Devorando Paraty

Mais que fotos e adornos, levo memórias na mala. Longe da redoma narcisista do intelectual, só me interessa o que não é apenas meu, o que também é do outro, o que é nosso



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Eu divido intelectuais em dois tipos maiores: o que quer devorar o mundo e o que quer ser devorado. Este último geralmente vive no castelo de areia chamado Universidade – quando não grupos pseudo-vanguardistas -, diferenciando-se minuciosamente dos supostos boçais mundanos por meio de calças quadriculadas, chapéus Panamá e cigarrilhas fumadas na frente do espelho. Suas falas são sempre entre aspas, a fim de expor sua coletânea de citações inócuas que servem mais de floreio que de argumento, embebidas de café fortíssimo (porque o açúcar descaracteriza o café-intelectual) e, claro, uma sobrancelha ligeiramente levantada para o tom blasé explicitar sua superioridade. Esse cara só aprecia aquilo que está no cardápio intelectual, porque julga ser esse comportamento o que torna-o como tal, e não o que ele pensa. Pra ele, tudo aquilo que não evidencia sua erudição é indigno de ser visto, lido ou comentado. Mas fico feliz que ainda exista o outro tipo, aquele que pode até ser adepto desde o Panamá até as citações, só que com uma sutil diferença: seu critério não é a imagem que terá perante os olhos dos seus pares. Gosta de uma coisa porque gosta. E aí, meu amigo, não existe carapaça que impeça de saborear o que vier pela frente, desde que não cause indigestão. Para este, tal qual Oswald de Andrade, só interessa o que não lhe é de posse – o Outro.

Paraty é o lugar perfeito para o esbarrão destes seres tão limiares. O Centro Histórico e seu chão pé-de-moleque, suas Casas Grandes e Senzalas, as igrejinhas, o mar que adentra as ruas logo cedo, a cachaça Gabriela, os artistas de rua, o Jazz vizinho do Samba nos becos. Enquanto o intelectualóide gosta disso numa moldura, o intelectual quer vivê-la.

Não fosse suficiente o ar divinal da cidade, a FLIP acontece por lá. Ou seja, somam-se à poesia natural do lugar, a contemplação aos nomes maiores de nossa Literatura e discussões do maior valor reflexivo – que não compõem a totalidade do evento, decerto. Enquanto a maioria das pessoas aguarda o Carnaval ou Ano Novo, fazia tempo que eu esperava era isso. Esse ano, sob homenagem a Oswald, antropófago, faminto pelo mundo, chegou minha hora.

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De cara, fiquei embriagado pelo lugar. Já conhecia a cidade, mas durante a FLIP existe um certo espectro de poesia a mais em tudo. Só quem comeu crepe ao som de um belo blues, envolvido pelo blazer e cachecol com leve perfume de guardado, depois de assistir uma palestra de abertura com Antônio Cândido, sabe do que estou falando. E, depois do tanto que vi, torcendo para a eternidade daqueles dias, impossível sequer dar títulos aos meus textos. Como um jovem cronista atravessa os parágrafos da vida frente a tantos mestres? Aliás... como não querer ser um deles do outro lado do livro ou em cima do palco?

Em meio a tanto fascínio pelas letras, cercado de acadêmicos, literatos, saraus pelas vielas e até mesmo eventos paralelos de jornais e afins, aquilo que o intelectualóide fecha os olhos pois não lhe dá status, é o que está ao seu redor, fora das páginas, quase picando-lhe como uma cobra mal adestrada: um cabra vendendo cordel, a tia da barraquinha de doce feito com água desconfiável, ativistas ambientais contra a Energia Nuclear, protestos por melhores condições da Educação local, o bolso vazio do caiçara que impede que ele usufrua de sua própria cidade. Há quem veja esse cenário apenas como uma paisagem capturável por suas máquinas analógicas semi-profissionais, um produto cultural consumível, objeto de seu parasitismo turístico, distante do contato de suas mãos, de um trocar de palavras casuais sem a mínima pretensão de densidade.

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E foram essas lentes que me chamaram atenção para o anti-moderno. Nas entrelinhas daquela aquarela real, o bom filho a casa tornava. Entre a arquitetura colonial tombada, uma flecha lançada ao longe vinha pela culatra como bumerangue: um indiozinho tão vermelho quanto invisível, devorado pela aldeia global, inserido à sua maneira no Brasil. Traquinava sem tropeço com pés descalços e imundos por aquele chão, com o penteado do Neymar, Coca na mão e blusa rasgada com o Che na estampa.

Se abaixo das tendas eu assistia brilhantes relatos e análises sobre o vigor combativo de Oswald de Andrade contra as invasões de culturas hegemônicas, sem apelar para purismos nacionalistas – onde ele defendia uma assimilação do diferente por meio de seleções -, quando o céu era o teto do meu cômodo acomodado, qualquer analfabeto perceberia a disparidade do mundo das rimas e da prosa factual.

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O intelectualóide disparava, aparentemente sem titubear, seus flashes nos olhos do menino. Eu, que sou mais um, apenas um potencial intelectual, fui prosear com o moleque, tratando-o como merecedor de atenção, de apreço, de percepção – em vez de bicho numa jaula -, pois este Outro que era o menino é apenas um outro Eu.

Mais que fotos e adornos, levo memórias na mala. Longe da redoma narcisista do intelectual, só me interessa o que não é apenas meu, o que também é do outro, o que é nosso.

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