No peito dos enclausurados também bate um coração

A insistência de João Gilberto em não aparecer tem chamado tanta atenção que já se transformou em exibicionismo. Terá ele direito ao claustro?



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Ele chamou atenção mais uma vez. E sem sair de casa. João Gilberto virou notícia ao anunciar turnê, ao cancelá-la e ao receber indenização da EMI. O texto abaixo foi escrito em junho, quando o criador da batida perfeita completou 80 anos. Só fez mais sentido desde então:

Titubeei. Admito. Escrever isto aqui seria como caetanear o que há de ruim, e Djavan não profetizou essa possibilidade. Entrar assim, sem bater, é desrespeitoso, mas o desafio se impôs em tom de homenagem. O homem completa 80 anos nesta sexta-feira e sua insistência em não aparecer tem chamado tanta atenção que já se transformou em exibicionismo. João Gilberto está há tanto tempo enclausurado dentro de seu apartamento no Leblon que, ao que me consta, o imóvel ganhou ares mitológicos no bairro. Nem Caetano Veloso entra, dizem as más línguas. E, diante de tanto interesse em torno do misantropo criador da batida perfeita, pra manter o respeito, me pergunto: terá João Gilberto direito ao claustro?

O tema dava samba no Supremo Tribunal Federal, dava não? Ou seria uma bossa? O cara revoluciona a música popular brasileira e, sem mais nem menos, resolve se entrincheirar dentro de um apartamento, evitando todo e qualquer contato humano que não seja estritamente necessário. Pode, Arnaldo? Nem a locatária consegue acesso ao imóvel. Há anos. E são poucos os que ali entraram e saíram para contar o que há lá dentro. Nem o entregador de pizza… Mas a quem estou tentando enganar? Eu te entendo, João.

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É preciso um certo nível de misantropia para compreender o que acontece com o criador da Bossa Nova. E um pouco de Kafka não pega mal no diagnóstico. Vai um trecho de A construção: “Será que eu esperava, como proprietário da construção, ter supremacia sobre todo aquele que se aproximava? Justamente por ser possuidor dessa grande obra suscetível é que eu permaneci inerme contra qualquer ataque mais sério. A felicidade da posse me estragou, a vulnerabilidade da construção me tornou vulnerável, os ferimentos dela me doeram como se fossem meus.”

Vou ter que confessar aqui certa inveja da condição de João Gilberto. Desprezar a celebridade é dar um passo para além dela. Mas ele foi mais longe e renegou o convívio social. Por mais que eu secretamente cultive esse desejo, falta coragem para abandonar as relações. Mais do que isso: é preciso ser elogiado, cortejado, admirado, idolatrado. Como se faz, João? Quem sabe um dia a elevação espiritual e/ou intelectual me livre desses desejos mundanos e, no momento em que eu deixar de apenas me sentir genial para de fato ser genial, enfim suma a vontade de fazer sucesso.

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Foi isso que aconteceu contigo? O nirvana? O pato?, ou seja lá como você chama isso. Ou enchemos seu saco com essa idolatria vazia e postiça? Cansou de ouvir que as suas músicas mudaram vidas, acalmaram crianças e outros tipos de bobagem? Isso aí eu ainda não estou pronto pra entender. Por isso – e só por isso – vou ficar com a explicação kafkiana. Pode ser? Vou te ver como esse ser receoso de sair de dentro da fortaleza. Cuidadoso – com razão, diria John Lennon – e ressabiado contra tudo e contra todos. Eu tenho um pouco disso. Aumenta com a idade?

Sobre a pergunta capital digna de STF, eu diria que o direito ao claustro existe e é até complementar ao sucesso – afinal de contas, sem a glória, a clausura voluntária perderia todo o charme. Desde que as contas estejam devidamente pagas, certo, Belchior?

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