Os anos rebeldes de Glauber Rocha

No livro "Primavera do Drago", Nelson Motta revela histrias engraadas e pouco conhecidas dos bastidores da produo de clssicos do cineasta baiano, como Barravento e Deus e o Diabo na Terra do Sol



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Nelson Motta foi um dos jornalistas que, em 1964, assistiram assombrados à pré-estreia de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", vertiginoso exercício que se tornaria a obra máxima do cineasta Glauber Rocha. "Então com 25 anos, ele era um homem que impressionava pela inteligência e pela forte presença", lembra-se Motta, que iniciou ali uma amizade que durou até a morte do diretor, em 1981. "Conheci bem essa segunda fase de sua vida, mas me interessava a primeira, ou seja, a juventude." A curiosidade o levou às pesquisas e, depois de vários anos, Motta conseguiu concluir "A Primavera do Dragão", que a editora Objetiva lança nesta semana.

Trata-se de uma detalhada descrição em tom romanceado dos anos verdes do cineasta que passou como um furacão pelas artes brasileiras, deixando rastros que modificaram e influenciaram carreiras diversas. Colunista do jornal O Estado de S.Paulo, Motta relata desde o nascimento de Glauber, em 1939, quando quase matou sua mãe no parto, até a consagração no Festival de Cannes de 1964, onde, apesar de não levar nenhum prêmio relevante, conquistou prestígio e consolidou seu nome como um dos principais diretores do mundo naquela época.

Nelson Motta conta que o próprio Glauber não gostava de lembrar de seu passado, preferindo sempre tratar de projetos futuros. "Com isso, ele escondia histórias maravilhosas", observa. Como a da precocidade intelectual - ainda moleque, ele impressionava os professores ao discutir sobre Nietzsche. A escola, aliás, era um palanque para sua rebeldia, traduzida nos virulentos discursos contra a forma como era praticado o ensino.

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Mais curiosas, no entanto, são as histórias envolvendo o início de sua carreira cinematográfica. "Barravento", seu primeiro longa-metragem, rodado em 1963, teve a providencial ajuda de outro cineasta, Nelson Pereira dos Santos, considerado o iniciador do Cinema Novo com "Rio 40 Graus" - diante do desespero de Glauber na sala de montagem, ele conseguiu alinhar as cenas de forma a terem coerência.

O filme foi dublado no Rio de Janeiro e, como não havia verba suficiente para levar os atores originais, "Barravento" ficou com as vozes da catarinense Edla van Steen e dos cariocas Norma Bengell e Jece Valadão. Glauber, no entanto, esqueceu de levar as anotações sobre os diálogos que, por terem sido improvisados, não batiam com os do roteiro. A solução foi contratar um surdo-mudo craque em leitura labial. "Pena que o surdinho fosse carioca e não entendesse o 'baianês' dos atores", escreve Motta. "Só a chegada de um deficiente auditivo baiano permitiu que os diálogos fossem recuperados e dublados."

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A odisseia que marcou a realização de "Deus e o Diabo", no entanto, ocupa boa parte do livro - e com justiça. Financiado por um playboy da sociedade, Gugu Mendes, interessado em ver sua namorada, a atriz Yoná Magalhães, no elenco, o filme que se tornaria um marco do cinema mundial foi rodado em Monte Santo, no sertão da Bahia, onde a filmagem foi acidentada. Afinal, logo no primeiro dia, a lente da câmera se quebrou, provocando um atraso de quatro dias na produção.

O mais difícil foi contar com o apoio da população local para trabalhar como figurantes. Além de supersticiosos (temiam Antônio das Mortes), funcionavam melhor quando recebiam algo em troca, como latas de leite em pó. "Tudo conseguido por Gugu, que desviara do escritório político do pai", diverte-se Motta. O aliciamento, aliás, era providencial pois, ao constatar que uma das principais cenas - a da multidão de fanáticos - ficara inutilizada por defeito da câmera, Gugu rifou duas máquinas de costura no povoado, o que atraiu mais interessados que os participantes da primeira rodagem.

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Encerrado a tempo de ser inscrito para o Festival de Cannes, "Deus e o Diabo" precisava, para isso, ser legendado em francês. Descontente com a primeira versão, clássica e rebuscada, Glauber que estava em Paris, contou com a ajuda de Vinicius de Moraes, que adorou o filme. O livro termina com a consagração do longa, mesmo sem nenhum prêmio. "Eu preferi escrever sobre a juventude de Glauber por ser uma fase mais feliz de sua vida", conta Motta que iniciou o projeto em 1989, quando entrevistou amigos de Glauber que ainda estavam vivos. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Primavera do Dragão - Autor: Nelson Motta. Editora: Objetiva. Preço: R$ 56,90 (368 págs.)

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