Aplaudido por capitalistas, Gorbachev foi coveiro do socialismo soviético

Secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, 'Gorby' foi o principal responsável pela dissolução da primeira experiência socialista

Mikhail Gorbachev
Mikhail Gorbachev (Foto: Jeff Haynes - Reuters)


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Por Breno Altman, do Opera Mundi -  Morreu na terça-feira, 30 de agosto, aos 91 anos, o líder em cujas mãos desapareceu a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, ou simplesmente União Soviética, o primeiro Estado socialista da história, fundado depois do triunfo da Revolução Russa de 1917.

Gorbachev foi secretário-geral do Partido Comunista desde 1985 e presidente do país a partir de 1988, ocupando ambos cargos até 1991. 

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Nascido em Privolnoye, na província de Stávropol, no Cáucaso Norte, ao sudoeste da Rússia, em 2 de março de 1931, sua família era de origem camponesa. Durante sua juventude, enquanto seu pai combatia no Exército Vermelho contra os nazistas, o jovem Gorbachev operava colheitadeiras em uma fazenda coletiva.

Depois de completar o curso primário em sua própria aldeia, cumpriu o ensino secundário em Krasnogvardeisk, onde se filiaria ao Komsomol, a organização juvenil do Partido Comunista.

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Aos 19 anos, em 1950, foi estudar Direito na Universidade Estatal de Moscou, onde conheceria e se casaria com Raíssa Titarenko, sua companheira desde 1953 até falecer, em 1999, vítima de leucemia.

Depois de formado, em 1955, retornaria a Stavropol. No ano seguinte, seria nomeado primeiro secretário do Komsomol de sua região. 

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Com Raíssa, Gorbachev faria parte de uma geração de jovens que daria apoio às reformas implementadas por Nikita Kruchev depois da morte de Josef Stalin, em 1953. Essas mudanças tinham, ao menos no início, três supostos objetivos internos: aumentar a produção dos bens de consumo; ampliar a produtividade agrícola; restaurar a democracia soviética. 

O longo período da liderança de Stalin, entre 1924 e 1953, fora marcado por conquistas impressionantes. A União Soviética tinha saído da era do arado e chegado à época atômica, como afirmou Isaac Deutcher, um historiador de formação trotskista.

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O país se industrializara aceleradamente, fora capaz de oferecer à sua classe trabalhadora um salto gigantesco nas condições de educação e saúde, derrotara o nazismo nos campos de batalha, impulsionara decididamente a emergência de um campo socialista mundial e se tornara militarmente invulnerável.

Mas os custos tinham sido formidáveis. O esforço industrial acabou concentrado quase exclusivamente em infraestrutura e defesa, a partir de um duplo movimento de transferência do campo para a cidade: a coletivização forçada da agricultura, colocando toda a renda agrária nas mãos do Estado para financiar a industrialização; e a migração acelerada dos camponeses para as fábricas, fazendo da extensão do número de trabalhadores uma força produtiva fundamental. 

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Essa via de desenvolvimento, implementada em um período de quinze anos até que as tropas alemãs atacassem a União Soviética, sem paralelo na história humana tanto pela radicalidade quanto pela velocidade, por outro lado trouxe enormes danos ao regime democrático prometido pela revolução. As contradições internas se aguçaram e se tornaram muitas vezes violentas, a preocupação com a segurança do Estado transformou-se em paranoia e a verticalização de comando atingiu paulatinamente padrões tirânicos. 

Após a II Guerra Mundial, o modelo permanecia praticamente o mesmo e tornou possível a impressionante reconstrução do mais devastado de todos os países pela barbárie hitlerista em menos de uma década, praticamente sem quaisquer recursos internacionais.

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A economia planificada, com todos os meios de produção, distribuição e crédito nas mãos do Estado, permitia uma alocação extremamente produtiva de recursos para a realização de grandes obras, a extração e o processamento de matérias primas, o avanço na indústria de equipamentos e a consolidação do complexo militar-espacial, além do desenvolvimento de uma formidável rede de pesquisa e desenvolvimento atrelada às universidades e outros centros de investigação. 

Mas não se mostrou a mesma eficácia, dentro do modelo então existente, para o setor dos bens de consumo e para a agricultura. Às vistas do momento em que poderia ultrapassar os Estados Unidos na fabricação de aço e ocupando a dianteira na disputa pelo espaço sideral, a União Soviética era incapaz de oferecer à sua população os modernos equipamentos domésticos disponíveis nos países imperialistas, a variedade de produtos têxteis e de cosméticos ou a fartura de alimentos disponibilizados pela agricultura de seu principal rival. Claro que essas mercadorias somente eram acessíveis, nos países capitalistas, a quem pudesse pagar por elas, o que incluía parte da classe trabalhadora, mas sua escassez no primeiro Estado socialista era uma debilidade estrutural. Afetava não apenas o nível de vida das massas como também a própria capacidade da economia manter altas taxas de crescimento. 

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Kruchev, nessas circunstâncias, anteciparia, em alguma medida, o que fariam os chineses quase quarenta anos depois, acompanhando as medidas econômicas de distensão na vida política interna. Incentiva as cooperativas no lugar das fazendas estatais e concede certa liberdade de comércio aos camponeses, reforça a indústria dos bens de consumo, introduz prêmios em dinheiro por desempenho no trabalho, cria grandes conglomerados transversais de produção e aumenta o poder dos diretores de empresas, entre outras políticas.

Sua lógica de empoderamento dos quadros executivos da indústria, no entanto, desorganizaria a economia planificada e o próprio aparato produtivo,  provocando a reação da burocracia e sua própria derrubada, em 1964, facilitada também por um desempenho insatisfatório da agricultura e por sua demasiada flexibilidade no trato com os Estados Unidos. Também seria responsável, graças a condutas erráticas na luta interna, em implodir o legado político-ideológico do período anterior, estimulando um espírito cada vez mais individualista e consumista na população soviética. 

De todo jeito, Gorbachev formaria suas convicções mais arraigadas nos onze anos de governo Kruchev. Identificava a si mesmo como um “filho do XX Congresso”, o encontro da máxima instância dos comunistas soviéticos, em 1956, que entraria para a história pelo informe lido pelo secretário-geral, acusando Stalin de crimes brutais e erros primários.

Durante 22 anos, até 1977, permaneceria em Stavropol, a partir de 1970 como o principal dirigente do Partido Comunista na região. Com pós-graduação em agronomia, conduziria experiências bem-sucedidas na agricultura local, combinando concessão de lotes para exploração privada e pagamento de bônus por produtividade, embora esbarrando em limites que vinham desde a desorganização promovida na era Kruchev: a liberação agrícola não seria acompanhada pelo crescimento da indústria de máquinas e fertilizantes, por novas regras mercantis ou pela adequação do sistema de crédito.

Gorbachev era um adversário dos quadros ligados a Leonid Brejnev, o sucessor de Kruchev, e isso o faria se aproximar, em um primeiro momento, da fração mais próxima das concepções vigentes até 1953, encarnada pelo diretor do KGB, Yuri Andropov, e o chefe do departamento ideológico, Mikhail Suslov. O que os unia era principalmente a luta contra a corrupção e os privilégios, ervas daninhas disseminadas durante a era brejnevista, marcada pela proteção à burocracia do Estado e do partido. 

Habilidoso, combinava essa amizade com a velha guarda, que o Ocidente insistia em qualificar como “stalinista”, e a proximidade com o primeiro-ministro Alexei Kosygin, que buscava desenvolver reformas econômicas inspiradas pela NEP, a Nova Política Econômica implantada por Lênin a partir de 1921 e continuada por Stálin até 1929. 

Eleito para o comitê central do Partido Comunista em 1971, retornaria a Moscou em 1978, para assumir o departamento de assuntos agrícolas no secretariado dessa instância dirigente. Seria eleito, em 1980, sempre sob o patrocínio de Andropov, membro titular do politburo, o organismo de comando real do partido.

Com a morte de Brejnev, em novembro de 1982, o chefe do serviço de inteligência seria eleito para a secretaria-geral, levando à nomeação de Gorbachev para encarregado do departamento ideológico – na prática, o número 2 da direção comunista. Suslov, o antigo ocupante da pasta, faleceu em janeiro daquele mesmo ano.

Mas Andropov, de saúde frágil, viria a morrer em fevereiro de 1984, aos 69 anos, quando apenas iniciava sua campanha contra a corrupção e pelo fortalecimento do poder operário nas empresas capturadas por dirigentes apodrecidos. Com seu falecimento, o pêndulo giraria novamente em favor do grupo brejnevista. Konstantin Chernenko seria o novo secretário-geral, mas duraria pouco mais de doze meses no cargo, falecendo em março de 1985, aos 72 anos, vítima de enfisema pulmonar.

A nova disputa sucessória, decidida em 10 de março de 1985, levaria Mikhail Sergueievitch Gorbachev, de 54 anos, ao posto de comandante máximo dos comunistas soviéticos e, de fato, também do governo e do Estado.

O novo secretário-geral viria a consolidar seu poder nos meses seguintes à sua nomeação, conquistando maioria no politburo e no comitê central favorável às reformas que propunha.

Essas reformas, tornadas públicas no ano seguinte à sua eleição, retomavam paradigmas de Kruchev e se dividiam em dois conceitos: perestrojka, reconstrução econômica, e glasnost, abertura política.

O plano de Gorbachev basicamente ampliava a autonomia das empresas diante do plano central e dava mais poderes a seus diretores, além de retomar a consolidação de conglomerados que organizassem cada setor de atividades. A ideia era induzir ao crescimento da produtividade a partir de mecanismos gerenciais de simulação dos sistemas mercantis. Por exemplo, as boas empresas passaram a ser premiadas com liberdade de investimento e bônus para seus diretores, enquanto as companhias deficitárias deixavam de ser socorridas por verbas orçamentárias e poderiam até mesmo ir à falência.

Regras nessa direção, aplicadas de uma só vez em toda a economia, implodiram aceleradamente o sistema de planificação e diversas cadeias produtivas, empurrando o país para uma combinação de fenômenos destrutivos: desequilíbrio entre oferta e demanda de bens industriais e insumos, escassez de mercadorias ao consumidor, mercado paralelo e inflação clandestina.

Os chineses, na década seguinte, tomariam o cuidado de implementar um novo modelo a partir de algumas regiões experimentais, somente substituindo o velho modelo, mesmo nessas regiões, quando as novas condições já adquiriam um grau razoável de maturação.

Para piorar o cenário, a União Soviética, ao contrário da China pré-reformas, era uma potência industrial, a segunda economia do mundo, não uma nação marcada por desertos produtivos.

O caminho de Gorbachev levou a uma desorganização ainda mais alarmante que a da era Kruchev, gerando desgastes crescentes junto às classes trabalhadoras, ao mesmo tempo em que açulava o apetite privatista de uma poderosa burocracia de executivos empresariais, cada vez mais antagônica ao sistema socialista, do qual queriam se libertar para se juntar à livre acumulação capitalista.

Não bastasse os atropelos econômicos, Gorbachev ao mesmo tempo foi enfraquecendo o Estado e o partido, concedendo maior influência e liberdade aos altos burocratas, que passavam a ter instrumentos para propagar sua narrativa sobre a crise soviética, a história do país e a alternativa de desenvolvimento capitalista.

Medidas pró-mercado, a exemplo da NEP de Lênin ou das reformas de Deng Xiaoping, tendencialmente conduzem ao ressurgimento de capitalistas, na cidade e no campo, e à radicalização da luta de classes. Nessas circunstâncias, é absolutamente temerário o enfraquecimento do sistema político construído pelo processo revolucionário, sob o risco da nova burguesia ser capaz de tomar o poder de Estado e transformar um processo de reforma do socialismo em restauração capitalista.

Não há provas razoáveis para que possamos afirmar ter sido a intenção de Gorbachev, ao menos até os meses finais de seu governo, impulsionar uma contrarrevolução burguesa. Mas é fato que suas reformas levaram objetivamente a essa situação, ao desorganizar a economia socialista, recriar uma casta social favorável ao capitalismo e abrir caminho para sua hegemonia.

As medidas de Gorbachev pioraram terrivelmente a vida e a renda das classes trabalhadoras, tanto pela implosão da economia quanto pela liberdade para a burocracia gerencial desviar para seus bolsos a mais-valia social, antes apropriada pelo Estado e convertida em benefícios materiais ou imateriais para todo o povo.

A queda nas condições de vida das grandes massas erodiu o consenso em defesa do socialismo e forneceu apoio às ideias restauradoras, que ganharam corpo dentro do próprio Partido Comunista, representadas principalmente por Bóris Yeltsin.

O aprofundamento da crise também foi minando a federação soviética e incentivando os movimentos de secessão nacional em várias das repúblicas, corroendo um dos principais fundamentos do Estado criado sob a liderança de Lênin.

Por fim, além da degeneração provocada pela perestrojka e a glasnost, Gorbachev marchou rumo à capitulação diante do sistema imperialista liderado pelos Estados Unidos, tentando a todo custo, nem que esse custo fosse a liquidação da revolução de outubro, reduzir os encargos orçamentários com a corrida armamentista e atrair capitais internacionais para uma economia em colapso.

Aliás, ao contrário do que poderíamos pensar, jamais antes de Gorbachev a União Soviética conheceu qualquer período recessivo, ainda que as taxas médias anuais de crescimento viessem caindo: 5,7% entre 1950-59; 5,2% entre 1960-69; 3,7% entre 1970-75; 2,8% entre 1976-79; 2,0% entre 1980-85.

Claro que havia problemas estruturais, o próprio decréscimo acentuado após os anos 60 assim o demonstra, mas as medidas de Gorbachev, em muitos aspectos, fabricaram uma crise ao desmontar os pilares do modelo existente desde os anos 30.

Além de secretário-geral do Partido Comunista, desde 1988 Gorbachev também era o presidente da União Soviética. Se nos primeiros tempos fizera uma aliança com a ala pró-restauração liderada por Yeltsin, para isolar quem se opunha às reformas, depois se viu refém dos liberais, beneficiados pela catástrofe econômica, o fortalecimento da casta empresarial e a cumplicidade com os Estados imperialistas. 

O país estava virtualmente arruinado quando, em agosto de 1991, uma fração contrária à política de Gorbachev tentou um golpe de Estado, prendendo o presidente e buscando assumir o poder. Minoritária nas instituições e sem base social, esse grupo foi rapidamente controlado, em uma reação chefiada por Yeltsin, que libertaria um Gorbachev rendido e alquebrado.

Nos quatro meses seguintes, o Partido Comunista seria dissolvido e várias das repúblicas soviéticas declarariam sua independência, incluindo a própria Rússia, selando o destino do primeiro Estado socialista.

A bandeira com a foice e o martelo deixou de estar hasteada no dia 25 de dezembro de 1991, a mesma data da renúncia de Gorbachev à Presidência da União Soviética.

Depois de sua queda, foi claramente assumindo uma posição anticomunista e se tornando um bibelô da imprensa ocidental, um xodó da burguesia mundial. Tendo sido agraciado pelo Prêmio Nobel da Paz em 1990, um reconhecimento devido à sua colaboração para dinamitar o sistema soviético, nos anos seguintes viraria até garoto propaganda de empresas como a Louis Vitton, lendária fabricante de bolsas e outros artefatos de alto luxo.

Transformado internamente em um trapo político, ainda tentaria retornar ao governo, mas seria massacrado em eleições ocorridas nos anos 90.

Ao morrer, seu papel histórico está sendo aplaudido pelos defensores e simpatizantes do capitalismo mundo afora. Aos socialistas de todos os matizes só cabe lembrar Mikhail Gorbachev pelo mais vergonhoso estelionato político-ideológico registrado pela história: eleito para reformar o socialismo soviético, tornou-se vergonhosamente seu coveiro.

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