Um comunismo democrático é possível?

Resenha de “A invenção da democracia como valor universal: Enrico Berlinguer e o comunismo democrático italiano (1972-1984)”, de Marco Mondaini

Comunista italiano Enrico Berlinguer
Comunista italiano Enrico Berlinguer (Foto: Divulgação)


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Por Marcelo Pedroso Goulart - Instituto Brasileiro de Estudos e Pesquisas
em Ministério Público, Direito e Democracia

No centenário do político comunista italiano Enrico Berlinguer, o historiador brasileiro Marco Mondaini nos brinda com o lançamento, em livro, de sua exitosa tese para professor titular do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco intitulada A invenção da democracia como valor universal: Enrico Berlinguer e o Comunismo Democrático Italiano (1972-1984).O autor insere a obra no complexo campo da História das Ideias Políticas, ou seja, na interseção dos campos históricos cultural e político com a teoria política. Foca, em primeiro plano, as ideias desenvolvidas por Berlinguer em documentos partidários, discursos e artigos no período em que esteve à frente da Secretaria-Geral do Partido Comunista Italiano (1972-1984), ideias das quais emergiu um conjunto de categorias que orientou, nesse tempo, a ação do partido. Essas ideias são representativas da evolução teórico-prática da tradição do comunismo italiano – o Comunismo Democrático Italiano, na correta categorização do autor –, que tem como “pai fundador” Antonio Gramsci, especialmente o Gramsci dos Cadernos do Cárcere, e que segue com Palmiro Togliatti (desde seu retorno para a Itália, em 1944, até sua morte, sempre na condição de Secretário-Geral do PCI) e Luigi Longo (Secretário-Geral do PCI de 1964 a 1972). As ideias e práticas políticas do período Gramsci-Togliatti-Longo, que antecedeu a Secretaria-Geral de Berlinguer, também são analisadas com rigor, ainda que em plano de fundo. Mas não é só: o autor sustenta que, apesar das mudanças ocorridas nos contextos político, econômico e cultural das últimas quatro décadas e da sua não afirmação como força política duradoura na experiência italiana do século XX, o Comunismo Democrático Italiano e o pensamento político de Berlinguer devem ser considerados pela esquerda contemporânea como referências necessárias para as práticas políticas de resistência aos ataques realizados contra a democracia pela ressurgente extrema-direita, assim como para informar, com as devidas atualizações, um novo e consistente projeto societário. Destaque-se que, na linha do desenvolvimento do Comunismo Democrático Italiano, o autor aponta a relação de continuidade de quatro das principais categorias criadas pelos quatro líderes citados: guerra de posição (Gramsci), democracia progressiva (Togliatti), reformismo revolucionário (Longo), introdução de elementos do socialismo no capitalismo (Berlinguer). Todas as quatro elaboradas, a seu tempo, a partir da “análise concreta de situações concretas”, a indicar a necessidade de plástica própria, original, na construção da sociedade comunista em Itália, contrapondo-se, assim, na forma e no conteúdo, às propostas do movimento comunista internacional, orientadas pelo dogmatismo e despotismo soviético.

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Na via italiana ao socialismo, três pontos são fundamentais: (i) o caráter processual da revolução, implicando combinação da implementação gradual de reformas estruturais com a transformação socialista da sociedade (“superação progressiva da lógica do sistema capitalista”); (ii) na disputa política, o respeito ao pluralismo e às regras do jogo democrático; (iii) a sociedade comunista como sociedade substantivamente democrática (democracia política, econômica e social), isto é, um modelo de sociedade que incorpore em sua agenda o respeito às liberdades civis, o pluralismo político e a construção da igualdade material. 

Como Berlinguer traduziu e desenvolveu o “comunismo democrático italiano” no período em que esteve à frente da Secretaria-Geral do PCI?

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Essa indagação, que delimita o objeto central da obra, é respondida pelo autor, de forma didática, em análise que se desenvolve em três planos, cada um deles posto em capítulo próprio. No primeiro, aborda as estratégias adotadas pelo PCI, sob Berlinguer, nas relações internas da política italiana. No segundo, trata da postura crítica do PCI no interior do movimento comunista internacional, especialmente a tensa relação do PCI com o PCUS. No terceiro, o plano teórico-prático das relações entre socialismo e democracia. Essa divisão facilita a compreensão, mas, na verdade, esses planos se entrecruzam e, de forma complementar, perpassam os três capítulos. 

Berlinguer, na esfera da política interna italiana, dá seguimento à estratégia da unidade antifascista na busca obstinada pelo “compromisso histórico” e pelo “governo de solidariedade nacional”, envolvendo a aliança das três forças democráticas da península – Partido Comunista, Partido Democrata Cristão e Partido Socialista – como forma de (i) enfrentar, impedir e anular as investidas do reacionarismo fascista; (ii) fazer avançar e consolidar a democracia política, na linha posta pela Constituição promulgada em 1947; e (iii) abrir caminho para a gradual afirmação da democracia substantiva (econômica e social) em futura sociedade socialista. É também nesse sentido que, avançando na compreensão do significado da “guerra de posição” de Gramsci, da “democracia progressiva” de Togliatti e do “reformismo revolucionário” de Longo, Berlinguer acrescenta à categorização do Comunismo Democrático Italiano a proposta da “introdução de elementos do socialismo na sociedade capitalista” como caminho gradual de promoção da transformação social, respeitados o método democrático e os direitos fundamentais consagrados na ordem constitucional.

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O “compromisso histórico” e a ideia de um “governo de solidariedade nacional” inviabilizaram-se com o recrudescimento do terrorismo, de direita e de esquerda, na Itália; o sequestro e execução de Aldo Moro, interlocutor de Berlinguer na DC, pelas Brigadas Vermelhas; e a descoberta de relações promíscuas entre DC e PS com o poder econômico, bancos, máfia e setores da maçonaria. Em face dessas questões conjunturais, Berlinguer coloca como objetivo e prioridade do PCI e da sua prática política interna o restabelecimento da confiança entre cidadãos e Estado, desenvolvendo o tema “questão moral” –, bem como reforça e aprofunda, com a tese da “alternativa democrática”, a via processual para a construção do socialismo: uma “terceira via” alternativa à socialdemocracia, que havia capitulado ao capitalismo, e ao comunismo dogmático e despótico da URSS e de seus satélites da Cortina de Ferro. Nas palavras do líder comunista italiano, proferidas em março de 1979, na abertura do XV Congresso do PCI, “a luta pelo socialismo e sua construção devem acontecer com a plena expansão da democracia e de todas as liberdades. É esta a escolha do eurocomunismo”.

Nas relações que se estabelecem no interior do movimento comunista internacional, Berlinguer também dá seguimento à luta pela autonomia de cada partido comunista nacional em face do PCUS, não admitindo a existência de uma política centralizada em um partido-guia, dando continuidade à ideia de “policentrismo” anteriormente desenvolvida por Togliatti. Mais: em discursos e manifestações públicas, aponta a necessidade de respeito aos caminhos diversos que a construção do socialismo pode tomar no tempo e no espaço, o que dá causa à insatisfação das lideranças soviéticas. Mas não é só. Como observa Mondaini, Berlinguer sustenta, no plano das relações internacionais, a necessidade do estabelecimento de um “governo mundial”, como “rede de solidariedade entre os países do Primeiro, Segundo, Terceiro e Quartos Mundos, direcionada à construção de um novo modelo de desenvolvimento econômico não predatório, cooperativo e engajado na preservação da natureza e na defesa do equilíbrio do meio ambiente”.

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Ressalto que o mais forte do legado do pensamento e das práticas políticas do iluminado, ousado e corajoso líder comunista italiano está sintetizado em duas das categorias por ele trabalhadas com muita lucidez. São elas: “democracia como valor universal” e “utopia dos tempos longos”. Ou seja, o “caráter indissociável existente entre socialismo e democracia”, seja como conteúdo material do novo projeto societário, seja como processo de construção gradual desse projeto.

No espaço limitado desta breve resenha não é possível destacar todos os elementos históricos, culturais e políticos que Mondaini relata e analisa primorosamente em seu livro sobre o “período Berlinguer” do desenvolvimento do Comunismo Democrático Italiano. Caberá ao leitor descobri-los durante a leitura; uma leitura que afirmo, sem medo de errar, prazerosa e instigante. Prazerosa porque escrita de forma objetiva, clara, que permite leitura fluida sem prejuízo para a complexidade do conteúdo. Instigante porque, embora apresente recorte temporal concentrado basicamente no último quartel do século XX, Berlinguer, pela pena de Mondaini, apresenta lições e aponta caminhos dotados de flagrante atualidade, sobretudo para a esquerda brasileira.

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