"Destruir uma estátua não resolve, é preciso discutir a memória", diz historiador
“São representações codificadas de pioneiros, encomendadas para ilustrar a construção do país, mas hoje eles são discutíveis do ponto de vista historiográfico, ético e memorial”, avalia o curador do Museu do Ipiranga, Paulo Garcez Marins
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Da RFI - Estátuas de figuras ligadas de alguma forma ao escravagismo estão sendo derrubadas ou destruídas na Europa e nos Estados Unidos nos últimos dias. A questão se levanta também no Brasil. Para o historiador Paulo Garcez Marins, os monumentos são importantes para a reflexão do passado.
Embaladas na energia planetária de descontentamento diante do assassinato de George Floyd, manifestantes têm tido como alvo estátuas de personagens que tiveram influência no tráfico de escravos negros. Primeiro foi Edward Colston, no domingo (7), jogado no rio por uma multidão em Bristol, na Inglaterra. Seguiram-se Leopoldo II, da Bélgica, rapidamente retirado de uma praça em Antuérpia e deslocado para um museu. Cristóvão Colombo tem sido depredado nos Estados Unidos.
Nos últimos dias, principalmente nas redes sociais, levanta-se a possiblidade do ato no Brasil, principalmente contra os bandeirantes, considerados historicamente como desbravadores, mas que buscavam essencialmente riquezas minerais, sendo responsáveis também por dizimar populações indígenas e destruir quilombos.
Paulo Garcez Marins é docente e curador do Museu Paulista (Museu do Ipiranga), da Universidade de São Paulo (USP), acervo que conta com importante material iconográfico sobre os bandeirantes. “São representações codificadas de pioneiros, encomendadas para ilustrar a construção do país, mas hoje eles são discutíveis do ponto de vista historiográfico, ético e memorial”, explica.
“Brasil está de novo construindo mitos contemporâneos, que podem vir a gerir estátuas", analisa o especialista. "O que vamos fazer com essas homenagens? Elas dizem respeito a quantos por cento da população? A nossa sociedade está debatendo hoje claramente a centralidade de figuras políticas que colocam em xeque posições muito contraditórias. Ou seja, isso nos marcará sempre. Não vamos nos apaziguar tirando um problema, precisamos tratar esse problema”.
“Como historiador, eu não vejo um movimento de derrubada de estátuas como algo que seja efetivamente útil”, diz o especialista. “Mais importante que abolir imagens, é nos capacitarmos para discutir essas imagens e outras. Não há possibilidade de nós lidarmos com imagens, sejam elas esculpidas, pintadas, fotográficas, sem que tenhamos em conta o quanto essas imagens são parciais. Ou seja, mais que derrubar um monumento, é importante entender por que ele foi construído, problematizar essa escolha, problematizar o ato de celebrar alguém no passado que hoje é intolerável e, sobretudo, trazer a discussão sobre a construção de memória para o público. Porque se nós tiramos uma estátua e substituímos por outra, daqui a 30, 40 anos, será essa estatua também objeto de uma crítica – e a solução será derrubar essas estátuas?”
"Destruir estátua não resolve o problema"
Marins cita sucessões de derrubadas e substituição de monumentos na Europa, da monarquia dos Bourbon, na França, passando pela Revolução Francesa, Napoleão e a guerra franco-prussiana. E o processo se repete até hoje.
“Na verdade, sofremos um processo contínuo de destruição dessas evocações memoriais, como se destruindo a estátua, destruíssemos o problema que elas representam e isso não acontece. Do meu ponto de vista, é sobretudo importante usar as estátuas como um ponto de partida para a discussão”, explica o historiador.
O ideal, para Marins, seria um texto explicativo junto a um monumento: “Precisamos saber tratar essas imagens como um problema. Eu não posso simplesmente retirar a estátua de um bandeirante e enterrar junto com isso uma discussão sobre o que é, por exemplo, a destruição de populações indígenas, ou quilombolas, nos séculos 17, 18, porque essas questões continuam presentes hoje”.
Ele enfatiza a importância das discussões. “O documento cruel sobre o passado é um ponto de partida. Precisamos aprender a desconfiar das imagens, dos monumentos, muito mais que simplesmente celebrá-los. . Enquanto uma estátua de um bandeirante estiver na praça, a discussão sobre a memória dos bandeirantes e o massacre das populações indígenas, isso estará vivo. A partir do momento em que aquilo sai da praça, da rua, da vista, esse assunto pode simplesmente fenecer. Sumir”, diz o curador do Museu do Ipiranga.
“A União Soviética passou sucessivas vezes também por esse problema”, lembra Marins. “Quando foi constituído o regime comunista, tudo relativo à monarquia Romanoff tudo foi destruído, fundido, derrubado, com raras exceções, como é o caso da estátua equestre de Pedro, o Grande, em São Petersburgo. Mas quase tudo foi destruído. Depois, com a queda do regime soviético, as esculturas do Lenin, do Stalin, foram todas derrubadas. Enfim, derrubar uma escultura não é efetivamente muito produtivo, acho preferível mantê-la como problema.”
Argentina troca Colombo por indígena
O historiador cita ainda a Argentina como palco recente do fenômeno. “Isso foi muito discutido há alguns anos, quando o regime da Cristina Kirchner decidiu que uma homenagem a Cristóvão Colombo foi substituída por um monumento lembrando uma liderança indígena, uma mulher. Numa discussão sobre o que é o contato da Europa com a América, é compreensível que muitas pessoas queiram retirar o conquistador e fazer uma homenagem à liderança indígena. Mas não é apenas ela que está ali figurada, é por exemplo todo o movimento do regime da Cristina Kirchner usando a imagem dessa indígena para também promover-se como regime contemporâneo. Ou seja, não é apenas um monumento à índia, mas também ao governo que a faz. Nunca vamos conseguir nos livrar dessas dimensões.”
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