Te dou minha palavra

Não há motivo para achar a expressão “filho da puta” como sendo invariavelmente o uso machista da língua



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É engraçado dizer isso – porque certamente você não vai me entender da maneira q’eu gostaria-, mas se a função maior da língua é traduzir coisas que pensamos ou, pior, que vemos, em não-coisas (imateriais) que são as palavras, seu alcance máximo é de comunicar aproximadamente o que se pretende, e não de transformar a realidade em letras. Ou seja, você não vai me entender plenamente porque não dá, simples assim. Entendeu?

Anos atrás, comecinho de namoro, queria brincar de adulto e fazer macarronada com uma atual ex-ex-ex, aproveitando que meus pais tinham saído – ok, eu queria mais que isso, mas é assunto pra outra hora. Molecotes de bolsos semi-vazios, fomos ao mercado a fim de comprar os ingredientes. Chegando lá, a menina disse que os trocados não seriam suficientes para o banquete lúdico. Uma vez que eu não entendia absolutamente nada de preços, acatei o veredito. Mas ao chegar em casa e ver o quanto nós tínhamos somados, percebi que seria absurdo aquilo não dar para tão pouca coisa: massa, tempero e molho. Foi então que ela disse: - Com isso, só isso, a gente faz macarrão. Pra ser macarronada, tem que ter presunto e queijo.

Reação condizente com as espinhas no rosto e a visão de mundo não lá muito larga: ri da cara dela e, claro, avisei que pra ser macarronada não precisava nem de presunto, nem de queijo. Ela, relutante, disse que eu estava confundindo as coisas, que s’eu fosse na casa dela conversar com sua família, ia aprender com quantos presuntos e queijos se faz uma macarronada. Batata! – não o ingrediente, foi só uma interjeição. A mãe maluca, o pai ausente, a irmã de fralda, todos sabiam – e se perguntássemos aos gatinhos, a resposta não seria diferente: pra fazer macarronada, tem que ter presunto e queijo.

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Mais tarde, percebemos que não nos entendíamos em aspectos muito mais relevantes e a relação não foi pra frente. Mas o que na época me fez transitar do repúdio à dúvida, hoje soa muito simples. As palavras não têm um sentido pronto, descritivo de características objetivas que devem ser universalmente representadas por uma equação específica e sem fuga de radicais e desinências. Não há um selo divinal presente no surgimento das coisas, onde está escrita a palavra correspondente ao objeto – aliás, se assim o fossem, não existiriam tantas línguas pelo mundo. Exemplo anedótico dessa Babel é uma celeuma que tem surgido com freqüência nos bate-papos acadêmicos politicamente corretos: “homossexualismo” ou “homossexualidade”. Qual delas deve ser empregada para não sermos homofóbicos?

Se uns repugnam “homossexualidade” porque o sufixo remete, de acordo com estes, à idéia de doença, para outros quer dizer apenas uma condição, enquanto “homossexualismo” pretenderia tratar de um ideário - o que, convenhamos, não representa propriamente a simples ação de indivíduos do mesmo sexo sentindo atração e afeto um pelo outro. A análise do discurso está aí para dizer que a seleção de palavras que fazemos explicita valores subjetivos e ideológicos que temos introjetados mesmo sem saber. Portanto, optar por “homossexualismo” ou “homossexualidade” implica uma posição específica de mundo. Não sou eu quem vai discordar disso, mas como há argumentos razoáveis advogando a favor e contra tanto de uma palavra quanto de outra, o que faço: crio outra ou desisto de me fazer entender?

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Ora, a cultura é pública, então os sentidos usados para as palavras também. Não há motivo para achar a expressão “filho da puta” como sendo invariavelmente o uso machista da língua – onde, para ofender alguém, utilizamos uma maneira pejorativa de falar da mulher. Ainda que resida aí uma memória social de cunho opressor, devemos lembrar que a língua é viva, tão viva que hoje “filho da puta” serve até de elogio – mas cuidado pra quem você vai falar isso, hein!

Te dou minha palavra: se os significados não têm donos, a etimologia não revela a lei que domina a palavra, apenas destrincha sua arqueologia, sua história. Exatamente pelo colossal número de possibilidades de sentidos que uma expressão pode ter – que variará de acordo com as vivências compartilhadas -, para calcular o alcance do que queremos dizer, precisamos pensar em para quem diremos. Sabe muito bem disso aquele que foi pra Minas e recebeu informação que o ponto turístico à procura era “pertinho”, mas esqueceu de perguntar qual era a escala em metros desse diminutivo.

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Não existe um certo, cercado de várias formas erradas, mas sim a norma envolta de usos marginalizados. A linguagem informal, regional, prolixa, de libras, da internet, de olhares... todas essas comunicam, então atendem a seus propósitos.

E se você fala a mesma língua que eu e um dia quiser fazer macarronada aqui em casa, pode vir, mas ó: não precisa trazer presunto e queijo.

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