Cosmopolitismo plebeu: a sociologia de Florestan Fernandes

Os professores de Sociologia da UFRJ André Botelho e Antonio Brasil Jr. debatem em dois textos o pensamento do sociólogo Florestan Fernandes, cujo nascimento completou 100 anos

(Foto: Divulgação)


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Por André Botelho e Antonio Brasil Jr.

(Publicado no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social)

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No post de hoje o Blog da BVPS comemora o centenário de Florestan Fernandes, nascido em 22 de julho de 1920. Trazemos abaixo dois textos de André Botelho e Antonio Brasil Jr., professores do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ. No primeiro, escrito especialmente para o Blog, fazem um balanço de suas pesquisas sobre Florestan Fernandes. No segundo, oferecem aos leitores uma versão revista de parte do prefácio que escreveram para a nova edição de A Revolução Burguesa no Brasil, focado no aspecto cosmopolita da sociologia de Florestan. Em ambos transparece a urgência e atualidade da obra do homenageado para o tempo presente.

Boa leitura!

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Há exatos 100 anos Florestan Fernandes nascia em São Paulo. Florestan deixou muitas marcas na sociologia e na sociedade brasileiras. Todas elas passam fundamentalmente pelo seu empenho em compreender como “o Povo emerge na História”. Compromisso para o qual terá concorrido também a sua própria história. De origem humilde,  contou com certa “proteção” de sua madrinha (e patroa de sua mãe) na infância para se alfabetizar, e teve que compensar uma educação precária no que hoje chamamos de ensinos fundamental e médio com muita autodisciplina e dedicação, tendo frequentado cursos especiais noturnos voltados para jovens e adultos trabalhadores. E até ingressar como Professor Assistente na USP, Florestan desempenhou ofícios extremamente modestos, como engraxate, garçom e posteriormente representante de laboratório farmacêutico. Assim, era de certa forma também a trajetória de pessoas como ele próprio que Florestan passaria a pesquisar.

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Seu percurso extraordinário até a consagração intelectual encontrava, porém, um sentido em parte convergente com o da própria sociologia. Como disciplina intelectual, as experiências sociais dos seus praticantes sempre contam para a sociologia, e muito. Particularmente para o alargamento de suas temáticas, mas também, nos melhores casos, como o de Florestan, para o questionamento e a inovação das formas de abordagens estabelecidas. É a isso que, em parte, se deve aquilo que Max Weber chamou de “eterna juventude” da sociologia. Ao introduzir o “homem comum” no centro do seu interesse analítico – camponeses, pescadores, operários, índios, negros etc. – a sociologia acadêmica brasileira dos anos 1950 e 60 operou verdadeiro movimento de rotação não apenas teórico-metodológico, mas também ético em relação aos estudos sociais então vigentes. Florestan foi um dos seus grandes protagonistas, levando esse movimento a uma radicalidade inédita em A integração do negro na sociedade de classes (1965). Feito em diálogo com as lideranças do associativismo negro de São Paulo, Florestan levou a sério as denúncias feitas havia décadas pelo movimento negro quanto aos limites da democracia no plano das relações raciais. Sociologicamente, Florestan situou esses limites no próprio sentido das mudanças sociais em curso, que estavam compatibilizando formas de sentir, pensar e agir típicas de uma ordem escravista e senhorial com as inovações do moderno capitalismo industrial. Pensando com o movimento social, mas também além, graças ao olhar atento à dimensão de processo, Florestan insistia que a democratização efetiva dependia de uma redefinição estrutural da sociedade, e não de uma simples correção de suas distorções.

O centenário de nascimento de Florestan Fernandes é assim um momento especial para voltarmos à sua obra, ainda mais porque a sociedade brasileira vê, mais uma vez, a sua democracia fragilizada, agredida, ameaçada. Florestan deu contribuições definitivas à compreensão dos fenômenos políticos, mesmo sem ter feito “sociologia política” especializada. E há vários elementos em sua obra que nos ajudam a pensar o nosso presente. Ainda em 2016, passamos a explorar esse campo de possibilidades nas discussões do Núcleo de Estudos Comparados e Pensamento Social (NEPS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ligado à rede Biblioteca Virtual do Pensamento Social. Surpreendidos enquanto pesquisadores com os eventos políticos então recentes, a discussão coletiva em torno de alguns autores brasileiros, em especial sobre a obra de Fernandes, representou talvez uma espécie de fio de Ariadne, para testar os instrumentos básicos da nossa área de pesquisa e seus sentidos heurísticos para pensar, senão exatamente o presente, o processo de média duração que nele se esconde. Assim, numa chave analítica deliberadamente anacrônica, passamos a tomar interpretações clássicas do Brasil como um recurso para dimensionar a força do presente.

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No que diz respeito a Florestan Fernandes concentramos nossos esforços principalmente em duas frentes principais. Primeiro, na rediscussão do conceito de “autocracia burguesa”, tema que retomamos no prefácio à nova edição de A Revolução Burguesa no Brasil que acaba de ser publicada. Como chamamos a atenção, também do ponto de vista político, este livro que já nasceu clássico não foi exatamente fácil para os leitores dos anos de 1970, e também do ponto de vista político. O conceito de “autocracia burguesa” não deixava de ser algo desolador para aqueles seus contemporâneos que buscavam diretamente no livro um meio, digamos, operacional, de combate direto à ditadura civil-militar. Afinal, Florestan faz nele uma distinção heurística crucial que torna a compreensão da realidade social e da transição democrática muito mais complexa e matizada do que, talvez, estivessem prontos seus leitores de então. É esta, muitas vezes, a tarefa precípua da sociologia. Mostra Florestan que a “democracia” não constituiria apenas uma forma de “exercício” do poder político (que se contraporia à ditadura então vigente), mas que diz respeito também às formas sociais de “organização” do poder político. Aqui toda a qualidade sociológica apurada em mais de duas décadas de trabalho rigoroso como que atinge seu ápice, e Florestan passa a interrogar os fundamentos sociais tanto da política quanto da economia. Por isso, forja a ideia de “autocracia” para interpretar o fenômeno da persistência de um princípio ordenador radicalmente antidemocrático mais geral do Estado, da sociedade e do mercado até mesmo em momentos formal ou abertamente democráticos. As reviravoltas na espiral da democracia não pararam – como bem sabemos hoje, no Brasil e no mundo. E então, a distinção crucial de Florestan parece fazer até mais sentido ainda para nós. E o modo como se deu a transição democrática mais voltada para a substituição das formas de exercício do que de organização social do poder político cobra agora sua conta da sociedade brasileira.

A segunda frente de pesquisa diz respeito às possibilidades e limites do comportamento das chamadas “classes médias” numa ordem social senhorial e política autocrática. Publicamos a esse respeito um longo ensaio, justamente nomeado “Florestan Fernandes para dimensionar a força do presente” (no livro República e democracia: impasses do Brasil contemporâneo, organizado por André Botelho e Heloísa Starling e publicado 2017). Nele discutimos como Florestan mostrou-se atento em vários momentos de sua obra as camadas intermediárias no Brasil, sobretudo, no que se refere aos limites estreitos de seu radicalismo político e a sua lealdade histórica aos interesses das camadas sociais dominantes e sua ordem de privilégios em vez de sua associação com demandas democráticas mais gerais ou universalistas. Este processo é visto em detalhe, sempre numa perspectiva de longa duração, em pelo menos dois livros centrais de Florestan – em A integração do negro na sociedade de classes (1965) e em A revolução burguesa no Brasil (1975). Mostra Florestan como o processo de mobilidade social ascendente e de permanente circulação de indivíduos de origem plebeia (ainda que só em escala individualizada, e não coletiva) nos espaços das camadas dirigentes está longe de ser um fenômeno apenas democratizante, pois a porosidade das hierarquias sociais revela-se compatível tanto com níveis extremos de desigualdades quanto com a reiteração de formas de socialização autocráticas e avessas a uma filosofia democrática de vida, à legitimidade do conflito e à abertura universal do princípio da competição. Então, o problema, para Florestan, não seria a ausência de mobilidade social, como tendem a se limitar certas abordagens; mas o princípio de organização da sociedade, que reitera a excludência. Não por acaso, mais uma vez, as “classes médias”, por seu peso político e simbólico na estruturação da sociedade brasileira, é um setor estratégico para a análise das reviravoltas da democracia em curso na sociedade brasileira.

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Para esse post comemorativo, porém, trouxemos uma discussão mais ampla sobre o legado teórico de Florestan Fernandes e os significados de sua contribuição à sociologia em geral. Assim, compartilhamos parte do já referido prefácio à nova edição de A Revolução Burguesa no Brasil, onde propomos uma – até onde sabemos – nova chave de leitura da sua obra e de algumas outras contribuições capitais da sociologia brasileira, como notavelmente a de Luiz de Aguiar Costa Pinto, professor emérito do nosso Departamento, cujo centenário também comemoramos neste ano de 2020. Referimo-nos à questão do cosmopolitismo sociológico que, argumentamos, não se limita ao objeto desses autores, a matéria sociológica por excelência, que são os processos mais gerais das sociedades, mas envolve, sobretudo, ainda  duas outras dimensões. Primeiro, o modo inovador e desafiador como relacionam história e teoria, permitindo que aquela não ilustre, mas interpele constitutivamente a teoria. Segundo, por isso mesmo, a ousadia teórica de, beneficiando-se dos avanços da sociologia como um legado universal, recusarem o papel comumente atribuído às sociologias periféricas na geopolítica do conhecimento – ou de consumidoras de teoria ou de fornecedoras de casos históricos ilustrativos das teorias produzidas nos países centrais. O mais importante, contudo, é a forma inovadora com que leem a diferença na sociedade brasileira. No caso de Florestan Fernandes é mesmo exemplar a sua recusa em pensar a repetição como mera cópia ou impasse de um processo de formação eurocêntrico normativamente concebido. Como a repetição é vista como uma repetição com diferença, a própria ordem social deixa de ser vista como uma espécie de ente ontológica, histórica e analiticamente em processo de devir, e passa a ser problematizada em toda a sua precariedade e contingência radicais. A sociedade torna-se, assim, bastante improvável. E justamente o tema da improbabilidade da sociedade constitui, agora, uma fronteira importante para cruzarmos a frente no estudo da obra de Florestan.

Ainda sobre o tema geral que compartilhamos nesse post, o do cosmopolitismo sociológico, reconhecemos nossa dívida para com trabalhos de Silviano Santiago, no campo na crítica cultural, pela importância que confere ao tema em geral e também pelas sugestões instigantes sobre o tema em Florestan Fernandes – Silviano fez uma das primeiras resenhas de A Revolução Burguesa no Brasil a pedido do próprio Florestan, com quem travou conhecimento próximo durante o exílio acadêmico do nosso homenageado. Republicamos esta resenha no dossiê especial que fizemos sobre Florestan Fernandes na revista Sociologia & Antropologia em 2018, com Maurício Hoelz. Aproveitamos para convidar para a releitura do excelente material que tivemos a fortuna de publicar. Do mesmo modo convidamos à releitura do especial publicado no Suplemento Pernambuco de maio passado como uma espécie de primeiro passo das comemorações que hoje chegam ao seu ápice, no dia em que comemoramos os exatos 100 anos de nascimento desse notável sociólogo que honra a nossa e toda a tradição sociológica.

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Compartilhamos a seguir o trecho revisto de “A Revolução Burguesa no Brasil: cosmopolitismo sociológico e autocracia burguesa” (In: FERNANDES, Florestan: A Revolução Burguesa no Brasil: São Paulo: Contracorrente, 2020). Aproveitamos para agradecer ao colega Bernardo Ricupero, curador da reedição da obra, pela oportunidade.

Viva Florestan!

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André Botelho e Antonio Brasil Jr.

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Cosmopolitismo plebeu: a sociologia de Florestan Fernandes

por André Botelho[i] & Antonio Brasil Jr.[ii]

florestan-fernandes
Florestan Fernandes durante seu exílio nos EUA, em 1977, num dos portões da Universidade de Yale. Retirada de: “Análise de fotografias: Florestan Fernandes no tempo da ditadura militar” (2012), de Vera Lucia Cóscia. Fundo Florestan Fernandes(Photo: UFSCar/Fundo Florestan Fernandes)


A Revolução Burguesa no Brasil de Florestan Fernandes é um dos livros mais cosmopolitas da sociologia brasileira. A começar pelo título, apenas aparentemente simples. Afinal do que trata esse livro que ganha agora reedição no centenário de nascimento de seu autor? De um fenômeno geral ou do seu contexto particular? Da revolução burguesa, e do capitalismo moderno ao qual está associada, ou do Brasil? A resposta a essa pergunta, argumenta um de seus intérpretes mais argutos, não permite disjuntivas. “São ambas as coisas” é a única resposta possível, diz Gabriel Cohn. Estudar a revolução burguesa no Brasil significa, para Florestan Fernandes, “reconstruir como se dá nesta particular configuração histórica um processo de proporções mundiais que é simultaneamente econômico, político, social, cultural e que se estende até à estrutura da personalidade e às formas de conduta individuais”. Formulação lapidar que, ademais, faz justiça à complexidade do raciocínio e à sofisticação teórica de Florestan, cuja concepção de sociedade (e também de sociologia) não cabe em fórmulas disjuntivas rotinizadas como coerção duradoura desde fora ou interações contínuas de ações individuais dotadas de sentido subjetivo.

Mas, seu cosmopolitismo não está apenas na matéria, que se tornou, digamos, “universal” – afinal, o tipo de sociedade forjada pelo capitalismo moderno. Mas mais ainda nas provocações teóricas e políticas que a proposta de Florestan Fernandes contém. Se já é ousada a pergunta sobre o “estilo próprio” conferido pela sociedade brasileira ao capitalismo, imagine levar uma resolução histórica particular a interpelar tanto a compreensão da “universalidade” quanto os termos de um debate intelectual internacional geopoliticamente tão hierárquico e assentado. Pois é tudo isso e muito mais que A Revolução Burguesa no Brasil realiza, e permite compreender. E, talvez, hoje, melhor ainda do que em 1975 quando da sua publicação original. Aliás, desde a página de abertura do livro, Florestan lamentava que até então não se tivesse criado entre os cientistas sociais brasileiros “uma perspectiva de interpretação histórica livre de etnocentrismos, aberta a certas categorias analíticas fundamentais e criticamente objetivas”.

Não são muitos os livros brasileiros que rejuvenesceram com o tempo. A Revolução Burguesa no Brasil é um deles. É certo que os problemas tratados no livro dizem respeito a processos históricos, sociais e políticos de longa duração que constituem, mas também excedem as circunstâncias originais de sua publicação. A revolução burguesa, afinal, não se restringe a um evento datado, mas envolve e implica a temporalidade múltipla própria dos processos. Então o tema do livro ainda nos diz respeito. Ainda mais numa sociedade, como a brasileira, em que a mudança se realiza mais pela reiteração e acomodação, do que apenas pela ruptura – como, aliás, estamos protagonizando/testemunhando em acontecimentos cruciais em curso novamente neste momento. Mas isso não é suficiente para que se possa constatar a atualidade de uma interpretação. Se assim o fosse, toda obra do passado poderia ser mais ou menos ainda atual hoje.

A atualidade de A Revolução Burguesa no Brasil é também de ordem teórica, e pode ser testada na concepção, na fatura do texto e na análise crítica forjadas de um ponto de vista sociológico muito próprio. Muito próprio, mas que também vem recebendo desdobramentos importantes e enlaçando diferentes gerações na sociologia brasileira, como mostrou Elide Rugai Bastos em seu trabalho “Pensamento social da escola sociológica paulista” (2002). A nosso ver, a potente comunicação do livro com o contemporâneo se deve ainda aquele gesto teórico transgressor que sempre caracteriza o que há de melhor na sociologia, que nasce do descontentamento profundo e bem meditado com as explicações reificadas e da coragem de contrariar o estabelecido – não apenas pelo senso comum da sociedade, mas também pela rotina intelectual da universidade. Tensão e desconforto com a sociedade envolvente e com o seu tempo sempre alimentaram a sociologia de Florestan Fernandes. E estão na base de seu projeto de uma sociologia crítica.

Assim, embora não fosse ela mesma obra de juventude, seu autor contava com 55 anos de idade quando a levou a público, reunindo, porém, textos escritos desde a década anterior e reflexões de toda uma vida, A Revolução Burguesa no Brasil traz essas marcas críticas fortes. Naturalmente, como tem lembrado Elide Rugai Bastos em seus trabalhos, ousar repensar e até mesmo recusar o assentado na teoria sociológica desde a periferia, abrindo mão inclusive da segurança que os modelos pré-concebidos e estabelecidos também oferecem aos intelectuais, implica não apenas em acertos. Mas potencialmente também em equívocos. Não se trata, portanto, de corroborar uma perspectiva triunfalista e, por isso, algo ingênua sobre Florestan Fernandes e a própria dinâmica da sociologia. Mas, antes, de uma reconexão crítica com seu projeto teórico de forma a fazer frente aos desafios do nosso próprio tempo, quarenta e cinco anos depois da edição original do livro que a leitora e o leitor tem agora em mãos.

O momento para a reedição de A Revolução Burguesa no Brasil não poderia ser mais propício. O contexto social e político atual da sociedade brasileira, não é segredo, caracteriza-se pelo aumento crescente das desigualdades sociais e pela intensificação de sua naturalização ideológica, como se elas decorressem do comportamento dos indivíduos e não de contradições sociais. Do ponto de vista político, a vida social está marcada por um novo e intenso retraimento da esfera pública e pelos ataques diretos às instituições democráticas e à democracia como valor universal que, a muitos, parecia constituir a essa altura da história um mero pressuposto analítico de suas teorias, ou um dado consolidado da realidade social. Isso para não falar das mudanças associadas em curso no capitalismo global. Esses fenômenos estão mesmo exigindo interpretações sociológicas mais vigorosas e de conjunto em meio à fragmentação e a ultra especialização vigentes nas ciências sociais. Esperemos, então, que a reedição de A Revolução Burguesa no Brasil possa constituir também uma contribuição para a renovação em curso da sociologia, após certo refluxo das chamadas grandes narrativas. O aumento das desigualdades sociais e as reviravoltas na espiral da democracia, no Brasil e no mundo, recolocam a sociologia no centro do debate intelectual e político, na medida em que vai se tornando mais claro do que nunca que as inovações institucionais e tecnológicas não se realizam num vazio de relações sociais.

Por certo, a reedição poderá reavivar enfrentamentos conhecidos entre pontos de vistas de leitura habituais. Mas não iremos aqui, por exemplo, jogar água na fervura do debate se houve ou não uma revolução burguesa no Brasil. Deixamos, nesse caso, a palavra como o próprio Florestan: “A questão estaria mal colocada, de fato, se se pretendesse que a História do Brasil teria de ser uma repetição deformada e anacrônica das histórias daqueles povos. Trata-se ao contrário de determinar como se processou a absorção de um padrão estrutural e dinâmico de organização da economia, da sociedade e da cultura”. Mas essa reedição, sobretudo, poderá despertar a curiosidade e o interesse de novas leitoras e novos leitores dessa segunda década do século XXI que se inicia. Hoje, inclusive, quando a crítica ao eurocentrismo e as chamadas epistemologias pós-coloniais ou do Sul Global ganham mais visibilidade, no Brasil e na sociologia como um todo, o livro tem potencialmente novas aberturas e interesses internacionais.

A reedição encontra também uma universidade pública, em geral, e a sociologia acadêmica e as ciências sociais, em particular, muito maiores, mais desenvolvidas institucionalmente com consolidada pós-graduação e produção científica competitiva, além, de mais diversificadas regional e socialmente e bem mais plurais teoricamente do que a dos anos 1970. Com a presença em seus quadros discentes também de perfis sociais bem mais diversos graças às políticas públicas criadas entre 2003 a 2016 que combinaram, pela primeira vez entre nós, inaudita expansão do número de vagas e implementação de ações afirmativas e inclusivas. Perfis sociais, aliás, até mais próximos ao do próprio Florestan, cujo notável percurso intelectual se confunde em parte com um dos aspectos mais relevantes da sociologia. Como disciplina intelectual, de fato, as experiências sociais dos seus praticantes sempre contam para a sociologia, e muito. Particularmente para o alargamento de suas temáticas, mas também, nos melhores casos, como o do próprio Florestan, para o questionamento e a inovação das formas de abordagens estabelecidas. Não será a isso que, ao menos em parte, se deve aquilo que Max Weber chamava de “eterna juventude” da sociologia?

Não temos como, neste prefácio, recensearas múltiplas provocações ao assentado e ao rotineiro no debate intelectual brasileiro de publicação de A Revolução Burguesa no Brasil, nos anos 70 do século passado. Mas assinalamos algumas delas para poder destacar sua capacidade de interpelação teórica e sociológica contemporânea, o que certamente poderá ser experimentado diretamente na leitura das páginas do livro.

A Revolução Burguesa no Brasil contraria de saída uma das visões mais assentadas sobre a sociologia brasileira, a de que o sentido de urgência para a resolução de graves problemas sociais em que nos vemos premidos em nossa sociedade tão desigual e antidemocrática tornaria de alguma forma o nosso trabalho, na periferia do capitalismo, inadequado à formulação teórica. Melhor seria deixar a teorização para nossos colegas do centro, Europa e Estados Unidos. Florestan fez o contrário do que se esperava nessa geopolítica do conhecimento sociológico ainda hoje vigente. A sua interpretação sobre a constituição da sociedade moderna no Brasil problematiza aquela posição, justamente ao qualificar a fragilidade do moderno em romper com a tradição não apenas de um ponto de vista histórico, mas propriamente teórico. Isto é, ao invés de se limitar a apresentar um caso que discrepava da tendência eurocêntrica, fez a particularidade da modernização brasileira interpelar a própria teoria sociológica adotada como ponto de partida da análise.

Também do ponto de vista político, A Revolução Burguesa no Brasil não foi um livro fácil para os leitores dos anos de 1970. Para retomar um exemplo crucial, um de seus conceitos centrais, o de “autocracia burguesa”não deixava também de ser algo desolador para aqueles seus contemporâneos que buscavam diretamente no livro um meio, digamos, operacional, de combate à ditadura civil-militar. Afinal, Florestan faz nele uma distinção heurística crucial que torna a compreensão da realidade social e da transição democrática muito mais complexa e matizada do que, talvez, estivessem prontos seus leitores de então. Mostra que a “democracia” não constituiria apenas uma forma de “exercício” do poder político (que se contraporia à ditadura então vigente), mas que dizia respeito também às formas sociais de “organização” do poder político. Aqui toda a qualidade sociológica apurada em mais de duas décadas de trabalho rigoroso como que atinge seu ápice, e Florestan passa a interrogar os fundamentos sociais tanto da política quanto da economia. Por isso, Florestan forja a ideia de “autocracia” para interpretar o fenômeno da persistência de um princípio ordenador radicalmente antidemocrático mais geral do Estado, da sociedade e do mercado até mesmo em momentos formal ou abertamente democráticos. A relação da autocracia com a democracia não é de oposição, mas, precisamente, parafraseando a imagem de Gabriel Cohn, “sua sombra sempre presente em segundo plano, para emergir, com maior ou menor virulência, em situações de crise do poder burguês”. As reviravoltas na espiral da democracia não pararam – como bem sabemos hoje, no Brasil e no mundo. E então, a distinção crucial de Florestan parece fazer até mais sentido para nós, do que no contexto de transição democrática. A autocracia saiu da sombra.

São gestos definitivos que, pode-se dizer, Florestan vinha perseguindo em toda a sua obra. Por exemplo, e para lembra apenas de um de outros dos seus livros incontornáveis, A Integração do Negro na Sociedade de Classes, de 1964, que escreveu como tese para o concurso da Cátedra de Sociologia I da Universidade de São Paulo, da qual foi titular entre 1964 e 1969. Nesse livro notável, Florestan consolida uma agenda de pesquisas sobre mudanças sociais e a reprodução de desigualdades sociais enraizadas na sociedade brasileira a partir de várias questões: do preconceito racial operante nas relações sociais que desmistificava o mito da “democracia racial”. A partir da formação de uma sociedade competitiva de classes por dentro dos escombros daquela precedente, ordenada em estamentos fechados (senhores e escravos), sem mobilidade ou com mobilidade limitada, formalmente vigente até a Abolição. E ainda a partir dos alcances e limites dos princípios liberais meritocráticos adotados na República.

A Revolução Burguesa no Brasil representa, porém, um momento culminante nesse percurso intelectual e de pesquisa. Mais do que isso, talvez. Constitui também uma espécie de acerto de contas sociológico com a sociedade brasileira e sua história infeliz do ponto de vista das desigualdades sociais e da democracia. Primeiro, do ponto de vista pessoal, pois antecede uma última reorientação da sua trajetória, quando Florestan entra na vida político-partidária, elegendo-se deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores em 1986 e 1990, quando integrou os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte. Segundo, do ponto de vista sociológico, pois, quando comparada aos seus trabalhos anteriores que, no entanto a propiciaram, o livro de 1975 realiza importantes avanços teóricos. Abandonam-se os casos clássicos de análise da sociedade burguesa, eurocêntricos eles todos, naturalmente; como também os casos “atípicos”, o japonês e o alemão, por exemplo, de que tanto se ocuparam alguns dos melhores sociólogos seus contemporâneos estadunidenses ou lá estabelecidos, como Barrington Moore Jr. ou Reinhard Bendix, que forjaram a sociologia histórico-comparada. Florestan se dedica ao “nosso” caso enquanto, argumenta, “uma realidade histórica peculiar nas nações capitalistas dependentes e subdesenvolvidas, sem recorrer-se a substancialização e à mistificação da história”.

Não há paroquialismo sociológico em A Revolução Burguesa no Brasil, como se numa suposta tradição intelectual brasileira autóctone ou, pior ainda, num nacionalismo ufanista – de esquerda ou de direita – fosse possível encontrar um fio da meada para nossos desacertos. Pelo contrário, a recusa aos casos estabelecidos na sociologia na modernização ou na sua reação representada pela sociologia histórico-comparada não é localista, mas antes cosmopolita. A interpretação de uma sociedade dependente exige do sociólogo que ele saiba manusear com maestria as categorias europeias até praticamente o seu esgotamento teórico e ideológico. De alguma forma, concepção política, método sociológico e de escrita se imbricam aqui, exigindo do sociólogo e dos leitores e leitoras que acompanhem na trama da análise o conflito entre não apenas o tema (tipo Brasil Vs. Europa), mas entre abordagens, entre categorias- novas, velhas, recriadas. Em suma, tratando-se de interpretação “de uma sociedade dependente, o sociólogo teria de usar necessariamente certas categorias de pensamento que naturalmente mostrassem a ligação, a dependência, mas que ao mesmo tempo dessem conta de todas as forças, digamos, progressistas, que tentavam neutralizar esta dependência”.

É esta uma das sugestões mais originais feitas por Silviano Santiago, que se inclui entre os ótimos leitores de primeira hora de A Revolução Burguesa no Brasil. Pouco lembrado pela fortuna crítica do livro, Silviano escreveu uma das primeiras resenhas sobre ele, ainda em 1977, e, note-se, a pedido do próprio Florestan. Os autores se conheceram pessoalmente nos anos 1970 em Nova York apresentados por Abdias do Nascimento, quando o resenhista, fazendo carreira no exterior, era então Associate Professor no Departamento de Francês da State University of New York at Buffalo; e o autor do livro resenhado, iniciava sua estadia como visitante na Universidade de Toronto, no Canadá, parte de seu périplo cosmopolita no exterior impingido pela sua aposetadoria compulsória em 1969.

Em sua resenha, Santiago acentua de saída o aspecto teórico original de A Revolução Burguesa no Brasil para o qual estamos chamando a atenção. Para ele, Florestan Fernandes deu-se conta de que o aparato teórico do livro “não podia vir-de-fora sem se tomar as devidas preocupações epistemológicas (heurísticas, como quer ele) no processo de adaptação das categorias de análise às nossas expectativas e à nossa realidade”. Argumenta que o sistema conceitual que Florestan arma para apreender a “realidade brasileira” – que surge no século XIX em decorrência da Independência – o permite surpreender a especificidade, tanto nos seus elementos “estruturais quanto dinâmicos”, de uma burguesia nascida de uma economia capitalista, dependente e subdesenvolvida. Daí, a necessidade de rever o modelo teórico importado, para dar conta do duplo movimento que estrutura teoricamente o livro, nomeado por Silviano pelo par de oposições dependência/independência. Florestan Fernandes, o resenhista argumenta, vai trabalhar com “as categorias estruturais e semânticas de repetição e diferença. No processo de repetição, existe por um lado uma atitude de absorção e de cópia, e que redunda do ponto de vista semântico, em silêncio significativo para o sociólogo. No processo de diferença, existe transgressão a valores estabelecidos e imperialistas, e do ponto de vista semântico, significação”.

Não vamos discutir nesta oportunidade as afinidades eletivas de certa forma percebidas e trabalhadas por Santiago entre o livro resenhado e seu próprio programa crítico da cultura então em construção. Mas cabe assinalar que vale sim a pena levá-las a sério. A começar pela tarefa teórica comum de rever e enfrentar modos específicos de ler a diferença no interior de práticas discursivas, materiais e institucionais que ajudaram a modular algumas das mais persistentes linhas de interpretação sobre o Brasil e seus dilemas. A Revolução Burguesa no Brasil ultrapassa simultaneamente tanto uma valorização afirmativa e algo ufanista da “originalidade da diferença”, quanto uma “sociologia da falta”, voltada ao inventário dos pressupostos históricos que emperrariam nosso desenvolvimento, em chave eurocêntrica.  A Revolução Burguesa no Brasil – nos ensina o livro ao seu modo – é também uma desconstrução em chave cosmopolita da própria ideia de origem (tão assentada no paradigma da “formação”) pela afirmação da diferença como reescritura, suplemento e repetição deslocada no espaço e no tempo.

Começamos esse prefácio localizando o caráter cosmopolita do livro, mostrando ainda como ele amadureceu bem no atual contexto de desdemocratização social e política não só na periferia, mas no próprio centro dinâmico do capitalismo. Lembremos que Ulrich Beck, ainda na virada do milênio, já discutia pioneiramente uma espécie de “brasilianização” do mundo (expressão sua), posto que o agravamento das desigualdades estruturais redesenharia também as sociedades afluentes e “desenvolvidas” do Atlântico Norte. Seria a “autocracia burguesa”, discutida por Florestan explorando o caso brasileiro como heurístico, uma propriedade agora “universal” do capitalismo contemporâneo? Diluiríamos finalmente nossas diferenças em relação às sociedades de capitalismo central, não pela “redenção” da sociedade brasileira, mas graças a uma regressão aparentemente inédita no plano dos direitos e das garantias sociais mínimas em todas as latitudes?

Voltando à provocação de Silviano Santiago ao resenhar o livro, parece certo que Florestan não deixaria de perseguir, neste contexto de explicitação do caráter autocrático da dominação burguesa em várias partes do mundo, as diferenças de seu desdobramento no Brasil e na periferia do capitalismo. Até porque, uma vez que o capitalismo é um padrão civilizatório que se realiza diferencialmente nos seus vários contextos temporais e espaciais, observá-lo desde as margens implica perceber com mais clareza os fenômenos que desafiam a imaginação sociológica no presente. O Brasil dos dias que correm não deixa de apresentar simultaneamente antigos e novos aspectos desse capitalismo que (finalmente) parece dizer a que veio.

Naturalmente, estamos cientes de que não bastam inventividade, dedicação contínua e rigor científico para definir a recepção do trabalho sociológico acadêmico. Muitos outros fatores sociais e históricos entram aí, constrangendo voluntarismos que, de todo modo, se repetem a cada geração intelectual entre nós. Também nessa esfera da vida social e na do conhecimento, em geral, prevalecem hierarquias e relações desiguais do ponto de vista geopolítico. Um bom exemplo continua sendo o do próprio Florestan Fernandes e de seu pioneirismo na definição de uma tríade de autores clássicos para a sociologia (Marx, Durkheim, Weber). Em Fundamentos empíricos da explicação sociológica, publicado em 1953, Florestan já refutava a exclusão de Karl Marx desse lugar proposta pelo mais influente sociólogo da segunda metade do século XX, o norte-americano Talcott Parsons que, em A estrutura da ação social, publicado em 1937, considerou que apenas a geração de 1890-1920 teria rompido com as formas mais especulativas de interpretação social. Publicada em português e, portanto, pouco lida pelo mundo sociológico, a crítica de Florestan, como era de se esperar, teve pouca repercussão internacional. Então, duas décadas depois, o sociólogo britânico Anthony Giddens pode arrogar para si aquele pioneirismo, sem grandes contestações.

E a chamada mundialização da cultura não parece estar, de fato, gerando exatamente relações multicêntricas ou mais equitativas, apesar da intensificação de trocas de todos os tipos garantidas inclusive pelo desenvolvimento tecnológico. O que cabe então á sociologia produzida na periferia? Ora, a nosso ver, considerar o cosmopolitismo de A Revolução Burguesa no Brasil, e da cultura brasileira, não implica necessariamente o gesto algo bovarista associado à valorização daquilo que se costumava chamar de “vantagens do atraso”, de um lado; mas, tampouco, sua contraparte, como se praticar a sociologia na periferia constituísse necessariamente mera “comédia ideológica”. Entre um e outro, há espaço para um campo problemático histórica e teoricamente densos, cuja primeira tarefa é justamente, como também nos ensina Florestan, rever esses modos hegemônicos de ler a diferença na e a partir da sociedade brasileira. Cosmopolitismo sociológico, talvez, seja, então, antes de tudo, um tipo de relação descentrada de convivência com o universal a partir da diferença local – que no caso da sociologia e, especialmente, na de Florestan, nunca é demais acentuar, sempre implica na consideração das desigualdades -, que envolve movimentos e aberturas em várias direções. No lugar da reificação da decantada “sociologia da falta”, a pergunta consequente pela “diferença como repetição”. E A Revolução Burguesa no Brasil volta a ser, assim, um bom ponto de partida para velhos e novos embates. Alguns deles urgentes.

Notas:

[i] Professor do Departamento de Sociologia da UFRJ, pesquisador do CNPq e da FAPERJ. Publicou, entre outros, O retorno da sociedade. Política e interpretações do Brasil (2019).

[ii] Professor do Departamento de Sociologia da UFRJ, Jovem Cientista do Nosso Estado (FAPERJ). É autor de Passagens para a teoria sociológica: Florestan Fernandes e Gino Germani (2013).

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