Meia noite em Duque de Caxias

Mas eu era outra coisa. Alguém que queria o passado e não sabia como fazê-lo efetivo no presente



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Era por volta de meio-dia. Ainda não havia parado de pensar no filme da noite anterior, o novo do Woody Allen, deslumbrado com a verossimilhança de seus diálogos, com a sacada da temática, com todo seu quê de genialidade e, claro, com a sisudez irritantemente charmosa de Paris. Todavia, egresso do outro lado da poça, chegava naquele momento era em Duque de Caxias. Confesso, não tinha vontade de tornar àquele lugar, tão cinzento de concreto, tão azul de fome. Saí do ônibus e me deparei imediatamente com o mormaço do asfalto que tremia a turva realidade fronte à minha cara gotejante e estampada de um desgosto desigual. Voltei não por necessidade, mas para ver minha mãe. Separou outro dia, nenhum compromisso da rotina justificava minha ausência.

Aquele lugar não era meu, não, senhor – aliás, nunca foi. Mas parecia não ter saído de mim. Não tive saudade, não estranhei o caminho, nada me espantou. Talvez porque saí de lá tem poucos meses, mas também por trazer à tona repulsas contidas, cenários indesejados e a impotência de quixotear contra os moinhos de vento que desembarcaram com Cabral. Sentimentos ora em coma, mas certamente pulsantes, escondidos em meio à poeira n'algum caixote de mudança dentro de minha mente.

Na casa de Dona Regina – vulgo “mãe” para mim -, uma lasanha caseira saindo do forno, novos móveis com tons de tabaco e a fumaça condizente de seu cigarro. Minha irmã compenetrada na Tv, feliz em me ver na vida real, enquanto meus sobrinhos, em vez de nômades infantes pelos corredores da casa, sedentários usuários da internet. O curioso é que, acho só ter percebido agora, o motivo que me trouxera até lá pouco se efetivou. Quase não falamos da separação e meu ombro amigo não foi descoberto, mas acho que a presença da família substituía qualquer voz alterada de ordem ou conselho subversor da ordem do tempo – quem diria, minha mãe à espera de minhas orientações.

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Típicos travessões familiares: como você tá, como as crianças vão no colégio, como anda de grana, como tá sendo morar com a Julya. Eu não queria rever certos problemas que teimam em se repetir, ano a ano, pois minha vida agora é outra: escrever, ir à clínica, viajar, descascar batata, lavar banheiro, pagar conta de luz. Afinal, pensar em família novamente como um conjunto, com suas células já tão separadas, soa como desejo de querer um tempo que não volta mais, mas paradoxalmente ainda é presente, mesmo que distante. Eu queria era o passado, não ter que lidar com o agora.

Sabe... a vida nova não é exatamente como os sonhos de outrora. Não sei se realmente lembro ou se são palavras da minha mãe que construíram uma memória artificial em mim, mas sei que desde muito pequeno, quando ainda loirinho – como era chamado pelo então Papai – sonhava em morar na tal Paris do filme. Tanto faz se da Belle Époche, do Renascimento, Iluminismo, mas Paris. O engraçado é que fui crescendo e meus caminhos se moldando à fantasia de morar na cidade Luz. Se antes era devido aos Mosquiteiros, Zidane ou Comuna, hoje é por Sorbonne, Louvre e os Cafés. E, bem, aquela vida de Caxias em nada se assemelhava ao deslumbre parisiense. Também por isso, não queria a cidade da Baixada, já que é sempre melhor viver na zona de conforto – em especial, quando a comodidade reside nas ilusões.

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Já à noite, com todos os pesares e devidos olhares atentos, resolvemos dar uma volta pelos arredores do bairro. Nenhum café, livraria ou museu que ostentasse o que de maior pudesse vislumbrar a imaginação humana. Sem Moulin Rouge, mas com meninas de uns 13 anos nas esquinas. Infelizmente sem arcos do triunfo, apenas indivíduos confundíveis com sacolões de lixo debaixo das pontes ou jogados nas vielas, tropeçados por mim, chutados por tantos.

Enquanto Julya comprava uma sapatilha com minha família, fui re-conhecer o local. Sentei em um dos bares no entorno do Teatro Raul Cortez, aparentemente fechado. Voltei no tempo. Entretanto, Fitzgerald, Hemingway e Dalí não apareceram para um bate-papo casual. Nem mesmo os mais chegados Machado, Drummond ou Clarice – ok, Clarice era esperar demais, mas quem sabe Vinícius. Não, a poesia que me surgira não vinha de belos versos rabiscados num papel amarelado ou entoados sob uma voz doce-caramelo. Era, sim, de um realismo pessimista, com nome – contudo, sem sobrenome: um Zé, ninguém.

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O garoto veio em minha direção para pedir que eu fosse ali perto comprar uma caixa de balas, seu meio de sobrevivência no sinal vermelho. E eu, com um medo meio preconceituoso, meio prudente, de bolsos leves, pus a mão ao fundo e contei por alto as pratinhas. Relutei em dar, pois não poderia sair dali com ele para comprar as tais balas, uma vez que esperava a família na mesa de plástico do boteco. Eu sei, nunca se sabe como o pedinte vai usar o dinheiro, só que mesmo confiando, a gente nunca dá tudo que pode. Então olhei para os lados, meio que querendo convencer possíveis espectadores de minha solidariedade, meio que com vergonha de ser o único a me compadecer. Os outros, nas mesas vizinhas, cegos à circunstância, não percebiam. Já os meninos descalços que rodeavam o lugar... bem, esses me fitaram como se fosse canto de sereia, novidade na praia, metade mais um na birosca, metade messias.

Mas eu era outra coisa. Alguém que queria o passado e não sabia como fazê-lo efetivo no presente. Alguém que se inquietava com o cenário, tanto por sonhar com um mundo utópico quanto pelo desgosto de ter que lidar com meu egoísmo ressabiado.

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Meia-noite. Chegou minha condução: uma Mercedes, um busão. Como sempre há de ser, procurei o lugar mais confortável e não demorei a dormir. No sonho, a síntese dessa dialética profetizava um futuro distante de mim - talvez nem vivido - tão cômodo quanto desigual e, sobretudo, insolúvel.

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