A guerra como terrorismo: a humanidade é a barbárie?

"Atualmente, as crianças pensam sobre a violência de maneiras que não pensavam antes", reflete Andrea Mazzarino, do Costs of War Project, da Brown University

Andrea Mazzarino
Andrea Mazzarino (Foto: HRW | REUTERS/Serhii Nuzhnenko)


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Artigo de Andrea Mazzarino (*), originalmente publicado no site www.tomdispatch.com em 31.05.22 

Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247

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Qualquer um que tenha crescido na minha geração de crianças dos anos de 1980 lembra das figuras de ação do G.I. Joe - aqueles soldados de plástico em uniformes verdes que você podia usar para encenar batalhas na caixa de areia do seu quintal ou, se for o caso, no seu quarto. Naqueles tempos - quando as imagens de casas bombardeadas, civis ensanguentados e violência policial não era acessável nas telas de TV ou em jogos de vídeo (videogames) como 'Call of Duty' ['Chamamento ao Dever'] - a guerra nas brincadeiras das crianças ocorria apenas entre soldados. Não havia civis atingidos como “danos colaterais” de guerra.

Nós, crianças, não entendíamos, sequer vagamente, na sua essência, que a guerra efetivamente envolve uma abundância de mortes civis. E por que deveríamos entender assim? Naqueles tempos – quando o único conflito estrangeiro [para os EUA] que a maioria de nós conhecíamos, foi a invasão farsesca do Iraque pelos EUA em 1991, na sua maior parte uma guerra aérea desde o ponto de vista estadunidense – nós certamente não pensávamos sobre o que agora chamamos de crimes de guerra. Isso poderia ter sido a causa para uma indicação de fazer uma terapia, caso um de nós tivesse pegado um G.I. Joe e fizesse de conta que estávamos atirando numa criança – estivesse ela armada com uma bomba suicida, ou não.

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Tendo vivido durante mais de um século e meio em uma paz relativa na nossa pátria [EUA], enquanto lutávamos em guerras infindáveis no estrangeiro, somente nos últimos 20 anos da guerra ao terror dos EUA no pós-9/11 [ataques às torres-gêmeas em New York, em 2001] travada por tropas dos Estados Unidos em dezenas de países no mundo, é que algumas das nossas crianças começaram a enfrentar o que significa matar civis.

A Guerra numa Era de (Des)informação Trumpiana

Sendo a esposa de um soldado da Marinha dos EUA durante mais de 10 anos e uma terapeuta que se especializa em tratar famílias de militares e pessoas que fogem de guerras no estrangeiro, eu acredito que as guerras pós-9/11 finalmente começaram a chegar aqui [nos EUA] numa variedade de maneiras – incluindo como nós pensamos sobre a violência. Os conflitos no Afeganistão, no Iraque e mais além chegaram aos EUA de maneiras muito estranhas e, frequentemente, de formas indiretas – começando com os excedentes de pequenas armas e de equipamentos táticos (alguns dos quais foram previamente usados em zonas de combate distantes) que o Pentágono transferiu aos departamentos locais de polícia no país inteiro em quantidades cada vez maiores.

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As nossas [dos EUA] guerras também chegaram a nós através das concessões “antiterror” do Departamento de Segurança da Pátria (DHS – Department of Homeland Security) - o qual também é uma criação da guerra-ao-terror – que financiam as compras de veículos blindados e outros equipamentos [sobras de guerra] pelos serviços locais de aplicação de leis [i.e., polícias]. Estes programas de armamentos têm ajudado a encorajar os policiais a se verem como guerreiros e ver como inimigos os cidadãos, como George Floyd, o que ajuda a explicar o crescente uso da força durante atuações das polícias em anos recentes.

Adicionalmente, na última década, as guerras deste país [os EUA] têm chegado aqui na forma de mais tiroteios de massa executados por supremacistas brancos e indivíduos antigoverno que visam as minorias e as pessoas de cor [eufemismo estadunidense para não-brancos]. Neste ínterim, o DHS continuou a visar desproporcionalmente nos perigos de extremistas islâmicos, enquanto negligenciam a ameaça de grupos de extrema direita - apesar da facilidade que estes desfrutam para ter acesso à armas de fogo e da realidade que muitos dos seus membros têm formação militar [veteranos das forças armadas].

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Pense como as guerras chegam aqui [aos EUA] de uma maneira adicional: através do ataque ao Capitólio [Congresso dos EUA] em 6 de janeiro de 2021, executado pelo pequeno exército de golpistas sob comando do então-presidente Donald Trump. Considere isto como um símbolo do nosso momento de apuros no qual a liderança do Partido Republicano sancionariam aquele assalto como “um discurso político legítimo”.

Nestes tempos nos quais conflitos armados parecem estar por todas as partes, aceite a minha palavra como terapeuta e mãe: atualmente, as crianças pensam sobre a violência de maneiras que não pensavam antes. Depois da morte de George Floyd por asfixia em 2020, causada pela pressão de um joelho de um policial de Minneapolis, as crianças na minha comunidade me perguntaram mais de uma vez o que é que uma pessoa sente quando alguém pisa sobre o seu pescoço. Outras me perguntaram o que se sente quando balas [de armas] entram no seu corpo e se é possível estancar sangue quando uma pessoa armada entra na sua escola e começa a disparar tiros contra os estudantes.

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Em estive num museu militar numa base onde são expostos mísseis e ouvi uma criança pequena perguntar ao seu pai se uma arma daquelas machucaria caso atingisse você. Algumas crianças, cujos pais ou mães lutaram em zonas de combate e retornaram com ferimentos e com a síndrome de stress pós-traumático, podem intuir o que significa sobreviver a uma guerra depois que viram o seu pai ou a sua mãe se jogar no chão quando ouviu uma criança berrar no playground.

O cerne do preço da guerra: mortes de civis

Um fator imperativo ficou no cerne do Projeto 'Custos da Guerra' ('Costs of War Project')da Universdade Brown, o qual eu ajudei a fundar em 2011: registrar o mais acuradamente possível quantas pessoas foram mortas ou feridas graças à decisão do presidente George W. Bush e a sua equipe de responder aos ataques terroristas de 9/11 com infindáveis ações militares  em partes significativas deste planeta. É fácil esquecer o quão regularmente os soldados matam e ferem civis inocentes.

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Segundo as nossas contas, até 2022, uns 387 mil civis foram mortos graças à violência da guerra no Afeganistão, no Iraque, no Paquistão, na Síria e no Iêmen. Mortes parecidas de civis ocorreram em países como a Somália, onde o presidente Biden acaba de realocar centenas de soldados estadunidenses, numa nova rodada de ofensivas militares contra o grupo terrorista islâmico al-Shabab (que se fortaleceu mais ainda nestes anos de violência toda-estadunidense).

As pessoas que vivem nos lugares onde os EUA lutaram morreram nas suas casas e nos seus bairros por causa dos bombardeios, ataques de artilharia e de mísseis e tiroteios. Eles morreram quando estavam fazendo compras ou caminhando, ou se locomovendo para a escola ou para o trabalho. Eles pisaram em minas ou em bombas de fragmentação enquanto coletavam lenha ou quando estavam trabalhando nos seus campos. Vários partidos nos nossos [dos EUA] conflitos sequestraram ou assassinaram pessoas à medida que elas seguiam com as suas vidas cotidianas. Meninas e mulheres foram estupradas de propósito como parte de um ataque às suas comunidades. A ONG Human Rights Watch documentou como, no Afeganistão, partes de todos os lados envolvidas na guerra ao terror – incluindo soldados e policiais aliados dos EUA, violentaram, sequestraram, torturaram e dispararam tiros contra civis, incluindo crianças.

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O Comitê Internacional da Cruz Vermelha define crimes de guerra como atos desproporcionais às vantagens militares buscadas, aqueles que não distinguem entre alvos militares e civis, ou que não tomam precauções para minimizar ferimentos e perdas de vidas dentre os civis. Foi simbolicamente típico que o último ataque de drone dos EUA em Kabul, capital do Afeganistão – quando as tropas dos EUA estavam retirando-se após 20 anos de guerra naquele país – matou três adultos e sete crianças. Mesmo assim, a maioria dos estadunidenses jamais entenderam o quanto os civis sofreram com as nossas [dos EUA] táticas de guerra – as quais foram publicizadas com sendo “cirúrgicas” e “precisas” em alvejar extremistas islâmicos, mesmo quando eles entendem como os russos estão massacrando os civis ucranianos.

Obviamente, isto não quer dizer que as informações sobre o mal causado pelas nossas guerras aéreas contra civis, em particular, não estejam disponíveis por anos aos que as buscam. Para dar apenas um exemplo: considere o caso de Zeeshan Usmani, um estudioso paquistanês, ativista e fundador da ONG 'Pakistan Body Count' (Contas de Corpos Paquistaneses). Ele realizou detalhadas investigações sobre a guerra de drones dos EUA nas fronteiras entre o Afeganistão e o Paquistão desde 2004. A pesquisa de Usmani revela que, na ausência de um forte serviço humano de inteligência no campo, os operadores estadunidenses de drones frequentemente determinavam quem era um militante baseando-se em alvos móveis e imprecisos. Por exemplo, alguns ataques de drones visavam telefones celulares que poderiam ter trocado de mãos entre diversas pessoas. Tais ataques mataram ou feriram familiares ou vizinhos do indivíduo visado, ou até mesmo socorristas que acudiram os atingidos após um ataque inicial haver ocorrido. Usman descobriu que, entre 2004 e 2014, 2.604 civis morreram devido a ataques de drones dos EUA naquela fronteira – o equivalente a 72% das vítimas durante aquele período.

Um conjunto de investigações do The New York Times, que venceu um Prêmio Pulitzer, sobre as guerras aéreas dos EUA no Afeganistão, no Iraque e na Síria, analisaram mais de 1.300 relatórios militares sobre ataques aéreos entre 2014 e 2018. Os seus jornalistas descobriram que mais da metade destes ataques – frequentemente baseados em inteligência defeituosa – que levaram o Pentágono a visar civis, resultaram em milhares destas mortes.

Em janeiro de 2017, por exemplo, a Força Aérea dos EUA bombardeou três famílias iraquianas que se pensava fossem combatentes do ISIS [Estado Islâmico]. As casas visadas incluíam civis que não tinham conexões com aquele grupo terrorista. Um homem iraquiano perdeu a sua sogra e três dos seus filhos, um dos quais morreu nos seus braços quando ele tentou levá-lo ao hospital. (Uma casa próxima de combatentes do ISIS ficou intocada). O Pentágono sequer reconheceu as mortes destes civis até anos após estes bombardeios. Os sobreviventes das famílias afetadas por este e outros “incidentes” similar sequer receberam restituições ou acesso aos tipos de cuidados médicos que muitos necessitavam para viver com as suas deficiências físicas.

A guerra como terrorismo

Fazer honrarias às tropas [estadunidenses] em feriados nacionais – como o recente Dia da Memória – ajuda a obscurecer a sinistra realidade dos nossos tempos – que as guerras são vencidas (ou, no caso deste país [EUA], parece que jamais são vencidas) somente tornando impossível que as comunidades às quais nos opomos continuem com as suas vidas cotidianas.

Uma vez eu ajudei a realizar uma pesquisa compilada por 10 importantes organizações humanitárias e de direitos humanos para a publicação 'Education Under Attack' ('Educação Sob Ataque'). Esta pesquisa mostrou como os conflitos armados impactou as vidas de estudantes e professores em mais de 93 países. O relatório mais recente de 2020 revelou que forças militares governamentais e grupos sectários armados executaram mais de 11.000 ataques no mundo todo contra escolas, ônibus escolares, estudantes e professores entre 2015 e 2019. Combatentes e tropas militares bombardearam e ocuparam escolas e raptaram estudantes e professores, usando-os algumas vezes para sexo ou recrutando-os à força para exércitos e milícias. E muitos destes ataques foram deliberados demais. (Por razões que não mencionarei aqui, diferentemente do 'Costs of War Project', a pesquisa 'Education under Attack' não investigou especificamente as mortes de guerra nas mãos das forças militares estadunidenses, apesar de que a maioria dos países incluídos neste relatório eram aqueles que os nossos [dos EUA] militares armam, ajudam com serviços de inteligência, treinam ou combatem juntos com eles.)

Uma criança de oito anos no Iêmen – um país onde se estima que 12.000 civis morreram devido a ataques aéreos numa guerra de pesadelo que está em andamento – sobreviveu quando o seu ônibus foi atingido. Aquele ataque foi executado por forças sauditas para quem os EUA vende armas infinitamente. Eis como esta menina respondeu sobre a sua experiência: “Meu pai diz que ele me comprará brinquedos e me dará uma nova mochila para a escola. Eu odeio mochilas de escola. Não quero chegar nem perto de um ônibus. Eu odeio a escola e não consigo dormir. Nos meus sonhos, eu vejo os meus amigos me implorando para socorrê-los. Então, de agora em diante, eu ficarei em casa.”

Este é um sofrimento que os números não conseguem capturar, porém ele deve nos lembrar que a guerra é uma forma de terrorismo.

Quem são os culpados?

A nossa ignorância sobre os custos da guerra é cultural e sistêmica. O Projeto Custos da Guerra foi iniciado exatamente porque, à medida que a guerra contra o terror se espalhava, alguns de nós nos conscientizamos cada vez mais o quão difícil era encontrar registros honestos e completos da guerra e o que ela faz às pessoas e às comunidades. Os nossos militares [estadunidenses] certamente não se comprovaram como sendo ansiosos para documentar as vítimas civis de uma maneira confiável ou consistente. Na verdade, o que o Pentágono sabe sobre elas muito frequentemente foi ativamente suprimido. As investigações do The New York Times sobre as guerras aéreas dos EUA no Oriente Médio, por exemplo, revelaram que somente um punhado daquelas centenas de casos nos quais civis foram vitimados sequer vieram à público.Na verdade, os membros das forças armadas dos EUA foram intimidados, de modo que não viessem à  público para falar sobre o que eles tinham visto ou feito. Por exemplo, em 2010, quando um grupo de soldados de infantaria dos EUA alvejaram a tiros um adolescente afegão que estava sozinho e desarmado na fazena da sua família (além de matarem outros dois civis afegãos desarmados), os militares barraram aqueles que alegadamente cometeram os assassinatos de dar entrevistas. Quando aqueles homens foram efetivamente indiciados (algo por sí só inusitado), um deles declarou durante um interrogatório que ele havia sido ameaçado de morte caso se recusasse a participar de um assassinato. O exército o colocou, então, em confinamento solitário, supostamente para garantir a sua segurança. (O pai deste último soldado alertou o exército sobre estes assassinatos logo após estes terem ocorrido, mas aquele serviço militar não interviu até meses depois.)

Apesar da impunidade e falta de responsabilização serem desenfreadas na guerra, os julgamentos de crimes de guerra – como os de Nuremberg depois da Segunda Guerra Mundial, ou o recente primeiro julgamento em Kiev de um soldado russo capturado que havia cometido atos de horror – também são muito raros. E mesmo quando eles condenam criminosos de guerra específicos, eles raramente condenam a própria guerra.

Eu só tenho a esperança, à medida que as crianças na minha família e na minha comunidade crescem, que eles conseguirão entender que crimes de guerra não são só um subproduto da imprudência, mas são uma decisão toda-muito-humana de “resolver” problemas através de conflitos armados, ao invés de se usar uma gama de alternativas que estão ao nosso dispor. Eu também espero que cada vez mais de nós aceitemos como é importante ensinar as gerações mais jovens sobre os horríveis sofrimentos de civis que passam por uma guerra.

Aqui está a verdade disto: caso nos falte empatia por aqueles que sofrem nas nossas guerras, nós colocamos em perigo o futuro da humanidade. As crianças que fazem perguntas pontiagudas e gráficas, ou quando elas se despertam de pesadelos estimulados por brincar com o videojogo Call of Duty são mais saudáveis do que os pais que agradecem aos soldados pelos seus serviços ou que celebram os feriados ucranianos. Comprar bandeiras ucranianas não é um substitutivo para tentar investigar o pesadelo que realmente está em andamento naquele conflito. Nós deveríamos apoiar organizações que protejam jornalistas locais. Ao invés de comprar armas para nós mesmos, ou de votar por legisladores que tendem a enviar as nossas tropas ao mundo inteiro para lutar contra o “terror” (e, obviamente, para causar terror), nós deveríamos enviar dinheiro para organizações que documentam as vítimas de guerra, ou as agências humanitárias que ajudam refugiados, pessoas deslocadas dos seus lugares de moradia e sobreviventes de violências.

E, acima de tudo, já é chegada a hora de nos perguntarmos quais são as histórias que nós estivemos perdendo durante todos estes anos em que as nossas forças militares estiveram lutando no exterior. Neste mundo, os verdadeiros custos da guerra deveriam estar infindavelmente nas nossas mentes.

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Copyright 2022 Andrea Mazzarino

 

(*) Andrea Mazzarino, articulista regular do www.TomDispatch.com, é cofundadora do 'Costs of War Project'. Ela ocupou vários postos clínicos, de pesquisa e de advocacia de direitos civis, incluindo trabalhos numa Clínica de Pacientes Externos com Síndrome Pós-traumática da Administração de Veteranos de Guerra dos EUA, no Human Rights Watch e numa agência comunitária de saúde mental. Ela é coeditora do livro 'War and Health: The Medical Consequences of the Wars in Iraq and Afghanistan'.

LinkedIn: https://www.linkedin.com/in/amazzarino/ 

Brown University: https://watson.brown.edu/costsofwar/people/contributors/andrea-mazzarino 

Twitter:  https://twitter.com/mazzarino_a 

Wikiquote: https://en.wikiquote.org/wiki/Costs_of_War_Project

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