Brasil desfruta de ótima imagem no exterior, mas relações internacionais estão em grave crise, avalia Jamil Chade
Governos têm construído mais muros e boa parte da população vive sob medo e desconfiança em relação a povos diferentes, diz o jornalista em entrevista para o 247
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Por Ana Maria Oliveira, especial para o Brasil 247 - O Brasil angariou um grande prestígio junto a outros países por suas iniciativas em dialogar com o mundo exterior. Já as relações internacionais estão passando por uma crise grave, com efeitos inesperados. Além da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, nos últimos anos a democracia na Europa e em outros continentes sofreu retrocessos. Governos têm construído mais muros e boa parte da população vive sob medo e desconfiança em relação a povos diferentes.
Esta avaliação é feita pelo correspondente internacional Jamil Chade, que participou do Festival Literário na cidade mineira de Araxá (Fli-Araxá), entre 5 e 9 de julho. Jamil tem uma experiência de 30 anos no exterior e reside em Bruxelas, na Suíça. Já publicou sete livros. Uma de suas características marcantes é fazer uma “ponte” frutífera entre os acontecimentos no Brasil e no exterior. É colunista de veículos brasileiros e conhece, como poucos, a realidade das organizações internacionais.
O festival, para o qual foram convidados palestrantes do país e exterior, reuniu alunos e professores de escolas de Araxá, moradores interessados em literatura e turistas. O tema desta 11ª edição foi Educação, Literatura e Patrimônio.
Imagem positiva
De janeiro até o momento, o Brasil tem recebido uma avaliação muito positiva da comunidade internacional. “O presidente Luiz Inácio Lula da Silva é considerado um líder de muita coragem e demonstra uma vontade de mudar a realidade”, atesta Jamil .
Mas há, segundo ele, um tema em que os dirigentes europeus discordam do governo brasileiro: é inadmissível que o país não apoie a Ucrânia na guerra contra a Rússia. “Existe uma certa desilusão com o Brasil no momento em que o debate na Europa está muito polarizado”, afirma Jamil. Ele lembra ainda que, em diversos países africanos, Lula é considerado “um herói porque coloca, no centro do debate mundial, os problemas das injustiças sociais e da fome”.
“O Brasil também deu uma lição de resistência e exemplo do bom funcionamento de suas instituições democráticas no combate à tentativa de golpe em 8 de janeiro. Havia muito medo de que o país entrasse em colapso. A resistência das instituições gerou um grande alívio no exterior”, destaca Jamil.
A proposta do governo brasileiro em favor de ampla reforma nas organizações internacionais tem encontrado eco e não é discurso vazio, como alguns setores tanto no Brasil como em outros países tentam alegar. “Há outros governos que também querem mudanças, como a Índia, a Alemanha e o Japão. “O problema não é a reforma, mas a falta de um acordo sobre como deve ser essa reforma”.
Segundo Jamil, existem vários impasses. “A China apoia uma mudança desde que o Japão não entre para o Conselho de Segurança. A Rússia não quer a inclusão de nenhum país europeu”. Mas, enquanto a guerra entre a Rússia e a Ucrânia persistir, não deve haver espaço para essas negociações.
Mesmo sem as mudanças tão almejadas, as organizações internacionais exercem um papel importante. “Sem elas, o mundo estaria pior. Hoje, 77 milhões de pessoas sobrevivem dos alimentos distribuídos pelas organizações internacionais. Além disso – destaca Jamil – as OIs são balizadoras dos limites colocados pelo Direito Internacional. Outro exemplo de sua importância ficou evidenciado pela atuação da Organização Mundial da Saúde (OMS) durante a pandemia. Ela também faz trabalhos durante o ano em casos de endemias de malária e outras doenças, pois mantém uma estratégia de combate”.
Muros e barreiras
A sociedade mundial convive com grandes contradições. Enquanto boa parte das pessoas acredita na existência de “um mundo único”, que está em conexão total, nos últimos 20 anos foram construídos mais muros do que se pode acreditar. Citando estudos atuais, Jamil lembra que “há 26 mil quilômetros de muros nos diferentes continentes. A conexão, portanto, não vale para todo mundo, nem a mobilidade de ir e vir”.
À medida que os muros se proliferam, a democracia sofre duras perdas. “O muro é a institucionalização física da intolerância em relação a alguns povos e etnias. Ele fortalece o sentimento da intolerância. Há apenas uma impressão de segurança. Parte da população sente medo e se recusa a conviver com o diferente”, adverte Jamil Chade.
O estado das democracias no mundo também não é auspicioso. Segundo Jamil, um recente Mapa realizado pela Universidade de Estocolmo, na Suécia, mostrou que 72% da população mundial vivem em países de regime autocrático. Somente 13% são governados por democracias plenas. O mapa revelou, também, que a existência de regimes democráticos no mundo caiu a níveis de 1986.
Esse quadro não exime a situação entre os países europeus. Jamil cita o exemplo da Hungria, governada pelo primeiro-ministro de extrema-direita, Viktor Orbán. “Nas ultimas eleições, a oposição se uniu em torno de um candidato único e, ainda assim, não conseguiu chegar ao poder. Os partidos estão cientes de que precisarão trabalhar muito para reverter o quadro. Na Hungria, prevalece a censura à imprensa e o controle do Poder Judiciário, entre outros problemas.
O poder das Cartas
Desde os séculos remotos, as cartas representam uma forma singular de texto e são capazes de exercer grande influência em quem as lê e em quem as escreve. Essa influência pode consistir tanto em aceitação das ideias expostas, como em sua rejeição. De qualquer maneira, não deixam ninguém impune.
Foi pensando nisso que Jamil Chade começou a escrever cartas públicas para autoridades brasileiras e a sociedade em geral. “Na carta, eu tenho maior liberdade do que na reportagem. Sou eu quem as assina. Posso repassar as minhas angústias e alegrias”, comenta.
Com a vontade de participar ativamente dos acontecimentos no Brasil e tentar influenciar os rumos da opinião pública, Jamil tem mandado mensagens assinadas a diversas autoridades e personalidades através da imprensa e de seus próprios contatos. Já escreveu ao presidente Lula, ao deputado Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, e à sociedade em geral. Ele aponta as vantagens: “A gente registra o que está acontecendo. E as próximas gerações vão ter um relato disso”.
Na carta enviada ao presidente Lula, Jamil sugeriu que, em seus discursos, o presidente aborde mais os desafios de se viver em um país mais democrático ou não. “Ele precisa falar no estado da democracia na Venezuela, El Salvador, pois este tema é fundamental e precisa continuar sendo discutido”.
Além de mandar as cartas para meios de comunicação, ele as encaminha diretamente às autoridades, por contato pessoal, assessores dessas ou diretamente pelo e-mail. “Não estou sendo parcial mas sempre ao lado da democracia e dos direitos humanos, princípios dos quais não vou abrir mão”. Preocupado com os rumos do país e visando participar da vida nacional, Jamil conclui: “Não consigo ser apenas o profissional e desvincular meu trabalho da cidadania”.
Carta aos intolerantes: seus muros só refletem seus medos
por Jamil Chade (UOL, 08/07/2023)
Senhores,
Nunca estivemos tão conectados como hoje. Nunca foi tão barato falar com o amor de sua vida, que vive do outro lado das montanhas. Nunca foi tão fácil e, ao mesmo tempo, superficial viajar.
Mas escrevo essa carta com uma constatação: nunca construímos tantos muros como nos últimos 20 anos. Ao final da Segunda Guerra Mundial, existiam sete muros em fronteiras nacionais. Ao final da Guerra Fria, em 1989, existiam 15. Em 2019, existiam 77 muros.
Desde 2000, construímos mais quilômetros de muros que em qualquer outro momento da história. Foram 26 mil km.[...]
Num momento marcado pelas incertezas, dúvidas, guerras, pandemias, desinformação e transformações tecnológicas, o muro cumpre a mitologia de uma suposta estabilidade [...]
Muros revelam o estado psíquico de uma sociedade. Se oficialmente são erguidos contra bárbaros, imigrantes, terroristas, drogas e armas, o que eu reparei é que são, acima de tudo, construídos contra o medo, contra ansiedades e contra o diferente.
O objeto central dos muros não está fora deles. Está dentro. É ali que parece estar a sombra.De um lado, eles escondem quem está supostamente protegido por suas pedras.
Mas, quanto mais alto, mais eles desnudam e mostram, naquelas sombras, os medos mais secretos daquela sociedade. O muro é, essencialmente, um reconhecimento das nossas vulnerabilidades, incoerências e injustiças.
Existem muitos motivos para se construir um muro. Há muros para impedir a entrada de seres humanos em busca de liberdade. Outros, para não deixar que a população daquele local saiba que existe liberdade fora.
Existem ainda, entre nós, os muros erguidos contra determinados grupos da sociedade, mesmo quando eles são maioria. Existem ainda os muros contra aqueles que buscam apenas um porto seguro para sobreviver ou ter o direito de sonhar.
Seja qual for seu objetivo, todos eles são feitos do mesmo cimento: a legitimação institucional da diferença. A sombra que produzem é feita da mesma escuridão: a intolerância [...]
Parece que quanto maior o muro, mais robusto ou mais impenetrável, maior a coragem daqueles que se propõem derrubá-lo.Não nos faltará essa coragem.
Saudações democráticas
Crédito das fotos: Drigo Diniz
Legenda: Jamil Chade debate com a escritora Juliana Monteiro
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