Como os EUA Explodiram o Gasoduto Nord Stream, segundo Seymour Hersh

O The New York Times chamou isto de “um mistério”, mas os EUA executaram uma operação marítima clandestina que foi mantida em segredo — até agora

(Foto: Divulgação)


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Artigo de Seymour Hersh originalmente publicado no site do autor em 08.02.23. Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247

gasoduto

O Centro de Mergulho e Salvamento da Marinha dos EUA pode ser encontrado em locais tão obscuros quanto o seu nome — naquilo que foi uma vez uma estrada rural na Cidade do Panamá, que agora é uma pujante cidade turística no sudoeste da Flórida, a 70 milhas (112,65 km) ao sul da fronteira com o Alabama. O complexo do centro é tão indefinível quanto a sua locação — uma estrutura monótona de concreto de pós-Segunda Guerra Mundial, com a aparência de uma escola média vocacional no lado oeste de Chicago. Uma lavanderia operada com moedas e uma escola de dança ficam agora do outro lado da estrada de quatro pistas.

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O centro tem treinado durante décadas mergulhadores altamente habilitados de águas profunda, que eram antigamente alocados em unidades militares estadunidenses em todo o mundo e que são capazes de fazer mergulhos técnicos para fazer o bem — usando explosivos C4 para limpar portos e praias de destroços e munições não explodidas — e também o mal, como explodir plataformas de petróleo estrangeiras, limpar válvulas de entrada para usinas de eletricidade submarinas, destruir comportas em canais cruciais de navegação. O centro de Panama City, que se gaba de ter a segunda maior piscina coberta nos EUA, foi o lugar perfeito para recrutar os melhores e mais taciturnos graduados da escola de mergulho que conseguiram sucesso no verão passado para fazer o que eles foram autorizados a fazer a quase 80 metros de profundidade abaixo da superfície do Mar Báltico.

Em junho de 2022, os mergulhadores da Marinha dos EUA, operando com a cobertura de um exercício amplamente publicizado da OTAN conhecido como BALTOPS 22, implantaram os explosivos para detonação remota que, três meses depois, destruíram três dos quatro gasodutos do Nord Stream, segundo uma fonte com conhecimento direto do planejamento operacional.

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Dois dos gasodutos, conhecidos coletivamente como Nord Stream 1, proveram a Alemanha e uma boa parte da Europa Ocidental com gás natural russo barato por mais de uma década. Um segundo par de gasodutos, chamados de Nord Stream 2, foram construídos, porém ainda não estavam em operação. Agora, com tropas russas concentradas na fronteira ucraniana e com a iminente guerra mais sangrenta na Europa desde 1945, o presidente Joseph Biden viu os gasodutos como um veículo para Vladimir Putin usar o gás natural como armas para as suas ambições políticas e territoriais.

Quando solicitado a comentar, uma porta-voz da Casa Branca, Adrienne Watson, disse num e-mail: “Isto é falso e é uma ficção completa”. Com conteúdo similar, Tammy Thorp, uma porta-voz da CIA, escreveu: “Esta alegação é completa e totalmente falsa”.

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A decisão de Biden de sabotar os gasodutos veio depois de mais de nove meses de debates altamente secretos para lá e para cá na comunidade nacional de segurança em Washington sobre a melhor maneira de alcançar aquela meta. Durante muito daquele tempo, a questão não era se eles deveriam cumprir a missão, mas como fazê-lo sem quaisquer vestígios de quem seria responsável por ela.

Havia uma razão burocrática vital para confiar nos graduados do centro de mergulho de Panama City. Todos os mergulhadores eram da Marinha e não eram membros do Comando de Operações Especiais dos EUA — cujas operações clandestinas devem ser reportadas ao Congresso e informadas de antemão à liderança do Senado e da Câmara de Representantes dos EUA — a chamada Gangue dos Oito. O governo Biden estava fazendo todo o possível para evitar vazamentos enquanto o planejamento ocorreu ao final de 2021 e nos primeiros meses de 2022.

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O presidente Biden e a sua equipe de política externa — o Conselheiro de Segurança Nacional ,Jake Sullivan, o secretário de Estado, Tony Blinken, e Victoria Nuland, a subsecretária de Estado para a Política, — têm sido vocais e consistentes na sua hostilidade aos dois gasodutos — os quais se estendem lado a lado por mais de 1.200 quilômetros sob o Mar Báltico a partir de dois portos diferentes no nordeste da Rússia, perto da fronteira com a Estônia, passando próximos à ilha dinamarquesa de Bornholm antes de terminar no norte da Alemanha.

A rota direta, que evita qualquer necessidade de transitar pela Ucrânia, tem sido um benefício para a economia alemã, a qual desfruta de uma abundância de gás natural russo barato – o suficiente para operar as suas fábricas e aquecer as suas casas, enquanto permite aos distribuidores alemães de venderem o excesso de gás, com lucro, em toda a Europa Ocidental. Uma ação que pudesse ser rastreada ao governo estadunidense violaria as promessas dos EUA de minimizar o conflito direto com a Rússia. O segredo era essencial.

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Desde os seus primeiros dias, o gasoduto Nord Stream 1 era visto por Washington e seus parceiros anti-russos na OTAN como uma ameaça à dominação ocidental. A companhia holding por trás dele, a Nord Stream AG, foi incorporada na Suíça em 2005, em sociedade com a Gazprom, uma empresa russa negociada publicamente e produzindo enormes lucros para os acionistas, que é dominada por oligarcas conhecidos como fazendo parte dos servos de Putin. A Gazprom controlava 51% da companhia, com quatro empresas europeias de energia – uma na França, uma na Holanda e duas na Alemanha – compartilhando os 49% restantes das ações e tendo o direito de controlar as vendas as vendas à jusante do gás natural barato para distribuidores locais na Alemanha e na Europa Ocidental. Os lucros da Gazprom eram compartilhados com o governo russo, e as receitas de gás e petróleo estatais foram estimadas durante alguns anos a totalizar quase 45% do orçamento anual da Rússia.

Os temores políticos dos EUA eram reais: agora, Putin teria que ter uma fonte adicional e muito necessária de renda, e a Alemanha e o resto da Europa Ocidental se tornariam viciadas ao gás natural barato fornecido pela Rússia – enquanto diminuía a dependência europeia dos EUA. Na verdade, é exatamente isso que ocorreu. Muitos alemães viam o Nord Stream1 como parte dos benefícios da famosa Ostpolitik do ex-Chanceler Willy Brandt, que possibilitariam à Alemanha pós-guerra a reabilitar à si mesma e às outras nações europeias destruídas na Segunda Guerra Mundial, dentre outas inciativas, a utilizar o gás russo barato para alimentar um mercado e uma economia e comércio prósperos na Europa Ocidental.

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Segundo a visão da OTAN e de Washington, o Nord Stream 1 era suficientemente perigoso, mas o Nord Stream 2, cuja construção foi completada em setembro de 2021, se aprovado pelos reguladores alemães, duplicaria a quantidade de gás barato que estaria disponível para a Alemanha e a Europa Ocidental. O segundo gasoduto também proveria gás suficiente para mais de 50% do consumo anual da Alemanha. As tensões se escalavam constantemente entre a Rússia e a OTAN, apoiadas pela política externa agressiva do governo Biden. 

A oposição ao Nord Stream 2 explodiu às vésperas da inauguração do governo Biden, em janeiro de 2021, quando os Republicanos no Senado [dos EUA], liderados por Ted Cruz do Texas, levantavam repetidamente a ameaça política do gás natural russo barato durante as audiências de confirmação de Blinken como Secretário de Estado. Naquele ponto, um senado unificado havia aprovado uma lei que, como Cruz disse a Blinken, “fazia parar [o gasoduto] nos seus trilhos”. Haveria uma enorme pressão política e econômica do governo alemão – então encabeçado por Angela Merkel – para colocar o segundo gasoduto em operação.

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Será que Blinken defenderia os alemães? Blinken disse que sim, porém adicionou que não havia discutido os pontos específicos da visão do presidente entrante. “Eu sei da sua forte convicção de que esta é uma má ideia, o Nord Stream 2”, disse ele. “Eu sei que ele faria com que nós usássemos todas as ferramentas persuasivas para convencer os nossos amigos e parceiros, incluindo a Alemanha, de não ir adiante com isto”.

Alguns meses depois, quando a construção do segundo gasoduto estava quase completa, Biden piscou [uma fina ironia linguística de Hersh com o nome do secretário de estado Blinken – “to blink”, que significa “piscar” em inglês]. Em maio de 2021, numa assombrosa girada de 180 graus, o governo [dos EUA] dispensou as sanções contra a Nord Stream AG, com uma autoridade do Departamento de Estado admitindo que tentar parar o gasoduto através de sanções e diplomacia “sempre foi um movimento exagerado”. Nos bastidores, reporta-se que as autoridades governamentais instaram o presidente ucraniano Volodymir Zelensky – quem, naquele ponto, enfrentava a ameaça de uma invasão russa, a não criticar esta jogada. 

Houve consequências imediatas. Os Republicanos no Senado, liderados por Cruz, anunciaram um bloqueio imediato de todas as nomeações de política externa de Biden e atrasaram a aprovação do orçamento anual de defesa por meses, entrando a fundo no outono. Mais tarde, a publicação Politico retratou a virada de 180 graus de Biden sobre o segundo gasoduto russo como “aquela decisão singular que, indiscutivelmente mais do que a caótica retirada militar do Afeganistão, colocou em perigo a pauta de Biden”.

O governo [dos EUA] estava afundando, apesar de ter recebido uma moratória da crise em meados de novembro, quando os reguladores da energia na Alemanha suspenderam a aprovação segundo gasoduto Nord Stream. Os preços do gás natural subiram 8% em alguns dias, em meio a crescentes temores na Alemanha e na Europa de que a suspensão do gasoduto e a crescente possibilidade de uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia conduziria a um muito indesejado inverno frio. Não estava claro para Washington exatamente como se posicionaria Olaf Scholtz, o recém nomeado chanceler da Alemanha. Alguns meses antes, após a queda do Afeganistão, Scholtz havia endorsado publicamente a conclamação do presidente francês Emmanuel Macron por uma política externa europeia mais autônoma, num discurso em Praga – claramente sugerindo uma menor dependência de Washington a as suas ações mercuriais [repentinas, impulsivas].

Durante todo este período, as tropas russas estavam se acumulando crescentemente e ameaçadoramente nas fronteiras com a Ucrânia; ao final de dezembro, havia mais de 100.000 soldados em posição para atacar à partir da Bielorrússia e da Crimeia. O alarme estava crescendo em Washington, incluindo uma avaliação de Blinken de que esta quantidade de tropas poder ser “duplicada rapidamente”.

A atenção do governo [dos EUA] foi novamente focada no Nord Stream. Enquanto a Europa permanecesse dependente dos gasodutos para obter gás natural barato, Washington temia que países como a Alemanha estariam relutantes em fornecer à Ucrânia o dinheiro e as armas que esta precisaria para derrotar a Rússia.

Foi naquele momento de instabilidade que Biden autorizou Jake Sullivan a reunir um grupo interagências para estruturar um plano.

Todas as opções deveriam estar sobre a mesa. Porém somente uma emergiria. 

Planejamento

Em dezembro de 2021, dois meses antes que os primeiros tanques russos entrassem na Ucrânia, Jake Sullivan convocou uma reunião da recém-formada força-tarefa – homens e mulheres dos Chefes de Estado Maior, a CIA e os departamentos de Estado e do Tesouro – e pediu recomendações sobre como responder à iminente invasão de Putin.

Esta seria a primeira de uma série de reuniões ultrassecretas, realizadas numa sala de segurança no último andar do Antigo Edifício de Escritórios Executivos, adjacente à Casa Branca, que também era a moradia do Conselho Consultivo de Inteligência Exterior do Presidente (PFIAB – President’s Foreign Intelligence Advisory Board). Houve a usual tagarelice para lá e para cá que conduziu, em última análise, a uma pergunta preliminar crucial: Será que a recomendação enviada pelo grupo ao presidente seria reversível – como uma outra camada de sanções e restrições monetárias – ou irreversíveis – isto é, ações cinéticas que não pudessem ser desfeitas?

O que ficou claro para os participantes, segundo a fonte com conhecimento direto do processo, é que Sullivan tinha a intenção de que o grupo elaborasse um plano para a destruição dos dois gasodutos Nord Stream – e que ele estava agindo de acordo com os desejos do presidente.

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OS ATORES – da direita para a esquerda: Victoria Nuland, Anthony Blinken e Jake Sullivan.(Photo: Reprodução)

Nas diversas reuniões seguintes, os participantes debateram sobre opções para um ataque. A Marinha propôs usar um submarino recém comissionado para assaltar diretamente o gasoduto. A Força Aérea discutiu sobre jogar bombas com detonadores atrasáveis que poderiam ser acionados remotamente. A CIA argumentou que, fosse o que fosse que seria feito, teria que ser clandestino. Todos os envolvidos entenderam o que estava em jogo. “Isto não é uma brincadeira de crianças”, disse a fonte. Se o ataque fosse rastreável aos EUA, “Isto seria um ato de guerra”.

Naquela época, a CIA era dirigida por William Burns, um bem-educado ex-embaixador na Rússia que havia servido como vice-secretário de estado no governo Obama. Burns rapidamente autorizou a formação de um grupo de trabalho da CIA cujos membros ad hoc incluíam – por acaso – pessoas que tinham familiaridade com as habilidades dos mergulhadores de águas profundas da Marinha em Panama City. Nas poucas semanas seguintes, os membros do grupo de trabalho da CIA começaram a elaborar um plano para uma operação clandestina que usaria mergulhadores de águas profundas para detonar uma explosão ao longo do gasoduto.

Algo similar havia sido feito antes. Em 1971, a comunidade de inteligência estadunidense soube, de fontes ainda não reveladas, que duas importantes unidades da Marinha Russa estavam se comunicando através de um cabo submarino enterrado no Mar de Okhotsk, na costa do extremo oriental da Rússia. O cabo conectava um comando regional da marinha ao quartel-general em Vladivostok, no continente.

Uma equipe de operativos escolhidos a dedo na CIA e na NSA (National Security Agency / Agência Nacional de Segurança) foi reunida em algum lugar na área de Washington, em profunda clandestinidade, e trabalhou num plano que usaria mergulhadores da Marinha, submarinos modificados e um veículo de resgate submarino profundo – o qual teve sucesso, após muitos acertos e erros, em localizar o cabo russo. Os mergulhadores implantaram um sofisticado aparelho de escuta no cabo, o qual interceptou com sucesso o tráfico russo e o registrou num sistema de gravação.

A NSA descobriu que altos oficiais da marinha russa, convencidos da segurança da sua conexão de comunicação, tagarelaram com os seus pares sem usar criptografia. O aparato de gravação e a sua fita tinham que ser substituídos uma vez por mês e o projeto foi adiante alegremente durante uma década, até foi comprometido por um técnico civil da NSA de quarenta e quatro anos de idade chamado Ronald Pelton, que era fluente em russo. Pelton foi traído por um desertor russo em 1985 e sentenciado à prisão. Ele foi pago só US$ 5.000 pelos russos pelas suas revelações sobre a operação, juntamente com US$ 35.000 por outros dados operacionais russos providos por ele e jamais tornados públicos.

Aquele sucesso submarino, cujo codinome era ‘Ivy Bells’, foi inovativo e arriscado e produziu uma inteligência inestimável sobre as intenções e o planejamento da Marinha Russa.

Mesmo assim, o grupo interagências ficou cético inicialmente sobre o entusiasmo da CIA por um ataque clandestino em águas profundas. Havia demasiadas perguntas sem resposta. As águas do Mar Báltico eram intensivamente patrulhadas pela Marinha Russa e não havia plataformas de petróleo que pudessem ser usadas como abrigos para uma operação de mergulho. Será que os mergulhadores teriam que ir à Estônia, diretamente do outro lado da fronteira das docas de carregamento do gás natural russo, a fim de treinarem-se para a missão “Seria uma “goat fuck” [um desastre/caos em gíria militar estadunidense].

“Em toda esta elaboração de esquemas”, disse a fonte, “alguns trabalhadores da CIA e do Departamento de Estado estavam dizendo ‘Não façam isso. Isso é estúpido e será um pesadelo político se for descoberto’”.

Não obstante, no início de 2022, o grupo de trabalho da CIA reportou de retorno ao grupo interagências de Sullivan: “Nós temos uma maneira para explodir os gasodutos”.

O que veio à seguir foi assombroso. Em 7 de fevereiro de 2022, menos de três meses antes da aparentemente inevitável invasão russa na Ucrânia, Biden se encontrou no seu escritório na Casa Branca com o chanceler alemão Olaf Scholz – quem, após um pouco de hesitação, então entrou firmemente na equipe estadunidense. Na conferência de imprensa que se seguiu, Biden disse, desafiadoramente: “Se a Rússia invadir ... não haverá mais um Nord Stream 2. Nós acabaremos com ele.”

Vinte dias antes, a subsecretária Nuland proferiu essencialmente a mesma mensagem num briefing do Departamento de Estado que teve pouca cobertura da imprensa. “Eu quero ser muito clara com vocês hoje” ela disse em resposta a uma pergunta. “Se a Rússia invadir a Ucrânia, de uma maneira ou de outra o Nord Stream 2 não irá adiante”.

Muitos daqueles envolvidos no planejamento da missão do gasoduto ficaram consternados pelo que viram como referências indiretas ao ataque.

“Foi como colocar uma bomba atômica no chão em Tokio e dizer aos japoneses que nós iríamos detoná-la”, disse a fonte. “O plano era que as opções seriam executadas após a invasão e não seriam anunciadas publicamente. Biden simplesmente não o entendeu, ou o ignorou”. 

As indiscrições de Biden e Nuland, se é que foram isto, podem ter frustrado alguns dos planejadores. Mas isto também criou uma oportunidade. Segundo a fonte, alguns dos funcionários seniores da CIA determinaram que explodir o gasoduto “não poderia mais ser uma opção clandestina, porque o presidente já anunciou que nós sabemos como fazê-lo”.

O plano de explodir o Nord 1 e 2 foi rebaixado de repente de ser uma operação clandestina que requer que o Congresso seja informado para uma operação considerada como uma operação de inteligência altamente classificada com o apoio militar dos EUA. Segundo a lei, a fonte explicou, “Não havia mais uma exigência legal de reportar a operação ao Congresso. Tudo que eles tinham que fazer, então, era só fazê-lo – porém ainda tinha que ser secreto. Os russos têm uma vigilância superlativa no Mar Báltico”.

Os membros do grupo de trabalho da CIA não tinham contato direto com a Casa Branca, e eles estavam ansiosos para descobrir se o presidente quis dizer o que ele disse – isto é, se agora a missão iria adiante. A fonte se lembrou, “Bill Burns volta e diz, ‘Façam isso’”. 

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“A Marinha Norueguesa foi rápida em descobrir o lugar certo, nas águas rasas a alguns quilômetros da costa da Ilha Bornholm, na Dinamarca...”(Photo: Reprodução)

A operação

A Noruega era o lugar perfeito para ser a base da missão.

Nos últimos anos da crise Oriente-Ocidente, as forças militares dos EUA expandiram vastamente a sua presença dentro da Noruega, cuja fronteira ocidental se estende por mais de 2.000 quilômetros ao longo do norte do Oceano Atlântico e se merge com a Rússia acima do Círculo Ártico. O Pentágono criou empregos com salários e contratos de altos valores, dentre algumas controvérsias locais, ao investir milhões de dólares para atualizar e expandir as instalações da Marina e da Força Aérea dos EUA na Noruega. As novas obras incluíram, mais importantemente, um radar de avançada abertura sintética muito longe, ao norte, que era capaz de penetrar profundamente na Rússia e começou a funcionar exatamente quando a comunidade de inteligência estadunidense perdeu o acesso a uma série de postos de escuta de longo alcance dentro da China.

Uma base de submarinos dos EUA que havia sido reformada recentemente, que estava em construção durante anos, se tornou operacional e agora mais submarinos estadunidenses podem trabalhar próximos aos seus colegas noruegueses para monitorar e espionar um importante reduto nuclear russo a mais de 400 quilômetros à leste, na península de Kola. Os EUA também expandiram enormemente uma base aérea norueguesa no norte e entregou à força aérea norueguesa uma esquadra de aviões de patrulha P8 Poseidon fabricados pela empresa Boeing, para reforçar a sua espionagem de longo alcance sobre todas as coisa na Rússia.

Em troca disso, em novembro passado o governo norueguês enraiveceu os liberais e alguns moderados no seu parlamento ao aprovar o ‘Supplementary Defense Cooperation Agreement’ (SDCA – Acordo Suplementar de Cooperação de Defesa). Segundo o novo acordo, o sistema jurídico dos EUA teria jurisdição sobre certas “áreas acordadas” do Norte sobre soldados estadunidenses acusados de crimes cometidos fora da base, bem como sobre os cidadãos noruegueses acusados ou suspeitos de interferir com o trabalho da base.

A Noruega foi um dos signatários originais do Tratado da OTAN em 1949, nos dias iniciais da Guerra Fria. Atualmente, o comandante-supremo da OTAN é Jens Stoltenberg, um anticomunista comprometido que serviu como primeiro-ministro da Noruega durante oito anos antes de assumir o seu alto posto na OTAN, com apoio estadunidense, em2014. Ele era um conservador de linha dura sobre todas coisas que tenham a ver com Putin e a Rússia e cooperou com a comunidade de inteligência estadunidense desde a Guerra do Vietname. Ele tem sido considerado como confiável desde então. “Ele é a luva que serve na mão estadunidense”, disse a fonte.

De volta a Washington, os planejadores sabiam que eles tinham que ir à Noruega. “Eles odiavam os russos e a marinha norueguesa estava cheia de ótimos marinheiros e mergulhadores que tinham gerações de experiência em explorações altamente lucrativas de petróleo e gás em grandes profundidades”, disse a fonte. Eles também podiam ser confiados para manter secreta a missão. (Os noruegueses também poderiam ter outros interesses. A destruição do Nord Stream – se os estadunidenses pudessem fazê-lo – permitiria à Noruega vender muito mais do seu próprio gás natural para a Europa.)

Em algum momento de março de 2022, alguns membros da equipe voaram para a Noruega para encontrarem-se com o Serviço Secreto e a Marinha da Noruega. Uma das questões-chave era onde exatamente no Mar Báltico era o melhor lugar para colocar os explosivos. O Nord Stream 1 e 2, cada um tendo dois conjuntos de gasodutos, estavam separados em boa parte do caminho por pouco mais de 1.600 metros no seu caminho até o porto de Greifswald, no extremo noroeste da Alemanha.

A marinha norueguesa foi rápida em encontrar o lugar adequado, nas águas rasas do Mar Báltico, a alguns minutos da ilha Bornholm, na costa da Dinamarca. Os gasodutos correm mais de 1.600 metros um do outro ao longo do fundo do mar, que está a menos de 80 metros de profundidade. Isto estaria bem dentro do alcance dos mergulhadores que, operando a partir de um caça-minas norueguês da classe Alta, mergulhariam com uma mistura de oxigênio, nitrogênio e hélio fluindo dos seus tanques, para plantar cargas moldadas de C4 nos quatro gasodutos com coberturas protetivas de concreto. Isto seria um trabalho tedioso, consumiria tempo e seria perigoso, mas as águas ao largo da ilha de Bornholm tinham uma outra vantagem: não havia grandes correntes de maré, o que teria tornado a tarefa de mergulho muito mais difícil.

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Após um pouco de pesquisa, os estadunidenses estavam todos envolvidos.

Naquele ponto, o obscuro grupo de mergulhos profundos da Marinha [dos EUA] em Panama City entraram em ação. As escolas de mergulhos profundos de Panama City, cujos estagiários participaram na operação Ivy Bells, são vistas como um remanso indesejado pela elite de graduados da Academia Naval de Annapolis – os quais tipicamente almejam a glória de serem designados como ‘Seals” [tropas especiais], pilotos de caça ou tripulantes de submarinos. Se alguém devesse tornar-se um “Black Shoe” [literalmente, ‘Sapato Negro’] – isto é, um membro do menos desejável comando de navios de superfície – pelo menos sempre há o serviço num contratorpedeiro, num cruzador ou num navio anfíbio. O menos glamoroso de todos é o caça-minas. Os seus mergulhadores jamais aparecem nos filmes de Hollywood ou nas capas das revistas populares.

“Os melhores mergulhadores com qualificação para mergulhos profundos são uma comunidade fechada e somente os melhores são recrutados para a operação, e lhes é dito para estarem preparados para serem convocados à CIA em Washington”, disse a fonte.

Os noruegueses e os estadunidenses tinham um local e os operadores, porém havia uma outra preocupação: qualquer atividade submarina incomum nas águas de Bornholm poderia chamar a atenção das marinhas da Suécia e da Dinamarca – que poderiam reporta-la.

A Dinamarca também foi um dos signatários originais da OTAN e era conhecida na comunidade de inteligência pelos seus laços especiais com o Reino Unido. A Suécia pediu para ser membro da OTAN e demonstrou a sua grande habilidade para gerenciar os seus sistemas de sensores submarinos de som e magnéticos que rastrearam com sucesso os submarinos russos que apareciam ocasionalmente em águas remotas do arquipélago sueco e eram foçados a subirem para a superfície.

Os noruegueses se juntaram aos estadunidenses na insistência de que alguns oficiais seniores na Dinamarca e na Suécia tinham que ser informados em termos gerais sobre a possível atividade de mergulho na área. Desta maneira, alguns oficiais mais altos na hierarquia poderiam intervir e manter um relatório fora da cadeia de comando – insulando, assim, a operação do gasoduto. “O que foi dito a eles e o que eles sabiam era diferente, de propósito”, a fonte me disse. (A embaixada norueguesa [nos EUA], solicitada a comentar sobre esta estória, não respondeu.)

Os noruegueses eram fatores-chave para resolver outros obstáculos. Era sabido que a marinha russa possui tecnologias de vigilância capazes de detectar e detonar minas submarinas. Os aparatos explosivos estadunidenses precisavam ser camuflados de maneira que os faria parecer ao sistema russo como parte do pano de fundo natural – algo que necessitava ser adaptado à salinidade específica da água. Os noruegueses tinham uma maneira e corrigi-lo.

Os noruegueses também tinham uma solução para a questão crucial de quando a operação deveria ocorrer. Nos últimos 21 anos, em todos os meses de junho, a Sexta Esquadra dos EUA, cujo navio chefe tem base em Gaeta, Itália, ao sul de Roma, patrocinava um importante exercício da OTAN no Mar Báltico, envolvendo dezenas de navios aliados de toda a região. O exercício do ano passado, realizado em junho, seria conhecido como Operações Bálticas 22, ou BALTOPS 22. Os noruegueses propuseram que esta seria a melhor maneira de camuflar a implantação das minas.

Os estadunidenses proveram um elemento vital: eles convenceram os planejadores da Sexta Esquadra a adicionarem ao programa um exercício de pesquisa e desenvolvimento. O exercício, como foi tornado público pela Marinha [dos EUA], envolveu a Sexta Esquadra, em colaboração com os “centros de pesquisa de guerra” da Marinha. O evento embarcado seria realizado ao longo da costa da ilha de Bornholm e envolveria equipes de mergulho da OTAN para implantar minas, competindo com equipes que usariam a mais atualizada tecnologia para descobrir e destruí-las.

Isto foi tanto um exercício útil quanto uma camuflagem engenhosa. Os garotos de Panama City fariam as suas coisas e os explosivos C4 estariam colocados no seu lugar até o final do BALTOPS 22, com um cronômetro de 48 horas anexado à elas. Todos os estadunidenses e noruegueses estariam longe antes da primeira explosão.

A contagem regressiva continuava. “O relógio estava funcionando e nós estávamos chegando mais perto de cumprir a missão”, disse a fonte.

E, então: Washington reconsiderou o assunto. As bombas ainda seriam implantadas durante o BALTOPS, mas a Casa Branca de preocupava que uma janela de dois dias para a detonação das mesmas seria demasiado próxima ao final dos exercícios e que, assim, seria óbvio que os EUA estariam envolvidos.

Ao invés disso, a Casa Branca fez uma nova exigência: “Será que os homens no campo poderiam inventar alguma maneira para explodir os gasodutos mais tarde, sob comando?”

Alguns membros da equipe de planejamento ficaram com raiva e frustrados pela aparente indecisão do presidente. Os mergulhadores de Panama City haviam ensaiado repetidamente a implantação do C4 nos gasodutos – como eles fariam durante a BALTOPS -, porém, então, a equipe na Noruega teria que inventar uma maneira de dar a Biden o que ele queria – a capacidade de produzir uma ordem de execução de sucesso no tempo escolhido por ele.

Ser encarregada de tarefas com mudanças arbitrárias e de última hora era algo com o que a CIA estava acostumada a gerenciar. Mas isso também renovou as preocupações compartilhadas pela necessidade e legalidade da operação inteira.

As ordens secretas do presidente também evocaram o dilema da CIA nos dias da Guerra do Vietname, quando o presidente Johnson, confrontado com um crescente sentimento contra a Guerra do Vietname, ordenou que a CIA violasse a sua carta-régia – a qual a proíbe especificamente de fazer operações dentro dos EUA – e espionasse os líderes contrários à guerra, para determinar se eles estavam sendo controlados pela Rússia comunista.

Em última análise, a CIA aquiesceu e, durante os anos de 1970, ficou claro o quão longe eles estavam dispostos a ir. Houve revelações subsequentes de jornais na esteira dos escândalos de Watergate sobre a espionagem da agência contra cidadãos estadunidenses, o seu envolvimento nos assassinatos de líderes estrangeiros e a sua debilitação do governo socialista de Salvador Allende.

Estas revelações conduziram a uma dramática série de oitivas do Senado dos EUA em meados dos anos de 1970, lideradas por Frank Church, de Idaho, que tornaram claro que Richard Helms, o diretor da CIA naquela época, aceitou que ele tinha uma obrigação de fazer o que o presidente queria, mesmo se isto violasse a lei.

Num testemunho não-publicado e feito a portas fechadas, Helms explicou com pesar que “você tem quase uma Imaculada Concepção quando você faz alguma coisa” sob as ordens secretas de um presidente. “Estando certo ou errado que você deveria fazê-lo, a CIA trabalha sob regras básicas diferentes de qualquer outra parte do governo”. Essencialmente, ele estava contando aos senadores que ele, como chefe da CIA, compreendia que estava trabalhando para a Coroa e não para a Constituição.

Os estadunidenses que estavam trabalhando na Noruega operavam segundo a mesma dinâmica e obedientemente começaram a trabalhar no novo problema – como detonar remotamente os explosivos C4 conforme a ordem de Biden. Esta era uma atribuição muito mais exigente do que aqueles que estavam em Washigton entendiam. Não havia maneira alguma para a equipe na Noruega saber quando o presidente apertaria o botão. Seria em algumas semanas, ou em muitos meses, ou em meio ano, ou mais?

Os explosivos C4 apensos aos gasodutos seriam detonados por uma boia de sonar jogada de um avião com um aviso curto, mas o procedimento envolvia a tecnologia mais avançada de processamento de sinais. Uma vez colocada no lugar, os aparatos de cronometragem retardada aplicados a qualquer um dos quatro gasodutos poderia ser acidentalmente detonados por uma combinação complexa de ruídos de fundo do oceano em todo o densamente trafegado Mar Báltico – de navios próximos e distantes, perfurações submarinas, eventos sísmicos, ondas e até por criaturas marinhas. A fim de evitar isto, uma vez colocada no seu lugar, a boia emitiria uma sequência de sons tonais de baixa e singular frequência – muito parecidas com aqueles emitidos por uma flauta ou um piano – que seriam reconhecidos pelo dispositivo de cronometragem e, após a passagem de um número pré-programado de horas, este detonaria os explosivos. (“Você deve ter um sinal que é robusto o suficiente, de modo que nenhum outro sinal possa enviar acidentalmente uma pulsação que detone os explosivos”, conforme me contou o Dr. Theodore Postol, professor emérito de ciência, tecnologia e segurança nacional do MIT. Postol, que serviu como conselheiro científico do Chefe de operações Navais do Pentágono, disse que o problema enfrentado pelo grupo na Noruega devido ao atraso de Biden era uma questão de acaso: “Quanto mais os explosivos permanecem na água, maior é o risco que haja um sinal aleatório que detonaria as bombas”.)

Em 26 de setembro de 2022, um avião P8 de vigilância da marinha norueguesa fez um voo aparentemente de rotina e despejou uma boia de sonar. O sinal se espalhou debaixo da água, inicialmente para o Nord Stream 2 e depois para o Nord Stream 2. Algumas horas depois, os explosivos C4 de alto poder foram detonados e três dos quatro gasodutos foram inutilizados. Em poucos minutos, bolhas do metano que permaneceu nos gasodutos destruídos podiam ser vistas espalhando-se na superfície da água e o mundo ficou sabendo que algo irreversível havia ocorrido.

As consequências

Imediatamente após o bombardeio do gasoduto, as mídias estadunidenses trataram do tema como um mistério não-resolvido. A Rússia foi repetidamente citada como a provável culpada, estimulada por vazamentos calculados da Casa Branca – porém sem jamais estabelecer um motivo claro pra tal ato de autossabotagem, além de uma simples retribuição. Alguns meses depois, quando foi revelado que as autoridades russas estavam silenciosamente recebendo estimativas do custo para reparar os gasodutos, o The New York Times descreveu a notícia como “teorias complicadas sobre que estava por trás” do ataque. Nenhum dos maiores jornais estadunidenses se aprofundou nas ameaças iniciais contra os gasodutos, feitas por Biden e a subsecretária de estado Nuland.

Porquanto jamais ficou claro por que a Rússia procuraria destruir o seu próprio gasoduto lucrativo, um raciocínio mais revelador para a ação do presidente Biden veio do Secretário de Estado Blinken.

Perguntado numa conferência de imprensa em setembro passado sobre as consequência da crise energética que piora na Europa Ocidental, Blinken descreveu o momento como sendo potencialmente bom:

“Esta é uma tremenda oportunidade de remover de uma vez por todas a dependência da energia russa e, assim, de tirar de Vladimir Putin o armamento da energia como um meio de fazer avançar os seus planos imperiais. Isso é muito significativo e oferece uma tremenda oportunidade estratégica para os anos vindouros; porém, neste ínterim, nós estamos determinados a fazer tudo o que for possível para assegurar que as consequências de tudo isto não sejam pagas pelos cidadãos dos nossos países ou, igualmente, pelo mundo todo”.

Mais recentemente, Victoria Nuland expressou satisfação pelo fim do mais novo dos gasodutos, Testemunhando em frente ao Comitê de Relações Exteriores do Senado [dos EUA] ao final de janeiro, ela disse ao Senador Ted Cruz: “Assim como o senhor, eu me sinto, e penso que também o governo, muito gratificada de saber que agora o Nord Stream 2 – como vocês gostam de chama-lo – é um pedaço de metal no fundo do mar”.

A fonte teve uma visão muito mais de sabedoria popular sobre a decisão de Biden de sabotar mais de 2.400 quilômetros do gasoduto da Gazprom enquanto o inverno vinha chegando. “Bem”, disse ele, referindo-se ao presidente, “Eu devo admitir que o cara tem umas enormes pelotas. Ele disse que o faria, e ele o fez”.

Perguntado sobre a razão pela qual os russos falharam em responder, ele disse, cinicamente: Talvez porque eles querem ter a capacidade de fazer as mesmas coisas que os EUA fizeram.”

“Esta foi uma bela estória de capa [de jornal/revista]” continuou ele. “Por trás disso estava uma operação clandestina que colocou os especialistas e os equipamentos no campo que operaram com um sinal clandestino”.

“A única falha foi na decisão de fazê-lo”.

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