Uma francesa bate à porta

Em meio a tanto jeitinho, tanta miséria, tanto mar, por onde começar a apresentar um novo mundo, o Novo Mundo?



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Uma francesa bate à porta. Não trouxe espelhos, não me trouxe medo sob a lança da espada, um queijo Mont D'or, O Contrato Social, algum cheiro peculiar, o andar da Amélie Poulain, qualquer resquício de tinta acrílica ou a pedância tão supostamente típica. Não era uma deusa ou monstro de além-mar. Nada, nada disso. Apenas mochilão e visto na mão, acompanhada de minha amiga, que mora cá comigo, também francesa, mas brasileira há alguns anos – talvez, esta tenha um pouquinho mais da França esperada. A menina veio de intercâmbio e minha amiga, mediando a situação, convidou que ficasse alguns dias por aqui no apartamento até que encontrasse lugar pra ficar. Então, era só eu cumprimentar à carioca, com um beijinho de cada lado, e bem-vinda ao Brasil!

Mas ela nem tinha tanta cara de francesa. Poderia passar como brasileira, se não fossem os contínuos biquinhos e fonemas arranhados de lá de dentro da traqueia. E eu, junto à minha Julya e Cristiano, deparado com tamanha particularidade francesa, quis saber o que marca a peculiaridade do nosso falar, resposta que só o distanciamento dela com nossa língua seria capaz de evidenciar. Ela disse: junto à cadência cantada, o chiado e uma risada – esta última nada tinha a ver com nosso jeitinho, foi apenas a falta de jeito dela ao responder a pergunta inesperada. Só que as linguagens delimitam os mundos. Existem vários Brasis dentro do Brasil e essa avaliação se referia especificamente aos cariocas, diferença que ela entendeu facilmente ao [tentar] papear com uma vizinha natalense. Todo nosso diálogo por meio de balbucios dela em português, nossas articulações exageradas para facilitar a leitura labial, alguma expressão ou outra que brotava do espanhol, minha apelação para o inglês – que ela não rejeitou em momento algum, como conta-se ser tradicional pr'os lados de lá – e, enfim, o cansaço da menina que resultava em tornar à língua materna com sua conterrânea.

Em meio a tanto jeitinho, tanta miséria, tanto mar, por onde começar a apresentar um novo mundo, o Novo Mundo? Ela, então, providenciou o que primeiro lhe vinha na cabeça sobre o Brasil. Não foi Pelé, bundas ou caipirinhas. O que mais poderia superar o problema da Babel que a língua dos anjos, a arte universal, sem a qual a vida seria um equívoco? Fez música para nossos ouvidos. Cantarolou meio desengonçada: “Nanananã... posso falar”. E pelo ritmo, deu pra matar a xarada: Seu Jorge, quase homônimo do santo, surgiu para religar a Pangéia por instantes.

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Dali em diante, pelo fim de semana, junto à procura de um ninho para que a passarinha (já quase canarinha) pudesse voar segura, abrimos seus ouvidos para desde a Bossa até a Tropicália, a boca para o feijão-com-arroz, os olhos para perigos casuais tanto quanto para as belezas naturais e a cabeça para preconceitos, estigmas e tudo mais que cabe nos eticétera e tais.

Quando perguntou se eu e meus amigos somos brasileiros, talvez tenha sido por estranhar todos sermos muito mais alvos que ela. Porquanto teve medo de sair pelas ruas de Niterói com relógio e relicário à mostra, já que parecíamos não nos importar. Ao passo que o Brasil constrói a imagem de país do futuro quando o futuro já quase se faz presente, ele não se despede das bananas arremessadas em seus jogadores nos estádios, chamados de macaquitos. Se a francesa não trouxe a segregação racial na bagagem, veio ao menos com o preconceito inocente e desproposital de achar que pegaria tão logo uma doença. Como em alerta, seus olhos esbugalhados, antes mesmo que ela viesse a falar, perguntavam se poderia usar a água do banheiro para escovar os dentes com segurança. Não o fez por mal, mas por desinformação. Isso porque o gigante pela própria natureza ainda é marginalizado, pormenorizado na Zoropa. Somos gente fina, mas primitivos na escala evolutiva comparada. Ainda somos considerados os bons selvagens. Ela não disse nada parecido, nem presumo que pense algo do tipo – ao contrário, não veio com olhar soberbo -, mas é evidente que certos receios dela vieram da herança nociva de europeus e americanos se enxergarem enquanto os civilizados que trazem conhecimento.

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Há de se combater essa perspectiva distanciada pra lá e pra cá. Tanto o ufanismo que trata o gringo como pior, quanto a visão insistidamente vira-lata de que o tal gringo virá como rei-estrangeiro a ser coroado. Em termos culturais, o dito popular, subjugado por nós mesmos, é suficiente para explicar: nem melhor nem pior, apenas diferentes. Mas, é claro, se estipularmos metas políticas, podemos fazer comparações. É tapar o sol com a peneira fingir que alguns problemas sociais aqui não urgem. Andar com a menina pela rua não apenas trouxe uma felicidade peculiar quando ela se deparou com a areia fininha da praia próxima ao Centro, como deu a sensação, ao ver tanto asfalto esburacado, tanta gente cumprindo pena de vida, de receber visita e ter que dizer: “Não liga pra bagunça”. Evidente que não podemos nos importar com a Favela apenas em época de Copa, porque é coisa pra inglês ver, mas o cotidiano é companheiro da tão inadmissível quanto recorrente naturalização.

O curioso, my friends, é que a aldeia global na qual vivemos nos faz muito mais parecidos do que concebemos. Seja nos tristes trópicos ou com a pontualidade britânica, o racismo não é mal exclusivo nosso, tampouco os estrangeirismos incorporados à cultura local, crises econômicas, imigrações recentes para serviços braçais e, sobretudo, as repressões governamentais aos movimentos sociais que pipocam de tal maneira pelo mundo que a vitória democrática, o fim da História de Fukuyama, se demonstra cada vez mais patético. Esse mundo tão desigual, onde a globalização não serve a todos, pois não é recíproca, faz-se inusitado ao perceber que a francesa conhecia uma série de brasilidades que jamais ouvi falar e vice-versa – provavelmente, muito mais vice-versa. Por mais que haja estruturas e fenômenos comuns a um povo, cada indivíduo é do tamanho de um universo.

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Ontem, ela levou as malas. Conversamos mais sobre palavras e diferenças do que propriamente concepções e ideologias. Paradoxalmente, não há palavras, em língua alguma, capaz de descrever exatamente a inefável sensação que Maëlys deixou por aqui – engraçado, até agora, não sei se pronuncio o nome dela direito. Pensando nisso, mostrei a ela uns versos de Ferreira Gullar, O poeta, onde ele diz: “O que o poeta quer dizer no discurso não cabe, e se o diz é pra saber o que ainda não sabe”. E é isso, exatamente isso, o problema transcende a linguagem, pois não há como traduzir na lógica do ouvido o que é apenas sentimento. Por mais que ela não tenha trazido espelhos, olhando-a era impossível não enxergar algo presente – mas não-identificável – em mim. Ao me despedir, com os olhos timidamente marejados, disse que ficaria com saudade. Por ela não entender, tive de explicar que trata-se de quando sentimos falta de alguém. Mas, Maëlys, é melhor eu me corrigir: saudade é quando o outro mora dentro da gente. Dados os dois beijinhos, como se faz aqui no Rio e em Lyon, agora sim posso dizer: bem-vinda ao Brasil!

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