Ativista norte-americana explica por que ataque ao aborto nos EUA faz parte de guerra global contra as mulheres

A revogação da sentença que legalizou o aborto nos EUA e os ataques aos direitos LGBTQ+ fazem parte da guerra perversa, reacionária e teocrática do patriarcado, diz a ativista V

(Foto: Divulgação | Reuters)


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*Entrevista publicada por Chris Hedges em inglês no The Real News Network. Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247.

The Chris Hedges Report: 

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O rascunho de opinião da maioria [da Suprema Corte dos EUA] vazado sobre o processo 'Dobbs versus Women's Health' – o qual sugere que a Suprema Corte dos EUA tende a revogar a sentença do processo 'Roe versus Wade' [que legalizou o aborto em todos os EUA], trazendo a questão do aborto aos estados – faz parte de um assalto contra as mulheres. A pandemia da Covid-19, por exemplo, provocou um aumento estimado de 30% nos ataques violentos contra as mulheres, junto com a redução dos seus direitos. A autora e ativista V escreve que este assalto é “o mais severo revés ao movimento de libertação das mulheres da minha vida”.Muito deste abuso, incluindo o aumento do tráfico de sexo e de trabalho, é impulsionado pela perda de trabalho, a qual desempoderou ainda mais as mulheres. Nos EUA, mais de 5 milhões de postos de trabalhos de mulheres foram perdidos desde o início da pandemia até novembro de 2020, escreve V no The Guardian

“Como muitos dos trabalhos das mulheres requerem contato físico com o público – em restaurantes, lojas, cuidado de crianças, situações domésticas – os trabalhos delas foram os primeiros a desaparecer. Aquelas mulheres que conseguiram manter os seus trabalhos eram frequentemente trabalhadoras cujos postos as colocavam em grande perigo; cerca de 77% dos trabalhadores em hospitais e 74% dos funcionários de escolas são mulheres. Mesmo assim, a falta de opções de cuidados para seus filhos (creches, jardins de infância, etc.) fizeram com que muitas mulheres não conseguissem voltar aos seus empregos”.

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Neste episódio do The Chris Hedges Report, Chris conversa com V sobre como a esperada revogação de Roe e os ataques aos direitos dos LGBTQ+ fazem parte de uma guerra global, reacionária, teocrática e patriarcal de dominação. V (antes conhecida como Eve Ensler) é uma vencedora do prêmio Tony de dramaturgia, autora e ativista. O seu novo livro se intitula 'The Apology' .

No seu programa de 30 minutos The Chris Hedges Report, Chris Hedges entrevista escritores, intelectuais e dissidentes, muitos banidos do 'mainstream' [as grandes mídias comerciais]. Ele dá voz àqueles, de Cornel West a Noam Chomsky e os líderes de grupos como Extinction Rebellion, que estão nas linhas de frente da luta contra o militarismo, o capitalismo corporativo, a supremacia branca, o iminente ecocídio, bem como a batalha para arrancar de volta a nossa [dos EUA] democracia das garras da oligarquia global dominante.

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Transcrição da entrevista

Chris Hedges: O rascunho vazado da opinião da maioria [da Suprema Corte dos EUA] para o caso ‘Dobbs versus Jackson Women's Health’ sugere que a Suprema Corte dos EUA tende a revogar a sentença do caso ‘Roe versus Wade’ [que legalizou o aborto nos EUA], enviando a questão do aborto de volta aos Estados, como parte de um ataque mais amplo contra as mulheres. A pandemia da Covid-19, por exemplo, provocou um aumento estimado de 30% nos ataques violentos contra as mulheres, junto com a redução dos seus direitos. A autora e ativista V escreve que este assalto é “o mais severo revés ao movimento de libertação das mulheres da minha vida”. Muito deste abuso, incluindo o aumento do tráfico de sexo e de trabalho, é impulsionado pela perda de trabalho, a qual desempoderou ainda mais as mulheres.

“Nos EUA, mais de 5 milhões de postos de trabalho de mulheres foram perdidos desde o início da pandemia até novembro de 2020”, escreve V no The Guardian. “Como muitos dos trabalhos das mulheres requerem contato físico com o público – em restaurantes, lojas, cuidado de crianças, situações domésticas – os trabalhos delas foram os primeiros a desaparecer. Aquelas mulheres que conseguiram manter os seus trabalhos eram frequentemente trabalhadoras cujos postos as colocavam em grande perigo; cerca de 77% dos trabalhadores em hospitais e 74% dos funcionários de escolas são mulheres. Mesmo assim, a falta de opções de cuidados para seus filhos (creches, jardins de infância etc.) fizeram com que muitas mulheres não conseguissem voltar aos seus empregos.

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Juntando-se a mim para conversar sobre os ataques aos direitos das mulheres, bem como do seu novo livro The Apology [A Apologia], está a vencedora do prêmio Tony de dramaturgia, autora e ativista V, anteriormente conhecida como Eve Ensler. Então, V, comecemos pela esperada decisão da Suprema Corte dos EUA com este vazamento. Primeiramente, você ficou surpresa?

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Suprema Corte dos Estados Unidos(Photo: Will Dunham/Reuters/Direitos reservados)

V: Certamente, fiquei surpresa que tivesse vazado. Quero dizer o quão feliz eu estou de encontrar você, Chris, e de conversar com você. E eu não fiquei surpresa no sentido que todos estávamos esperando para saber que isto aconteceria. Penso que há tantos sentimentos que eu estou tendo sobre isso e tantos... Eu tive uma conversa telefônica com muitas mulheres, e naquele telefonema todas elas deixaram claro que esta decisão [da Suprema Corte] jamais será aceita por muitas, muitas mulheres em todo o país. E esta decisão vem de uma corte teocrática, vem de juízes que cometeram perjúrio no plenário quando falaram sobre ‘Roe versus Wade’.

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Isto provém de dois predadores sexuais da corte, como Clarence Thomas e Brett Kavanaugh, e das pessoas que foram nomeadas para aquela corte por um presidente predador sexual. Então, não podemos confiar neles de maneira alguma para... As mulheres não só não quererão chegar perto destes homens em termos dos seus corpos, porém certamente não aceitariam leis vindas deles. E eu penso que uma das coisas sobre a qual nós precisamos pensar – e que eu estive pensando tanto sobre isso na última semana [após a notícia do vazamento] – é que as nossas [dos EUA] instituições nos falham, como a Suprema Corte está fazendo; 70% das pessoas neste país [EUA] apoiam o aborto, apoiam a justiça reprodutiva e apoiam os direitos reprodutivos.

Quando as nossas instituições nos falham, não é apenas um direito nosso, é um dever nosso desobedecer a estas instituições. E eu penso que devemos comunicar agora ao Senado [Federal dos EUA, que confirma os juízes em funções vitalícias] e aos tribunais de todo o país que não vamos voltar para a garrafa. Estivemos livres por 50 anos. Tivemos o direito de escolher. Jamais desistiremos destes direitos, isso não acontecerá. E não aceitaremos isso, ponto final.

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Chris Hedges: Quero falar sobre o Partido Democrata, porque o Partido Democrata teve 50 anos quando eles poderiam ter codificado isto como lei. Tivemos Jimmy Carter, Clinton, Barack Obama, todos os quais tiveram maiorias [no Congresso dos EUA] – pelo menos no início dos seus mandatos presidenciais. Barack Obama disse – penso que se chama o Ato de Liberdade de Escolha, não lembro do título – que ratificaríamos como lei o processo de Roe versus Wade. Esta seria a primeira coisa que ele assinaria quando assumisse o governo. Ele disse isso quando era candidato. E então, nos seus oito anos como presidente, ele jamais o assinou. Fale um pouco sobre a falha do Partido Democrata de levantar-se e de fazer o que eles deveriam fazer.

V: Bem, eu penso que é exatamente isso que o Partido Democrata está fazendo agora. Qual foi a mensagem que Biden proclamou? Quando isso acontecer, é isso que nós faremos. Não se lidera as pessoas na batalha já reivindicando a derrota, certo? Você dirá que, à medida que entramos na batalha, nos levantaremos e lutaremos para garantir que isso jamais ocorra. E eu penso que esta atitude, o compromisso com as mulheres, desejado ou não, jamais esteve lá no Partido Democrata. Nunca esteve com o rigor, a devoção, com o compromisso que é necessário para codificá-lo como lei.

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E eu penso que agora estamos vendo os resultados disso. E eu penso que uma das coisas que todos nós temos de ver é que as pessoas devem dizer claramente que isto [a revogação] não é o que o povo quer. E devemos ir até o fim para mostrar que não aceitaremos isto como lei. Não aceitaremos. Porque eu acredito, como muita gente acredita, que uma vez que as lascas comecem a ser tiradas [dos direitos], todos os direitos começarão a ir embora. Esta é essencialmente uma assunção de todas as cortes pela direita teocrática cristã. E nós já vimos o que está sendo feito com o direito ao voto. Isso continuará, um direito após o outro será revogado.

Então, eu nem sei se se trata mais de empurrar o Partido Democrata, porque eu penso que nós já empurramos muito. Penso que se trata de ter mais gente dizendo, neste momento, que o Estado não está mais nos servindo de maneiras que são necessárias para proteger os nossos direitos básicos.

Joe Biden
Joe Biden(Photo: Reuters)

Chris Hedges: Eu mencionei antes de entramos no ar que eu cobri a Romênia, onde o aborto era ilegal. Isso não impediu os abortos. Isso significava que aqueles que tinham recursos, os ricos e as mulheres dos chefes do partido tinham acesso a abortos seguros, e que as mulheres pobres morriam nos quartos dos fundos. É isto que acontece quando você torna o aborto ilegal.

V: É exatamente isto. E nós sabemos que as pessoas que mais sofrerão neste país com estas leis são as mulheres negras, e as mulheres marrons e as mulheres pobres, e as mulheres indígenas, e as imigrantes e as pessoas que não têm acesso a recursos e dinheiro. E isto será devastador. E a ideia que pensamos que voltaremos àqueles tempos nos quais os corpos das mulheres são destruídos, ou que as mulheres são forçadas a ter filhos contra a vontade delas, isto é simplesmente inconcebível.

Chris Hedges: E devemos ter claro que Biden apoiou a Emenda Hyde, que impediu o governo federal de pagar por abortos. E ele apoiou a permissão que os estados revogassem individualmente ‘Roe versus Wade’. Assim que Biden tem antecedentes nesta questão.

V: Correto. E eu penso que nós precisamos, agora mesmo, de uma das coisas que estávamos falando, precisamos de uma liderança neste país que esteja comprometida com os direitos das mulheres, aos direitos das pessoas LGBTQ e comprometida com o direito de voto que correspondam aos tempos que estamos vivendo com a energia, com o pensamento, com a imaginação, com a criatividade e com o compromisso. E nós vemos que isto está completamente em falta no Partido Democrata. Sinto muito, isto simplesmente não está lá.

Chris Hedges: Antes que falemos sobre a resposta: por quê? O que há no patriarcado que é tão obsessivo sobre o aborto?

V: Bem, eu penso que uma das coisas que temos que ver é uma história que vai lá para trás; quando começou a ideia de controlar o corpo das mulheres? No meu artigo no The Guardian, eu escrevi sobre o que há nos corpos das mulheres que deixa o patriarcado com tanto medo e tão inseguro e tão cruel e tão punitivo. E eu penso que isso tem a ver com a nossa autonomia. Eu acredito que tem a ver com a nossa mera existência. Penso que tem a ver com a nossa capacidade de ter prazer, de ter um prazer infindável. Penso que tem a ver com a nossa força, que é capaz de dobrar-se e carregar e dar à luz e levantar, e não depende de armas e violência, mas tem uma força inerente. Temos uma energia inerente de força.

E eu penso que o patriarcado insiste que há certos homens que surgem, que controlam, que dominam, que tem coisas, que tem tudo e que essa hierarquia é mantida. Acredito que quando as mulheres têm direito aos seus corpos e têm acesso aos seus corpos e sabem que elas podem ter filhos se quiserem e não os ter se não quiserem; que elas podem ter sexo quando querem, ou não ter sexo quando não querem – nós [mulheres] estamos vivendo em um mundo completamente diferente. E eu penso que há um enorme retrocesso neste mundo, porque, essencialmente, os muito poucos, os poucos homens brancos que têm o poder, perderão este poder e eles não querem perdê-lo. 

Chris Hedges: Então, para onde vamos? Qual é a resposta? Você tem razão, há uma espécie de fatalismo de parte da liderança do Partido Democrata de que isso já está acontecendo. O que deveríamos fazer?

V: Penso que, em primeiro lugar, devemos acreditar que podemos fazer algo. A minha sensação nos últimos dias, falando com as pessoas e ouvindo delas exatamente esta sensação de que não há coisa alguma que podemos fazer.

Como o fato que seguimos separando o direito de votar dos direitos ao aborto, dos direitos dos gays e LGBTQ – porém tudo isso é a mesma estória. Há uma tentativa de evitar que surja o mundo que está tentando emergir. O mundo no qual, por exemplo, nos conciliemos com a nossa história e olhemos para a história da supremacia branca neste país [EUA] e ensinemos a teoria crítica sobre raça, e olhemos para o quê esta história deste país fez aos povos indígenas, aos povos negros e marrons. Trata-se [para eles] de empurrar para trás a libertação de gênero, de fazer retroagir a libertação dos direitos dos trabalhadores. Trata-se [para eles] de fazer retroagir uma preocupação profunda e poderosa pela Terra e por proteger o mundo.

Todas estas coisas são questões de um por todos e todos por um. E que o patriarcado e o capitalismo fizeram brilhantemente foi dividir-nos nestes silos – de modo que todos nós pensemos que estamos lutando por esta questão aqui e aquela questão acolá, quando, na verdade, isto é uma estória só. E que, quando saímos para lutar por uma questão, nós precisamos lutar por todas as questões. E eu penso que a primeira coisa [a fazer] é acreditar que podemos mudar as coisas e levantar-nos e unir as nossas forças e nos unirmos aos outros na luta. E, depois, é estarmos dispostos a dizer: Eu simplesmente não vou aceitar isso como lei, ponto. Isso não ocorrerá. Então, quando eu não aceito isso, o que ocorrerá como resultado de eu não aceitar isso> E eu penso que é isso que tem que emergir nestes próximos dias.

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Ativistas a favor do aborto realizam protesto na frente da Suprema Corte americana, localizada em Washington(Photo: Kevin Lamarque/Reuters)

Chris Hedges: Eu quero conversar sobre o que você escreveu no The Guardian, sobre a crise do COVID sendo manipulada e usada pelo patriarcado. E você apresenta alguns números assombrosos – e estes são números globais – de violência, de fazer desaparecer. Com o 'lockdown' [confinamento], com a Covid, com a lei, com as consequências econômicas da pandemia, você também viu a reafirmação de números patriarcais muito escuros. Fale sobre o que ocorreu.

V: Sim, isto é realmente, realmente aterrorizante. Eu escrevi este artigo que se intitula “O Patriarcado do Desastre” (“Disaster Patriarchy”), o qual se baseia na ideia de capitalismo do desastre de Naomi Klein, quando os capitalistas usaram o desastre para impor medidas que eles não poderiam fazer passar em tempos normais, gerando mais [inaudível] para eles mesmos. E o patriarcado do desastre seria um processo paralelo e complementar, no qual os homens exploram a crise para reafirmar o controle e dominar e apagar rapidamente os direitos arduamente conquistados pelas mulheres. E, no mundo inteiro, o patriarcado tirou amplas vantagens deste vírus para recuperar o poder, de um lado, escalando o perigo e a violência para as mulheres em todos os lugares; e, por outro lado, entrando nisso como supostos controladores e protetores das mulheres.

Devo dizer-lhe que, trabalhando nas linhas de frente da violência contra as mulheres, vimos uma explosão de violência contra as mulheres em todo o planeta, e a violência cisgênero e de gêneros diversos, e terrorismo íntimo. Quero dizer que, em primeiro lugar, o fato que as pessoas foram confinadas aos seus lares com seus parceiros e seus filhos, ninguém sequer considerou aquele tipo de violência que seria gerada quando os homens não estão trabalhando, quando ninguém estava trabalhando, quando as pessoas entraram em pânico sobre como iriam viver, quando as pessoas estavam ficando doentes. Vimos violências inacreditáveis e sequer sabemos ainda o que isto é.

E depois, obviamente, ao mesmo tempo, eles estavam fechando abrigos e lugares para os quais as pessoas poderiam escapar, e não elevando e protegendo as mulheres. E eu penso que nós vimos a propagação da pornografia da vingança, à medida que o mundo foi empurrado para a internet e o abuso sexual digital foi escalado. Eu odeio ser a portadora de más notícias, porém o confinamento foi a tempestade perfeita – com insegurança econômica, medo de doenças e uso excessivo de álcool, que se combinaram para tornar perturbadora a violência por todas as partes.

Eu tenho contato com irmãs de todo o mundo – da Itália às Filipinas, em todo este planeta. Está acontecendo a mesma coisa no mundo inteiro. As estatísticas de violência contra as mulheres durante a pandemia são absurdamente altas, E eu penso que, à medida que saímos da pandemia, o que está sendo feito para dar apoio a estas mulheres? Porque tantos destes abrigos e muitos destes sistemas que estariam lá para as mulheres, não existem mais, porque não há financiamentos para estes. E eu penso que também vimos o aumento dos estupros. Vimos o aumento do tráfico sexual, devido a condição das famílias pobres em todo o mundo.

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Violência doméstica(Photo: Reprodução)

Uma das coisas que me preocupam profundamente é quantas meninas estão fora da escola e o fim da educação para jovens meninas – porque estamos vendo uma progressão disso e um movimento para fazer isso avançar no mundo – e assim vemos milhões de meninas fora da escola. Há regressões em tantas coisas. Por exemplo, se você olhar para a questão de mutilações genitais femininas. Quando as meninas estavam indo à escola e não estavam sendo cortadas, elas estavam se tornando médicas e professoras; elas estavam se tornando pessoas que podiam prover o sustento para as suas famílias.

E, assim, as famílias não as estavam mutilando mais, porque elas traziam renda e comida de volta para as suas famílias depois de serem educadas. Agora, com as meninas não podendo ir à escola, estamos vendo de novo o aumento das mutilações genitais femininas. Estamos vendo outra vez o aumento de famílias que vendem as suas filhas. Outra vez, houve um aumento de casamentos de crianças. E eu penso que isso sequer está sendo considerado em escala, nem sendo tratado na escala que precisa ser considerado, porque está realmente acontecendo em tempo real. E então, como você disse no início da entrevista, nos EUA mais de cinco milhões de mulheres perderam os seus postos de trabalho.

E, por causa disso, agora as mulheres estão em casa, estão de volta em casa, cuidando de crianças o dia inteiro, cuidando das suas famílias o dia inteiro. Sequer podemos estimar quão exaustas as mulheres estão como resultado da pandemia e o quanto elas estão em pânico sobre o que será da vida delas, das vidas que tinham antes do vírus.

Chris Hedges: Falemos sobre as mulheres nas linhas de frente. Você escreve sobre as enfermeiras, por exemplo. Porém há uma porcentagem desproporcional de mulheres que, em meio a pandemia, estão nas linhas de frente. Fale um pouco sobre o que ocorreu com elas.

V: Bem, eu penso que eu realmente quero falar especificamente sobre as enfermeiras e as trabalhadoras em restaurantes. Como nos lembramos, no início da pandemia ninguém sequer pensou sobre o que ocorreria com as nossas enfermeiras e as nossas atendentes nos hospitais. Lembre-se, as mulheres estavam sendo forçadas a usar sacos de lixo como uniformes de proteção, elas estavam reutilizando máscaras, o que obviamente as deixaria doentes. A maneira pela qual as enfermeiras estavam sendo tratadas durante esta pandemia – e elas são pessoas fundamentais nas linhas de frente – foi simplesmente ultrajante e, na minha opinião, profundamente inumano.

E eu escrevi uma matéria intitulada “Aquela Gentileza” (“That Kindness”), na qual eu entrevistei muitas mulheres que estavam nas linhas de frente, para lhes perguntar como eram as coisas durante a pandemia. Enfermeiras se tornam enfermeiras porque querem curar as pessoas e porque querem que as pessoas melhorem. E colocar as enfermeiras em condições nas quais elas estão nas linhas de frente e não podem ajudar as pessoas a ficar... No início da pandemia, as enfermeiras estavam totalmente inundadas de pacientes, elas não conseguiam ajudar ninguém. Elas estavam fazendo o melhor que podiam para curar as pessoas e fazer isso, porém não tinham apoio, não tinham suporte do governo, dos hospitais.

Profissional da saúde
Profissional da saúde(Photo: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)Marcello Casal Jr/Agência Brasil

E isso ocorreu por todos os lados em termos de trabalho de mulheres. Se você olhar para as mulheres nos restaurantes que ainda lutam, muitas delas ganhando US$ 2,13 por hora e estão lutando por um salário básico decente. Estas mulheres foram forçadas a trabalhar em restaurantes nos quais até um novo desenvolvimento – chamado de assédio “maskular”, se alguém pode acreditar nisso – quando lhes pediam que tirassem a máscara, para que o homem pudesse ver se eram bonitas o suficiente para ganhar uma gorjeta. E, obviamente, isto coloca as mulheres em alto risco de ficarem doentes. Isto as coloca em risco... Obviamente, é humilhante.

Isto é degradante. Porém nada havia que as mulheres pudessem fazer para lutar contra isso, porque ninguém as estava apoiando durante a pandemia. E eu penso que, quanto mais se erodem os direitos das mulheres nos lugares de trabalho, mais difícil fica que as mulheres fiquem bem, façam bem os seus trabalhos e até para que mantenham os seus trabalhos – porque elas estão trabalhando contra os seus direitos humanos básicos.  

Chris Hedges: Você também escreve sobre as trabalhadoras rurais, sobre as questões com pesticidas, o envenenamento, o abuso sexual, e stress de calor. Quero ler uma pequena passagem que você escreveu e depois gostaria de ter o seu comentário a respeito. Você disse: “A Covid revelou o fato de que nós convivemos com duas ideias incompatíveis no que concerne às mulheres. A primeira é que as mulheres são essenciais para todos os aspectos da vida e para a nossa sobrevivência enquanto uma espécie. A segunda é que as mulheres podem ser facilmente violadas, sacrificadas e apagadas. Esta é a dualidade que o patriarcado implantou no tecido da existência e que a Covid desnudou. Se quisermos continuar como espécie, esta contradição precisa ser curada e tornada inteira”. Penso que este foi um ponto realmente presciente.

V: Grata, Chris. Eu sinto isso tão profundamente, e o sinto especialmente também em tudo que está acontecendo com a questão do aborto. Se espera que as mulheres façam basicamente todo o trabalho que mantém junto esta cultura e mantém o mundo junto. Seja com a maternidade, o ensino ou cuidando das pessoas nos restaurantes, ou cuidando dos idosos, ou trabalhando como enfermeiras, ou trabalhando no campo – e a lista continua. O mundo pararia absolutamente nos trilhos se as mulheres retirassem o seu trabalho dele. Quem criaria as crianças? Quem curaria os doentes? Quem cuidaria das pessoas?

Quem limparia? Quem faria tudo que é essencial para as nossas vidas? Mesmo assim, nós [as mulheres] somos as mais subvalorizadas, não pagas, não reconhecidas, desestimadas e as mais facilmente descartadas. E eu penso que uma das coisas que devamos entender enquanto mulheres e pessoas que estão fazendo este trabalho é que, na verdade, nós temos poder. Nós mantemos o poder. E se nós tomarmos uma decisão de suspender este poder e pararmos de fazer todas estas coisas, o mundo efetivamente pararia – porque nós temos um valor essencial, nós somos críticas para a evolução da raça humana e para a continuação da raça humana.

E se nós tomarmos a decisão de dizer que não participaremos mais nisso até que o mundo mude, ele mudará. Mas, parte disso é nos unirmos [entre nós, mulheres] e nos unirmos com os nossos aliados homens e LGBTQ, de modo que estejamos todos juntos neste entendimento de que há apenas algumas [poucas] pessoas a quem se valoriza nesta cultura. Valoriza-se os ricos, os bilionários, os homens brancos, as pessoas com poder – e todos os demais não o são. E que parte disso é: como nos unirmos para compreender que estamos numa batalha para lutar pela maioria, para lutar pelos direitos da maioria, para lutar por aquilo que é básico e humano e para defender as pessoas que mantêm este mundo unido?

Chris Hedges: Eu quero encerrar falando sobre o seu livro, The Apology (A Apologia), o qual eu li. Belamente escrito, difícil de ler. Ele é essencialmente escrito na voz, você o escreveu, mas foi escrito na voz do seu pai – que abusou de você quando era criança; fale sobre por que você o escreveu e por que uma apologia é tão importante. 

V: Lhe agradeço por me perguntar sobre o livro. Eu penso que, como criança, eu sempre pensei que viria o dia quando o meu pai acordaria, tomaria consciência e se daria conta do que ele havia feito, que ele havia me abusado sexualmente, que ele me espancou, que ele quase me assassinou e que ele assuma os seus atos e diga: “eu estava errado e quero reparar as coisas com você e quero olhar profundamente dentro da minha alma sobre o que eu fiz”. E isso não ocorreu. Eu esperei a minha vida toda. E então, meu pai morreu. E, de alguma maneira, mesmo na morte dele eu tive esta fantasia por 31 anos, de que eu iria até a minha caixa de correio e ali estaria a carta de desculpa dele e que ele finalmente teria mandado para mim de algum outro reino.

E eu não penso que eu esteja sozinha. Penso que haja milhões, senão bilhões, de mulheres aguardando por estas apologias. E aí, então, ocorreu o movimento 'Me Too' ['Eu também'] e eu ví tantos homens sendo acusados pelo comportamento deles – seja por assédio sexual, ou estupro, ou abuso, seja lá o que for. E eu continuei esperando que os homens assumissem as suas responsabilidades, fizessem as apologia, fizessem as suas auto reflexões, que olhassem para si mesmos – que se perguntassem: isto é o que eu fiz e estou fazendo a minha auto-investigação e estou tentando entender como eu me tornei um homem capaz de fazer estas coisas?

E que se dessem o trabalho o suficiente para que estas apologias pudessem ser feitas. Sendo honesta com você, eu não ouvi uma única apologia. Não é só isso, nós vemos homens que fizeram coisas terríveis serem presos e depois saírem da prisão, ou jamais irem para a prisão, ou jamais terem quaisquer ramificações disso. Assim, me dei conta que eu estive esperando por esta apologia a minha vida toda. Eu vou só escrevê-lo. Vou escrever a apologia para mim mesma e vou dizer para mim mesma as palavras que eu precisava ouvir, de modo que eu possa ser transformada e possa seguir com a minha vida. Para ser honesta, escrever este livro provavelmente foi a coisa mais difícil que eu jamais tenha feito na minha vida.

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Manifestação do #MeToo(Photo: Lucy Nicholson / Reuters)

Eu tive que entrar dentro do meu pai, que morreu há 31 anos. Mas, para ser honesta, assim que eu tomei a decisão de escrever o livro, ele esteve muito presente durante a escritura do livro. E eu tive que entrar nele para compreender – não para justificar, deixe-me ser clara. Há uma diferença entre a compreensão e a justificativa – para compreender o que se passava com o meu pai. Quem era ele que foi capaz de tentar destruir completamente a sua criança? A sua filha. Para abusar dela, para rebaixá-la, para bater nela, para a eviscerar em todos os níveis, para fazê-la sentir-se burra, para fazê-la sentir-se sem valor.

E fazer isso foi uma coisa muito, muito profunda, porque eu comecei a entender o patriarcado num nível que eu jamais havia entendido antes. E eu comecei a compreender que uma das colunas do patriarcado, uma das coisas que o mantém, o apoia, que o sustenta, é a não-apologia. É quando homens se juntam em uma espécie de decisão indizível e inconsciente de que jamais dirão que sentem muito. Porque, se um homem diz que ele sente muito, o sistema inteiro começa a desmoronar. A ideia toda. E eu penso que o que eu descobri é que as apologias são um caminho para todos nós em muitas áreas diferentes.

Veja, nós [os EUA] temos um país com uma história totalmente não-examinada. Negar, negar, negar, seja como este país começou com a destruição e o genocídio contra os indígenas e o roubo da terra destes e a evisceração das culturas deles, seguidos de 400 anos de escravidão e destruição dos Afro-Americanos e Jim Crow [as leis racistas] e tudo que veio depois. E tudo isso foi enterrado. Não houve sequer uma apologia. Não houve sequer um reconhecimento. Não houve qualquer responsabilização. E eu penso que parte deste país, uma das razões pelas quais nós estamos aqui é que sofremos de uma diabólica amnésia. Ela é diabólica. 

E isto é combatido com uma apologia. Porque uma apologia força você a lembrar, força você a voltar atrás, força você a olhar para os detalhes daquilo que efetivamente ocorreu e pelo qual você é responsável. E daí, isso faz com que você diga efetivamente à pessoa a quem você está fazendo a apologia: ‘eu entendo o que as minhas ações fizeram a você. Eu vejo o impacto disso sobre você. Eu vejo os efeitos de longo-prazo que isto teve em você. Eu efetivamente me dou conta que eu sou responsável por isso, e eu assumo a responsabilidade por isso. Para que você não seja escondido para o seu futuro todo. Para que você entenda que eu não inventei isso, que você não é insano. Isso realmente ocorreu e você pode se livrar destes crimes’ – assim como o perpetrador comece a libertar-se destes crimes.

Chris Hedges: Bem, se não há um reconhecimento honesto do passado, não há possibilidade de se ter um diálogo.

V: Nenhuma [possibilidade].

Chris Hedges: Porque você deve começar baseada numa verdade, quão desagradável esta seja. No livro, você fala sobre as suas ramificações, ramificações muito autodestrutivas que este teve em você. O tipo de reverberações de abuso que são horríveis. Você pode falar sobre isso?

V: Muito obrigada por perguntar sobre isso, porque eu penso que uma das coisas que nós fazemos é falar sobre “violência de gênero”, e mantemos esta questão muito abstrata, não olhamos para o impacto do abuso sexual nas crianças e nas meninas e nos meninos. E qual é o impacto da violência? Eu fui um resultado da violência. Eu fui uma consequência da violência. A minha existência cotidiana foi ameaçada por ser espancada, e isso veio depois dos anos nos quais o meu pai entrava no meu quarto à noite e invadia o meu corpo, me tomando e fazendo comigo o que ele queria fazer.

Então, eu cresci num estado de terror, de ansiedade. Eu não conseguia pensar. Eu perdi a minha capacidade de pensar. Eu não conseguia focalizar. Eu não conseguia me concentrar. Eu tive que começar, basicamente, por apagar tudo que foi feito a mim, porque era tão intolerável. Então, eu comecei a apagar a minha memória e a minha capacidade de ter memória. Meu corpo adoeceu. Eu tive todos os tipos de infecções estranhas. Meu corpo ficou vulnerável de maneiras que nunca esteve vulnerável, como se alguém não tivesse me invadido. Eu perdi a minha capacidade de ter intimidade. Quaisquer relações que eu tivesse, quanto próxima eu estivesse de quem eu estava envolvida, eu tive que retirar-me, porque era assustador demais, porque a intimidade significava uma forma de subjugação, de violência e de invasão.

E isso é interessante. Há 12 anos, eu tive um câncer uterino de terceiro/quarto estágio. E eu comecei a realmente pesquisar sobre como muitas mulheres tinham cânceres reprodutivos. E eu devo dizer, eu sei – eu ainda não consegui provar isso cientificamente, mas isto será provado algum dia – que há uma ligação direta entre um trauma contra o corpo e os cânceres que se desenvolvem no corpo. Penso que um dia nós chamaremos o câncer de um trauma. Existe uma conexão direta com isso. Então, o tipo de impacto que a violência sexual tem nas crianças, nas mulheres, na nossa saúde mental, na nossa capacidade de acreditar que temos algum valor.

Eu lutei a minha vida toda para não acreditar que eu sou nada. Para não acreditar que eu sou burra. Lutei para acreditar que eu tenho o direito de estar aqui. Porque este direito foi eviscerado de mim desde o tempo que eu posso me lembrar. Eu sou uma pessoa afortunada. Eu sou uma pessoa branca. Eu cresci num ambiente de classe média alta no qual pelo menos eu estava exposta a recursos que podiam ajudar-me. Mas eu passei algum tempo em prisões. Passei tempo em abrigos de pessoas sem teto. Passei tempo em lugares onde há pessoas pobres que não têm acesso a estes recursos, e eles simplesmente desaparecem. Eles simplesmente são quebrados. Eles simplesmente são viciados em drogas. E nós não tratamos de nada disso, apesar de haver milhões de nós que estamos nesta posição, porque uma em cada três mulheres será espancada ou estuprada durante a sua vida.

Chris Hedges: Eu escrevi um livro sobre a direita fascista cristã nos EUA – 'The Christian Right and the War on America' ('A Direita Cristã e a Guerra contra a América'). Isso eu não coloquei no livro, mas eu entrevistei dúzias e dúzias de mulheres no movimento e cada uma delas falou sobre abusos domésticos ou sexuais. Cada uma delas.

V: Sim. E eu penso que esta é uma das coisas quando você... Veja, eu estou fazendo este trabalho para acabar com a violência contra as mulheres e as meninas já vão ser por 25 anos. E eu estive com mulheres no mundo inteiro e em todo este país. E há tantas mulheres que foram espancadas, que foram estupradas, que foram cortadas, que sofreram incestos. No entanto, esta é a coisa subjacente que determina tanto da nossa existência e que ainda não foi confrontada de maneira que seja mensurável, que seja comparável à severidade dos crimes. E eu penso que isso tudo faz parte desta maneira de minimizar as mulheres e de apagar as mulheres e de fazer as mulheres sentirem que elas não têm o direito a ter uma voz e o direito aos seus corpos e o direito ao seu valor básico.

Chris Hedges: Ótimo. Vamos parar por aqui. V, eu quero agradecer ao The Real News Network e a sua equipe de produção – Cameron Granadino, Adam Coley, Dwayne Gladden e Kyla Rivara. Vocês podem me achar no website www.chrishedges.substack.com

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