nos quais realizou investigações com base no método materialista histórico dialético. Qual é a essência do projeto de crítica da economia política fundado por Marx e Engels?
August Nimtz: A minha leitura de Marx e Engels é a de que eles eram fundamentalmente militantes políticos. Como eu escrevi no meu livro sobre Marx-Engels publicado no ano 2000, Marx “e o seu parceiro foram, acima de tudo, militantes revolucionários que entenderam com profundidade que precisavam colocar em prática ativamente o que escreviam, bem como aprender com a prática o que escrever”. É neste sentido que eu entendo a essência do método materialista histórico dialético. É dessa perspectiva que abordo a política contemporânea, à luz da indispensabilidade da prática para quem se denomina comunista – o laboratório da luta de classes. De que outra forma poderíamos testar nossas ideias?
Na sua avaliação, qual a relação entre marxismo e antirracismo? Existe uma contribuição teórica e política do marxismo para a crítica e superação do racismo estrutural?
August Nimtz: Em primeiro lugar, é importante reconhecer o seguinte: o que atualmente entendemos como “raça e racismo estrutural” não pode ser confundido com a maneira em que a noção de “raça” foi compreendida ao longo do século XIX, o mundo em que Marx e Engels operavam. Por exemplo, a palavra “raça” tinha um significado diferente, mais parecido com o que hoje chamaríamos de grupos étnicos e nacionalidades. Ainda hoje, o termo “raça” tem significados diferentes em inglês e espanhol; eu suspeito o mesmo para o português. Comum para Marx e Engels era sua referência, por exemplo, às raças inglesa, irlandesa, russa, alemã etc. Somente na segunda metade do século XIX, o conceito de raças biológicas se tornou predominante, pelo menos na sociedade da Europa Ocidental. Portanto, em nenhum lugar no corpo dos seus escritos existe um “arcabouço teórico” que aborda o que hoje chamamos de “racismo estrutural”.
Outro exemplo da complexidade da “raça” foi minha primeira visita ao Brasil, no verão de 1996. Eu estava hospedado em um hotel no Pelourinho, bairro histórico de Salvador, Bahia. Alguns amigos brasileiros estavam tentando me encontrar descrevendo por telefone como eu parecia para a pessoa no balcão, um homem negro. Depois de algumas perguntas sobre quem procuravam, ele exclamou: “ah, você quer dizer o professor branco que é bem escuro”. Todos os meus amigos brasileiros que ouviram a história riram – os americanos também. Em outras palavras, raça tem diferentes significados não só no tempo, mas no espaço, ou seja, geograficamente. Só ouvi a história depois de contar a meus amigos brasileiros que, em minha primeira visita à África do Sul, em 1978, eu era oficialmente um “branco honorário” segundo as leis do apartheid; isso era ainda mais divertido para eles.
Mas, voltemos à sua questão. Obviamente, eu considero que existe uma importante contribuição do marxismo no enfrentamento ao racismo estrutural. Esta contribuição se aproxima do que entendo sobre o que o slogan “Black Lives Matter” significa. Eu emprego o slogan da seguinte maneira: “Quando as vidas negras importam, todas as vidas importam”. Eu penso que essa foi a essência da formulação que Marx fez em O’ Capital em 1867: “Nos Estados Unidos da América do Norte, todo movimento operário independente ficou paralisado enquanto a escravatura desfigurava uma parte da República. O trabalhador de pele branca não pode emancipar-se onde o trabalhador de pele negra é marcado com ferro em brasa. Mas da morte da escravidão nasceu imediatamente uma vida nova e rejuvenescida”. Três anos antes, Marx abordou o mesmo ponto em sua mensagem em nome da Associação Internacional dos Trabalhadores (Primeira Internacional) direcionada ao presidente Abraham Lincoln parabenizando-o por sua reeleição em novembro de 1864: “Enquanto os trabalhadores, as verdadeiras forças políticas do Norte, permitiram que a escravatura corrompesse a sua própria república, enquanto perante o Negro — dominado e vendido sem o seu consentimento — se gabavam da elevada prerrogativa do trabalhador de pele branca de se vender a si próprio e de escolher o seu próprio amo, foram incapazes de atingir a verdadeira liberdade do trabalho ou de apoiar os seus irmãos Europeus na sua luta pela emancipação”. Enquanto, em outras palavras, as camadas mais pobres e exploradas da classe trabalhadora forem discriminadas, a classe trabalhadora como um todo, não poderá avançar. Quando “Black Lives Matter”, em outras palavras, “All Lives Matter”.
Estou convencido de que esse ponto breve, mas tão importante, informou Marx e Engels sobre a questão irlandesa. Até a Guerra Civil dos EUA, os dois pensavam que a autodeterminação irlandesa teria que esperar pela libertação da classe trabalhadora inglesa, ou seja, a revolução socialista na Inglaterra. Marx mudou de posição em 1869 [Eu defendo que sua filha de 15 anos, Eleanor, uma entusiasta irlandesa, também desempenhou um papel importante em sua mudança de opinião.] A realidade dos EUA ensinou que, enquanto os que estavam situados na base da classe trabalhadora eram discriminados devido à cor da pele ou à nacionalidade, as camadas mais privilegiadas da classe trabalhadora acima delas não podiam avançar. Portanto, a luta contra a discriminação racial e nacional precisava ser priorizada para que a classe trabalhadora como um todo avançasse – esta foi a lição política mais importante ensinada pela experiência dos EUA.
Qual aspecto destacaria em relação à militância abolicionista de Marx e Engels no processo da Guerra Civil Norte-Americana (1861-1865)?
August Nimtz: O mais importante, e tão revelador de Marx, é que ele abandonou todo seu trabalho em O’ Capital, especificamente, para montar uma campanha política na Inglaterra em apoio à causa da União quando a Guerra Civil dos EUA eclodiu em abril de 1861. Exatamente porque ele era primeiro e acima de tudo um militante político, o que constitui um comunista, portanto, ele era obrigado a priorizar a atividade política. Primeiro, lançando uma campanha na imprensa para defender a União contra as calúnias da imprensa burguesa. E então abraçar e liderar o movimento operário em 1864, quando foi fundada a Primeira Internacional em setembro daquele ano. Esse foi o contexto em que ele escreveu em nome da AIT a mensagem de felicitações a Abraham Lincoln. Esse ativismo de Marx e Engels naquele momento foi o que eles tinham de melhor, um modelo para todos os comunistas.
Qual relação pode ser estabelecida entre a teoria do valor-trabalho de Marx e a crítica ao racismo estrutural? Podemos afirmar o racismo como um processo fundamental para a produção de mais-valor e reprodução do capital em nível global?
August Nimtz: A exploração do trabalho é o mecanismo fundamental para a produção de valor e a reprodução do capital em nível global. Esse processo pode ocorrer de diferentes maneiras. O mais importante é que qualquer coisa que impeça os trabalhadores de se unirem para resistir à exploração contribui para esse objetivo. O uso da cor da pele, raça, etnia, nacionalidade, cidadania, religião, gênero, etc., são formas pelas quais os capitalistas podem comprometer a unidade da classe trabalhadora; o que vai depender do contexto histórico. A divisão mais importante dentro da classe trabalhadora corresponde à situação daqueles que estão empregados e aqueles que não estão. Os capitalistas fazem uso dos desempregados para ameaçar aqueles que estão empregados quando começam a fazer exigências para melhoria das suas condições de trabalho e de vida. E se os desempregados estiverem associados a uma determinada cor de pele, raça, nacionalidade, religião, gênero ou qualquer outra forma, a estratégia de divisão e de dominação dos capitalistas pode ser mais eficaz. A tarefa para o movimento dos trabalhadores não é jogar na estratégia dos capitalistas. Portanto, a defesa desses trabalhadores superexplorados situados no final da hierarquia social é de extrema importância. E, nas sociedades onde a escravidão racial historicamente foi significativa, a luta contra a discriminação racial e o racismo é, novamente, uma luta para o avanço da classe trabalhadora como um todo.
Você é autor de livros que discutem a estratégia e tática política de Lênin no processo da Revolução Russa. No atual momento histórico, considerando aspectos da política de “esquerda” no plano internacional, há uma subordinação do objetivo estratégico da tomada revolucionária do poder à mera participação em processos eleitorais controlados pelo capital?
August Nimtz: Lênin tinha um rótulo para o que você está perguntando: “parlamentarismo revolucionário”. Em vez de as eleições e o trabalho parlamentar serem fins em si mesmos, esse trabalho para os comunistas só se justificaria se isso significasse alcançar um objetivo mais amplo, a tomada revolucionária do poder. Para a socialdemocracia e reformistas, em geral, esse trabalho representa um fim em si, com todas as consequências trágicas para o movimento dos trabalhadores. Você saberia melhor do que eu, mas a experiência do Partido dos Trabalhadores no Brasil confirma na minha humilde opinião o que acontece quando esse trabalho se torna um fim em si mesmo. Eu estava em Salvador - Bahia em janeiro de 2003 assistindo na televisão com amigos à posse do Presidente Lula. Lembro-me de tentar oferecer cautela. Há um ditado em inglês: “não querer chover no desfile de alguém”. Eu senti que minhas palavras de cautela poderiam ser interpretadas dessa maneira. Em retrospectiva, eu deveria ter sido mais insistente com minha cautela sobre aqueles que se inscrevem no caminho parlamentar para o socialismo - exatamente o que a alternativa de Lênin buscava justificar (bem diferente da estratégia eleitoral do PT). Meus dois volumes sobre Lênin foram escritos exatamente por esse motivo - para ressuscitar o projeto marxista-leninista sobre como usar a arena eleitoral e parlamentar para um projeto revolucionário e não para um projeto reformista.
Neste momento, importantes lutas antirracistas e antifascistas estão surgindo no Brasil, nos Estados Unidos e em outros países. Na sua avaliação, quais são os desafios para os próximos períodos?
August Nimtz: Você conheceria a essência do Brasil melhor do que eu. Mas, os protestos contra o assassinato de George Floyd são de importância histórica. As forças conservadoras / de direita em virtude destas ações estão recuadas. Por quanto tempo? É impossível dizer. Mas as forças progressistas e de esquerda precisam reconhecer o que foi alcançado - e o que não foi. E nunca esquecer que os protestos ocorreram na era de Donald Trump. Todo tipo de gente esperta e inteligente acreditava que, com a eleição de Trump em novembro de 2016, a Supremacia Branca havia triunfado. Eu discordei veementemente dessa visão. Mas, o grupo de pessoas que pensava o mesmo que eu nesse momento era minoria. O que aconteceu nos EUA é uma forte evidência contra a tese de triunfo da supremacia racial branca. O desafio é garantir que a energia progressiva não seja absorvida pelo que chamo de buraco negro do Partido Democrata - o cemitério histórico de movimentos sociais progressistas - voltando à busca da ação política independente da classe trabalhadora da década de 1930. E o que nunca deve ser esquecido é que, na véspera dos protestos atuais, havia a perspectiva preocupante de uma crise capitalista mundial não muito diferente do que aconteceu na década de 1930, com todos os desafios e oportunidades que as crises oferecem para as forças revolucionárias. Se nosso lado for reprovado no teste, as forças fascistas serão ouvidas. É preciso articular as lutas antifascistas e antirracistas à luta anticapitalista. A bola está em nosso campo.
Mario Soares Neto – Advogado, Professor e Pesquisador. Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia – PPGD/UFBA. Militante Político no Brasil com atuação no movimento negro e movimentos sociais de luta da classe trabalhadora. Coordenou o Curso Marxismo e Pan-Africanismo (2018; 2019).
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