Entre acomodação e contestação: Brasil no cálculo de poder dos EUA para América Latina

O Brasil é o Estado-chave para a manutenção ou contestação do poder estadunidense no continente americano

Lula e Joe Biden
Lula e Joe Biden (Foto: Stuckert | Reuters)


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Valdir da Silva Bezerra, Sputnik

 Como terceira maior economia e terceiro maior território das Américas (atrás somente dos Estados Unidos e do Canadá) e como segunda maior população e segundo maior Exército da região, o Brasil possui inegável peso para a configuração de forças no âmbito continental.

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 Antes de mais nada, é preciso mencionar que a tese do "Estado-chave", popularizada por Oscar Camilión (ex-ministro da Defesa da Argentina entre os anos de 1993 e 1996), apregoava que os Estados Unidos delegavam a missão de manter a ordem e a estabilidade política para um determinado "país-chave" em cada região do globo.

 O intuito era utilizar uma potência regional selecionada para desempenhar o papel de defensor da Pax Americana e, com isto, manter a hegemonia dos Estados Unidos intacta nos planos local e global.

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 Segundo essa interpretação, na Europa o país-chave escolhido pelos Estados Unidos foi a Alemanha, ocupada militarmente e que desempenhou papel importante no projeto de integração europeu; na Ásia, o principal parceiro de Washington é o Japão, que também abriga bases e tropas militares estadunidenses e que se presta ao papel de importante anteparo ao poderio chinês; no Oriente Médio esse país é Israel, com quem os americanos possuem um relacionamento especial devido ao forte lobby e presença israelense nos Estados Unidos.

 E por fim na América Latina, seguindo essa mesma leitura, o país-chave para os americanos é justamente o Brasil. Com efeito, existiram de fato momentos na história do Brasil em que seus vizinhos latino-americanos tinham a percepção de que o país era usado como um instrumento para a consecução dos objetivos norte-americanos no continente.

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 Nesse sentido, pode-se citar, por exemplo, os primeiros anos do regime militar, sobretudo sob a direção de Castelo Branco (entre 1964 e 1967), no qual o Brasil deixou temporariamente de lado suas tentativas de exercer uma política externa mais independente e multifacetada.

 Na ocasião, o governo brasileiro preferiu dar prioridade à questão da segurança coletiva nas Américas, alinhando-se automática e ideologicamente aos Estados Unidos no contexto da Guerra Fria, representando os interesses de Washington na América Latina.

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 Tal subordinação expressava-se dentro de uma lógica concêntrica, no qual os interesses brasileiros eram definidos, prioritariamente, com base na visão dos americanos para o continente.

 É exatamente nesse período que se dá, por exemplo, a ruptura política com Cuba, a participação de tropas brasileiras na intervenção militar liderada pelos Estados Unidos na República Dominicana em 1965 e a ideia de criação de uma força interamericana de paz para policiar o "espaço ideológico" na América Latina.

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 Mesmo que posteriormente esse posicionamento inicial de acomodação do regime militar tenha se alterado, não demorou muito para que esse tipo de movimento fosse reproduzido pelo Brasil poucos anos depois de sua redemocratização.

 Isso porque, com o fim da Guerra Fria e o desaparecimento da bipolaridade no sistema, o breve governo de Fernando Collor (1990-1992) introduziu no plano político doméstico a ideia de que: não restava outra opção ao Brasil a não ser alinhar-se com o poder hegemônico, acatando sem resistência as diretrizes econômicas e ideológicas emanadas de Washington.

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 Seguindo o exemplo do Brasil, portanto, outros países da região acabaram adotando o assim chamado Consenso de Washington, que se tratava de um amplo programa econômico de viés liberal que tinha o intuito de promover a recuperação do continente.

 Elaborado por economistas e representantes do governo estadunidense, o resultado da adoção desses programas na América Latina foi altamente conturbado, gerando graves crises econômicas e insatisfação por parte da população civil e mesmo das elites políticas na região.

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 Representou, em resumo, uma época de acomodação do Brasil para com a nova fase do imperialismo econômico dos Estados Unidos no mundo. Em tempos mais recentes, por sua vez, o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022) também suscitou a interpretação de que o Brasil voltava a se alinhar quase que de forma automática aos interesses dos Estados Unidos no continente americano.

 Isso porque o país deixara novamente de lado parte de sua política externa multivetorial, preferindo o estabelecimento de contatos bilaterais mais próximos com Estados como Israel, Japão e com os próprios Estados Unidos.

 Não obstante, o Brasil passou a contestar a importância do multilateralismo e de organismos internacionais como a ONU, mimetizando o discurso do presidente americano Donald Trump. Além do mais, a administração Bolsonaro retirou o Brasil do quadro da CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) em 2020.

 Vale lembrar que a CELAC foi criada com o objetivo de fortalecer iniciativas de integração regional (sem a participação dos Estados Unidos e do Canadá), procurando justamente consolidar a América Latina como um polo político independente e como um dos centros de influência do mundo multipolar.

 Repetindo comportamentos de seu passado, portanto, algumas das ações adotadas pelo governo Bolsonaro indicaram um desengajamento regional do Brasil, demonstrando novamente relativa acomodação para com as diretrizes e os interesses dos Estados Unidos no continente. Todavia, essa política externa brasileira não se manteve monolítica por muito tempo e movimentos de reversão e de alteração de curso acabaram se manifestando no final de seu mandato.

 Com a ausência de Trump na Casa Branca, o presidente brasileiro caminhou para uma relativa (re)aproximação com os países do BRICS e com a Rússia em particular. Diante desse novo cenário, Bolsonaro, apesar do desagrado de Washington, acabou visitando Moscou em fevereiro de 2022, chegando a mencionar que demonstrava "solidariedade" para com a Rússia, contrariando assim os interesses americanos na ocasião.

 Tempos depois, quando o Kremlin optou por iniciar a operação militar especial na Ucrânia, o governo Bolsonaro decidiu não seguir os Estados Unidos, evitando o uso de sanções contra a Rússia. Seguindo essa mesma linha final da administração Bolsonaro, o atual governo brasileiro, encabeçado por Lula, também preferiu continuar um caminho de cuidadosa contestação do papel dos Estados Unidos nas relações internacionais.

 Adicionalmente, tal contestação passou pela ampliação de laços de cooperação econômica e política regional na América Latina, assim como com o Sul Global, através do BRICS e do G20. Tais movimentos, por sua vez, partem da percepção de que o atual momento conjuntural do sistema requer a defesa conjunta por parte dos países latino-americanos de seus interesses nacionais, e de que essa defesa deve contar com a liderança do Brasil.

 Junto a isso, percebem-se fenômenos outros importantes como o interesse de vários países da região em se unir ao grupo BRICS (a exemplo de Argentina, Uruguai, Venezuela, México, Cuba etc.), discussões iniciais sobre a necessidade de fomentar o comércio bilateral em moedas locais, a manutenção da neutralidade regional diante do conflito na Ucrânia, a assinatura de acordos no âmbito econômico e tecnológico com a China, etc.

 Todos esses movimentos, sem sombra de dúvidas, representam - em maior ou menor grau - uma contestação ao poder americano no continente. Por fim, é curioso notar que em 1971 o então presidente americano Richard Nixon dizia que "para onde for o Brasil também irá a América Latina".

 Há razões para acreditar que Nixon estava certo. Afinal, o tamanho e os recursos do Brasil o credenciam naturalmente a um papel de influência e de liderança regional. Contudo, caberá unicamente ao Brasil definir o que fazer com essa influência, se a usará para acomodar-se ou para contestar o poder hegemônico dos Estados Unidos no continente.

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