Já tomei porrada na cara

O estranho é que, contraditoriamente, continuei a gostar de Vale-Tudo



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Não sei você... eu já tomei uma porrada na cara. Aliás, duas. Duas vezes, porradas foram mais. Nenhuma delas pegou em cheio, mas foi o suficiente pr'eu constatar: não é maneiro. A única parte boa da história é que quando ocorreram tais tragédias, eu ainda era bem molecote. E aí inexistiam critérios: se o motivo da briga era sempre banal, tão logo a dor moral passava. Lembro de uma vez em que eu tirei sangue do meu melhor amigo, sob o elaboradíssimo argumento dele estar me impedindo de ver o desenho – coincidência ou não, Street Fighter – e, em desculpa clamorosa, fui chorando pela rua a insistir que voltasse pra gente jogar vídeo-game. Mas o tempo passou, eu percebi que não tinha super-poderes e a calmaria chegou. Foi mais ou menos nessa época que meus pais colocaram Tv à cabo lá em casa e conheci o Vale-Tudo. Eu realmente não tinha super-poderes – aqueles caras, talvez. Daí pra frente, quando os olhares atentos passaram a ser pras meninas, assim como as mãos descobriram melhor diversão que os socos estabanados, em todas as vezes que aconteciam situações reais de briga, eu pesava: e se alguém se machucar o suficiente a ponto de destruir algum neurônio ou, quando pior e possível, nossa amizade?

O estranho é que, contraditoriamente, continuei a gostar de Vale-Tudo. E o esporte cresceu bastante. Cresceu tanto que já não é mais como aqueles filmes do Van Damme, que a Globo passa domingo à tarde pra preencher buraco na programação, onde sempre tem um chinesinho sinistro no Kung-Fu que vence um negão-tóra ou mesmo aqueles lutadores de sumô king-size – com um único golpe, decerto letal. Porque agora existe toda uma preocupação em equilibrar o peso dos oponentes e, com o competitivismo sobreposto à tradição, não existe propriamente um representante d'uma arte marcial com a intenção de provar qual delas é a mais efetiva pra se defender. O objetivo agora é atacar. Quase todo mundo luta quase tudo. Eis, então, que o esporte vira espetáculo, ganha holofotes e transmissão em canal aberto, com a capacidade de levar o Boxe à lona em poucos rounds. Por que assistir dois caras se analisando tanto, por minutos que não cessam, se eles vão dar só alguns socos e ainda por cima de luva? O antigo Vale-Tudo, renomeado e agora renomado MMA, é a jaula que permite dois indivíduos se trucidarem sem tanta preocupação com a técnica, e sim brutalidade. Meus ouvidos chegam a memorar, em sussurro, o canto juvenil: “Porrada, porrada, porrada!”.

Não é por querer dar uma de hipster do MMA, fugir de algo por ser moda, mas quando eu vi tantas pessoas cultuando alguns lutadores do evento aqui no Brasil, ao movimento trêmulo da bandeira da pátria-mãe chamada gentil, de um povo tão orgulhoso em autonomear-se pacífico, me peguei pensando o que queria dizer tanto sucesso desse Clube da Luta contemporâneo.

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Mesmo que saramaguiássemos e a morte se tornasse ora intermitente, quando enfim haveria imortalidade, estaria tudo bem que os homens se digladiassem no palco circense da luta? Se não houvesse morte, o desejo do sofrimento e a raiva de olho-de-tigre, imprescindíveis ao combate, seriam menos inconsequentes?

O problema difere do que muitos sobem ao púlpito para entoar: o prazer da violência não se dá pelo retorno à natureza animalesca – afinal, quem anda enganando as pessoas dizendo que deixamos de ser bichos, por qualquer instante que seja? Quantas aspas de Geertz terei de usar para ser ouvido quando digo que o MMA ou qualquer outro construto humano é fruto da relação imbricada entre cultura e natureza? Inclusive, tratar o natural enquanto catastrófico é fingir que não somos tão deliciosa e sanguinariamente carnívoros, que não gozamos pelos quatro cantos do mundo.

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A questão, se há questão, também não se resume à alienação. Que é fato que o homem se priva e é privado de tomar decisões coletivas por conta de supervalorizar uma luta, isso lá é verdade. Mas e o Mengão? Entenda bem: aquele livro do Deleuze na tua mesinha de cabeceira também não muda a desigualdade social. Sabe Thaís Gullin, presente do presente da música nacional, que entender o triunfo da poesia sobre o futebol não impede que o homem jogue sua pelada todo domingo debaixo de sol.

Só tenho uma certeza quanto a isso tudo: as pancadas doem. Eu, que nunca balbuciei cogitar envolvimento sério com esse tipo de esporte, sei que doem. E isso não é problema. Problema mesmo – quero dizer, tragédia – é o espetáculo narcisista. O ápice da força se enfrentando: homens babando por outros homens, não por habilidade, mas por um homoerotismo hedônico. Culto mais que à violência, ao corpo e, sobretudo, à efemeridade. É o prazer instantâneo, tal qual droga, de ver um homem aniquilando outro. Doze rounds homeopáticos? Jamais.

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Se eu me satisfaço de alguma maneira ao ver MMA? O pior é que sim, sou bicho e minha formação enquanto indivíduo social me faz assim. Mas sou um bicho que pensa. E quando penso, não tenho medo de como se morre, mas de como se vive. Assim, retorno de súbito à infância e me preocupo mais do que com hematomas, com os desdobramentos do ringue. É nessa hora que prefiro o Boxe, pois, por mais que haja combate, quando há cansaço ou refuga, o abraço ali não é golpe, é só um abraço.

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