Boris Schnaiderman ao 247: 'Votaria em Dilma de novo'
Às vésperas de completar 100 anos, em 2017, junto com a Revolução Russa, o escritor e tradutor ucraniano Boris Schnaiderman concedeu entrevista ao jornalista Alex Solnik e falou sobre a situação política brasileira; afirmou que, se pudesse, votaria novamente na presidente Dilma Rousseff e defendeu que o calendário eleitoral seja cumprido; ou seja: nada de impeachment; autor de um clássico da Segunda Guerra Mundial, o livro "Guerra em surdina", ganhador do Prêmio Jabuti de 1983, Schnaiderman disse ter esperanças no futuro; "2016 ainda será muito difícil, mas depois a tendência é melhorar"
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Por Alex Solnik
Às vésperas de completar 100 anos, em 2017, junto com a Revolução Russa, o escritor e tradutor ucraniano Boris Schnaiderman não tem podido acessar à sua zona eleitoral, nas últimas eleições, que fica num terceiro andar, mas nem por isso perdeu o interesse e a vontade de votar. No ano passado, se pudesse, teria votado em Dilma e, se for necessário – afirma – votaria nela de novo. Na infância, assistiu às filmagens do clássico "Encouraçado Potemkin", em Odessa, onde morou antes de vir ao Brasil e acompanhou o luto nacional pela morte de Lênin. Autor de um clássico da Segunda Guerra Mundial – "Guerra em surdina" –, ganhador do Prêmio Jabuti de 1983, Schnaiderman também recebeu a Medalha Pushkin do governo da Rússia por sua contribuição na divulgação da cultura russa no Brasil, com suas traduções de Dostoiévski, Tolstói, Tchekhov, Máximo Gorki, Isaac Babel, Boris Pasternak e poetas como Alexandre S. Pushkin e Vladimir Maiakovski pelas quais ganhou o Prêmio de Tradução da Academia Brasileira de Letras em 2003. Nessa entrevista exclusiva a 247, em seu apartamento em frente à aprazível Praça Buenos Aires, em São Paulo, ele diz que o poeta Maiakovski foi amante da mulher do melhor amigo e que os três viveram sob o mesmo teto, o que era comum nos primeiros tempos da revolução, quando o amor livre era adotado por uma corrente do partido, liderada por Alexandra Kolontay, dirigente próxima de Lênin. Schnaidermann tem esperanças no futuro: prevê que o próximo ano ainda será muito difícil, mas depois a tendência é melhorar.
O senhor votou nas últimas eleições?
Não, eu não tenho votado.
Falta de interesse?
Não, não, não! Interesse eu tenho muito. Acontece que a minha mesa de eleição fica num terceiro andar sem elevador.
Em quem o senhor votaria? O senhor tinha em quem votar? Sabia em quem votar?
Sim, eu ia votar em Dilma.
E o que aconteceu? Por que o governo dela não tem dado certo?
É difícil de precisar.
E o senhor votaria nela de novo?
Votaria, sim. Eu votaria em Dilma de novo.
Então o senhor está convencido que ela está no caminho certo?
É tudo muito difícil. É uma situação muito difícil.
E o que o senhor está achando do clima no Brasil atualmente?
Muito difícil, muito difícil tudo, principalmente a situação econômica, que é trágica. A situação financeira do país é trágica.
O senhor compara com alguma outra época?
Não, não. Não dá para comparar. Depois, eu não sou historiador.
E na política, o que está acontecendo? Embate entre esquerda e direita?
Eu prefiro me abster de falar sobre isso.
O senhor acha que o atual governo vai até 2018?
Eu sou favorável à permanência do governo, claro.
É melhor o governo continuar para tentar reequilibrar a situação econômica, o senhor não acha?
Nem há dúvida. Até 2018.
Tem que ser cumprido o calendário.
Concordo plenamente.
Apesar de todas as confusões. Parece que o senhor Eduardo Cunha virou o personagem-chave do Brasil.
Prefiro não comentar a situação atual.
Qual foi a principal figura política brasileira do século?
Getúlio, sem dúvida, foi uma grande figura.
E o Juscelino?
Tenho grande simpatia pela figura do Juscelino, não tenha dúvida.
A vida no Brasil era boa nos anos JK?
Foi uma época muito difícil... muito difícil...mas o país deu um salto... foi o período da industrialização...
Como foi o golpe de 64?
Foi uma calamidade. Uma catástrofe.
Por que o exército fez aquilo? Dá para entender?
Dá para entender, sim. O João Goulart não tinha nada de comunista. Mas ele estava instituindo uma forma diferente de governo no Brasil. Os militares se revoltaram contra isso.
E de 64 a 85 foi um salto para trás? Dá para entender que haja quem tenha saudade ou queira a volta da ditadura militar?
É lamentável...
O senhor foi preso?
Eu fui preso na sala de aula enquanto estava dando aula de Literatura Russa, na USP, mas não teve maiores consequências. Eu fui detido algumas vezes, mas fui detido, não fiquei preso muito tempo.
O senhor ficou detido no DOPS?
Também... também...foi um episódio muito desagradável, mas não teve maiores consequências, não.
O senhor continuou dando aula de russo?
Sim, sim. Continuei dando aulas normalmente.
E o que eles perguntavam no interrogatório?
Não foram grandes interrogatórios... não fui torturado... fui interrogado.
Eles queriam saber se o senhor tinha ligações com o Partido Comunista?
Não, não, nem me perguntaram isso. Eu não tinha ligação política nenhuma naquele tempo.
E o período Collor, como o senhor define?
Lamentável.
Só pode ser falta de informação porque não foi bom para ninguém. Não é? E o período Collor, como o senhor define?
Lamentável.
Quando Tancredo morreu aquilo foi muito ruim para o país, não é? Os artistas tiveram uma participação muito grande nas Diretas Já.
É verdade... em todo o período a partir de 64...
Agora parece que os artistas estão meio silenciosos...ou talvez divididos...
Divididos...
Eu acho que quem apoiou as diretas não pode apoiar o impeachment. Porque não há um motivo, um crime definido. Os artistas se dividem entre PT e PSDB. E eu acho que eles deveriam estar unidos contra o impeachment. O senhor concorda?
Concordo.
Eu até estranho a pequena participação deles, porque eles são importantes interlocutores com a população, o povo acredita mais no artista que no político. E o que o senhor espera para o próximo ano?
Não sei o que dizer.
Tem esperança de que a situação melhore?
Tenho esperança, mas o próximo ano ainda será muito difícil. Com toda certeza. Depois a tendência é melhorar.
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Como era a situação da sua família na Rússia, em 1917?
Bom, meu pai se ocupava de comércio e nos primeiros tempos após a revolução ele estava relativamente bem de vida. Foi uma situação estranha, a minha família estava bastante bem nos anos pós revolução em Odessa, um grande porto do Mar Negro. Meu pai viajava e comprava produtos no Oriente para vender em Odessa, com a nova política econômica houve uma certa margem para atividade particular dos comerciantes e ele até chegou a ter uma indústria na época, uma fábrica de conservas.
Sardinhas?
De conservas de Cungriá que corresponde mais ou menos à nossa cavalinha. Mas isso foi só nos primeiros tempos, logo depois teve que fechar a fábrica, as coisas foram apertando lá e ele viu que a situação não estava cem por cento boa para ele, que as coisas iam piorar para o comércio particular e ai nós viemos para o Brasil.
Como era a escola?
Eu cheguei a frequentar o jardim de infância, mas eu só fui uma vez, porque as crianças ficavam brincando de roda e cantando "A Internacional" e eu não conhecia a letra da "Internacional". Em casa, o ambiente era todo não comunista pelo menos.
E de que cenas o senhor tem lembranças?
De que cenas? Ihhh, eu tenho lembrança de muitas coisas, eu me lembro muito porque eram anos marcantes, muito marcantes. A primeira coisa de que eu me lembro é das pessoas caídas na rua por causa da fome, a fome de 1921. Em casa nós tínhamos uma empregada que meus pais chamavam de governanta para não dizer empregada. Então, um dia eu estava na rua com minha governanta e vimos um homem caído no chão e ela apanhou um pedaço de pão e deu para ele comer, mas ele mal conseguia mexer os lábios.
Lênin ainda estava vivo?
Sim, eu me lembro da morte de Lênin que foi um transtorno em toda a vida do país. Eu me lembro que os carros ficaram buzinando durante cinco minutos e os ônibus tocando a sineta e outros cinco minutos tudo parado. Eu me lembro que foi uma comoção nacional, mesmo os que não eram muito adeptos do sistema, no fundo tinham uma admiração pela pessoa, pela figura dele.
O Lênin era uma figura querida da população?
Era sim... ele tinha conseguido consolidar o regime. Quando ele morreu estava em desenvolvimento a política que ele tinha instaurado que soltava um pouco as rédeas, admitia um pouco de iniciativa privada. E as coisas estavam começando a entrar nos eixos.
Maiakovski ajudou a fazer a revolução, com Lênin, depois se matou, em 1930. Ele se matou por discordar dos rumos da revolução?
É difícil dizer que fulano se matou por isso ou fulano se matou por aquilo. Geralmente são muitas causas, são várias... é uma convergência de vários fatores, que foi o caso do Maiakovski. Dizer que ele se matou por uma questão sentimental não é verdade porque ele sempre teve uma vida amorosa muito intensa, muito diversificada e era natural que ele tivesse lá os seus desgostos de amor e tal, mas não a ponto de se suicidar.
Havia liberdade sexual na Rússia?
Nos primeiros tempos após a revolução, sim.
Não tinha aquilo de virgindade, casamento?
Havia, havia, mas ao mesmo tempo que havia na burguesia, na classe média e na aristocracia havia o tabu da virgindade e tudo, tudo isso funcionava, o tabu da virgindade, mas depois dessa revolução, houve uma tendência por uma vida sexual mais livre. Tanto é que no Ocidente fazia-se campanha de que aquilo era um desvario, aquilo era uma devassidão, comunismo era sinônimo de devassidão nos primeiros tempos após a revolução.
Maiakovski era da ala do amor livre?
Ele teve uma vida sexual muito livre, muito intensa, e muito diversificada, e o grande amor da vida dele foi a Lílian Brik, que eu cheguei a entrevistar, era mulher do melhor amigo dele. Eles viveram na mesma casa os três.
Sexualmente?
Não. A Lílian Brik pelo menos me disse categoricamente que quando ela passou a viver com o Maiakovski deixou de ser mulher do Ossip. Foi o que ela me disse na entrevista. Nada de ménage a trois... "vivemos sob o mesmo teto, mas".., e que o Ossip, embora ficasse triste e tudo, aceitava a situação e tudo bem.
E Ossip não tinha outra mulher? Foram 15 anos de vida a três, pelo que eu li.
Não. Que conste não. Não sei, não sei.
Mas é impressionante o homem aceitar isso, é difícil.
É difícil, é difícil.
Houve outras situações parecidas com essa, três pessoas que vivem juntas, dois homens e uma mulher?
Depois da revolução era freqüente.
Ah é, na Rússia?
É. Depois da revolução na Rússia houve situações assim... havia uma corrente lá do partido que era pelo amor livre. Havia uma figura importante do partido que era a Alexandra Kolontay, que era adepta do amor livre. Ela era do partidão, era da linha justa, não era dissidente, nem nada, e ela foi enviada como embaixadora na Suécia para ficar fora do país, ficar longe, e aí amaldiçoaram as obras dela, as obras foram condenadas, mas não mexeram com a pessoa dela. Ela era adepta do amor livre e era assim da linha justa do partido, era colaboradora direta do Lênin...
O ídolo da presidente Dilma quando jovem era uma ideóloga também próxima a Lênin chamada Olga Krupskáia...quem era ela?
Krúpskaia! Ela era um corpo estranho dentro do partido porque ela também pregava a liberdade na relação entre os sexos, então era um escândalo! Ela foi embaixadora da União Soviética na Suécia, mas foi afastada.
Ela era secretária ou foi mulher de Lênin?
Não sei... não sei desses pormenores...
O senhor chegou a ver o Lênin alguma vez?
Não. O Lênin eu nunca vi. Mas eu assisti à filmagem do Encouraçado Potemkin, eu brincava na escadaria de Odessa e vi aquele movimento... eu não sabia o que era, não tinha a menor ideia do que fosse e vi, assisti a filmagem.
Qual era a cena?
Eu me lembro, me lembro muito bem da cena dos chapéus, me lembro que apareceram umas senhoras elegantes com trajes do começo do século que eu não conhecia, não entendia o que era aquilo, porque estavam com aqueles trajes esquisitos, trajes chiques da burguesia da época e depois os homens assim todos de chapéu e aí, de repente eles começavam a tirar o chapéu, saudando os marinheiros do Encouraçado. Eu me lembro dessas cenas, eu vi filmar.
Quando vocês fugiram da Rússia?
Foi em 1925, chegamos ao Brasil no final de 25. Quando nós chegamos eu tinha oito anos. E com 11 anos eu passei a me interessar pela vida política do Brasil.
Era uma época tranquila? Como é que era politicamente?
Não... não...foi a época em que as coisas aconteceram. Por exemplo: assassinato de João Pessoa na Paraíba... a revolução de 30... eu vivi intensamente esse período. Depois que a revolução venceu eu vi no centro da cidade de São Paulo pessoas destruindo os escritórios políticos da situação. Depois eu acompanhei com intensidade a revolução de 32...
E qual era a situação do povo brasileiro, o que se via na rua, muita gente pobre?
De modo geral o clima era de pobreza, havia uma indigência, o povo estava na pobreza mesmo. Meu pai estava melhorzinho de vida. Nós ficamos no Rio de Janeiro uns seis meses, depois nós mudamos para São Paulo onde meu pai se associou a um grupo de brasileiros que financiaram uma fábrica de ceras para assoalhos e ele bancou o químico. Ele gostava de fazer misturas e tal, mas não tinha conhecimento nenhum dessas coisas, gostava de misturar coisas. Ele não era muito de estudar, meu pai não era de estudo, mas ele gostava assim de misturar coisas, gostava de fazer em casa licores, vodkas, misturava álcool com água e dizia que era vodka. Misturava álcool, água e umas casquinhas de limão.
E a fábrica deu certo?
A fábrica deu certo durante alguns anos, depois a fábrica fracassou por natural porque meu pai não tinha nenhum conhecimento do ramo na realidade, ele era um autodidata, vinha e estava experimentando aquilo, e a coisa funcionou durante alguns anos. Depois entrou no comércio a fábrica Parquetina, que eu acho que existe até hoje e derrubou a fábrica do meu pai. Em 34 quando eu tinha 17 anos, meu pai fracassou completamente nos negócios e nós nos mudamos de novo para o Rio de Janeiro onde meu pai passou muitas dificuldades. Meu pai chegou a abrir uma lojinha de perfumes, vendia perfumes, ele mesmo misturava as essências com o álcool e eu fiquei lá trabalhando com ele nessa loja e fabriqueta de perfumes na rua Buenos Aires, no Rio de Janeiro.
Na revolução de 32 você estava em São Paulo?
Estava, estava aqui em São Paulo e eu me alistei como escoteiro para ajudar na revolução de 32.
São Paulo foi bombardeada?
O bombardeio em São Paulo foi em 24. Em 24 a cidade foi bombardeada mesmo. Agora em 32 houve duas incursões de um avião isolado do Melo Maluco que era o nome de um oficial da Aeronáutica que depois se tornou brigadeiro e de certa forma se tornou famoso, ele era famoso porque ele era doidão, ele saia do Rio de Janeiro para bombardear São Paulo sozinho. São Paulo não tinha aviação, os constitucionalistas não tinham aviação, então ele vinha a São Paulo, bombardear São Paulo. A primeira vez ele bombardeou o Campo de Marte, eu vi. Eu estava no bonde. Nós morávamos no alto da rua Spártaco, na Vila Romana, numa vilinha lá na Vila Romana... Então, eu vi de repente as bombas estourando.
Derrubaram o Melo Maluco?
Não.
As casas não foram atingidas?
Não, foi no Campo de Marte, lá não havia casas na época. Atualmente está cheio de moradias, mas naquela época não havia casas ali. Então ele bombardeou o Campo de Marte a primeira vez, e na segunda vez que ele veio no outro sábado, no sábado seguinte, eu estava com minha mãe no bonde, vi uma multidão na rua, as pessoas correndo e tal, era o Melo Maluco que tinha aparecido e veio de novo bombardear São Paulo. Ele ficou voando em cima do centro, nós estávamos no bonde e nos prédios mais altos havia metralhadoras anti-aéreas que ficaram atirando contra ele sem atingi-lo e aí passou, passou tudo em brancas nuvens.
E o que você achava do Getúlio? Como era no tempo do Getulio?
O Getulio, quando houve a revolução de 30, Getulio foi recebido de braços abertos em São Paulo, então eu também estava no entusiasmo, era um entusiasmo geral em 1930. Mas em pouco tempo a coisa degenerou porque ele nomeou interventores e os paulistas, que tinham recebido Getulio de braços abertos, se ofenderam porque os interventores eram quase todos do Nordeste, teve um forte sentimento contra Getúlio em São Paulo, inclusive separatista. E então houve toda uma campanha, eu me lembro de campanhas políticas e os paulistas reivindicando interventor paulista e civil, tinha que ser paulista e civil...
E o Getulio, te parecia mesmo que ele tinha tendência fascista, tinha amizades..., flertava com o nazismo?
Em 1940 no Dia da Marinha Getúlio fez o famoso discurso que parecia até um discurso fascista. Eu era estudante de agronomia, estava hospedado em uma casa onde eu pagava hospedagem, casa de um colega e nós estávamos ouvindo na hora da refeição, o rádio transmitiu o discurso do Getulio e eu senti aquele discurso como um discurso tipicamente fascista e desmaiei. Desmaiei.
Não diga! Não suportou o choque?
Vi o nazismo avançando, tanto é que depois eu fui para a guerra, fui para a guerra por causa disso... porque achava necessário lutar contra o fascismo.
O senhor foi voluntário?
Não, porque se eu me alistasse como voluntário seria um Deus nos acuda em casa. Mas eu fiz tudo para ser convocado. Uma vez por ano éramos chamados para preencher um formulário e eu preenchi exaltando as minhas supostas qualidades. Por exemplo: havia um quesito "que línguas conhece"? Eu punha: "domino o francês, o inglês, italiano, além do russo". Eu exagerava minhas qualidades e acabei sendo convocado.
O senhor não tinha medo de ir para a guerra?
Eu achava impossível evitar isso. Já se tinha notícia, embora houvesse notícias muito vagas do que depois veio a se chamar de holocausto. Sabia-se que estava em curso, então era preciso lutar contra aquilo.
Mas o senhor tinha detalhes? Sabia dos campos de concentração?
Não. Mas havia uma noção clara de que estava em curso aquilo que depois passou a ser chamado de holocausto.
E o que o senhor viu no front?
Já escrevi dois livros sobre isso.
"Guerra em surdina" é um clássico!
E agora publiquei esse "Caderno Italiano". É um depoimento pessoal. "Guerra em surdina" é uma tentativa de ficção.
E como o senhor concebeu o "Guerra em surdina"?
O "Guerra em Surdina" eu levei 19 anos tentando escrever e não conseguindo, só no final é que eu consegui, tive a possibilidade de concluir. Eu tinha muitas dúvidas, insegurança, mas acabei dominando tudo e acabei escrevendo.
Quando o senhor começou a traduzir?
Mais ou menos em 1942. Minha primeira tradução saiu em 1944, "Os Irmãos Karamazov", de Dostoievsky. Era muita pretensão. Mas, enfim, a editora me encomendou, eu preferiria fazer um trabalho mais modesto. Mas a editora quis que eu traduzisse Os Irmãos Karamazov. É uma tradução que eu renego. Foi assinada com pseudônimo e eu renego essa tradução.
Quantas traduções do russo já fez?
Não sei... Bastante.
Talvez seja o maior tradutor do russo em número de obras?
Não, em quantidade não... em quantidade não...
Em qualidade?
Não sei... não posso julgar.
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Como o senhor resumiria a participação do Brasil na guerra?
Foi algo muito estranho. No início, o governo Getúlio Vargas parecia inclinado a favor das potências do Eixo. Depois houve uma reviravolta e ele não só aderiu aos aliados, como enviou uma tropa da Força Expedicionária Brasileira, da qual eu fiz parte.
Havia perseguição aos judeus no tempo de Getúlio?
Foi dificultada a entrada de refugiados da Alemanha nazista. Pelo menos houve isso. Houve um início de discriminação, mas o povo brasileiro não tem esses preconceitos. O governo é que queria impor.
O senhor participou da batalha de Monte Castelo?
Participei, eu era calculador de tiro. Da artilharia.
Como era feito o cálculo?
Era uma coisa muito simples. Eu aprendi praticamente em ação. Não nos ensinaram nada, era uma confusão... Aprendi praticamente atirando já.
Quem dava as instruções?
Nós quase não tivemos instruções. Acabamos aprendendo em ação. Nós fizemos parte do 50. Exército americano. O armamento era americano, mas foi adquirido pelo Brasil. O exército brasileiro seguia as normas francesas por causa de uma missão francesa que tinha estado aqui. Quando nós fomos para a guerra passamos ao sistema americano, completamente diferente.
Passou por situações de perigo no front?
Claro, claro. Constantemente.
Lembra de alguma cena de perigo?
O que me deixou mais impressionado foi quando nós fomos metralhados por engano por um avião norte-americano. Foi um dos momentos cruciais.
Como é que o senhor escapou?
Escapei porque eu olhei pela janela e vi o cano da metralhadora do avião cuspindo fogo. Cada avião levava três tipos de bala: uma bala para orientar o tiro, um bala perfurante e uma bala explosiva. A bala explosiva é a famosa bala dum-dum, proibida pela convenção de Genebra, mas ambos os lados usaram e abusaram.
Quanto tempo ficou no front?
Na Itália fiquei um ano e tanto.
Teve algum ferimento?
Não, não fui ferido.
Como era a comida no front? Vocês comiam o que?
Nossos cozinheiros não eram grandes peritos... mas iam preparando a comida... arroz com feijão... a alimentação era bem brasileira.
Mas vocês passavam muitas horas sem se alimentar.
Claro, claro.
E como vocês foram recebidos na volta da guerra?
Fomos recebidos efusivamente. Foi um delírio a nossa volta.
Vocês tiveram alguma recompensa do governo?
Os ex-combatentes foram completamente abandonados pelo governo. Nós recebemos o que se chamava fundo de garantia, que não era suficiente para manter uma pessoa durante um tempo. Fomos completamente abandonados até que a constituição de 1988 concedeu uma pensão aos ex-combatentes.
Isso me faz pensar uma coisa. Será que vocês não foram recompensados por que voltaram vitoriosos? Será que Getúlio não mandou a FEB para ser derrotada? E como voltou vitoriosa, vocês foram punidos. Isso explicaria porque tantos equívocos, porque vocês não receberam treinamento etc. Ele fechou um negócio com Roosevelt: Volta Redonda em troca de enviar tropas. Só que ele enviou tropas para atrapalhar os americanos. Ele não tinha simpatia pelos nazistas em 1940? Mudou de ideia em tão pouco tempo? Por que na sua opinião ele caiu em 1946 se tinha popularidade? O povo deixou de gostar dele?
Acontecia o seguinte, da classe média para cima, as pessoas não eram muito getulistas. Da classe média para baixo, o povo era getulista, um povo totalmente getulista.
É mais ou menos como hoje acontece com o Lula? O senhor vê semelhança entre Getúlio e Lula?
Eles têm semelhanças, sim. O Getulio era um patriota, Getulio era um individuo patriota que acreditava que o bem do Brasil estava em fortalecer a indústria nacional e que tinha um certo sentimento assim totalitário, uma tendência totalitária, então por causa das circunstâncias ele simpatizava mesmo com os alemães.
Qual foi o episódio mais marcante do século 20? O suicídio de Getúlio? O senhor se lembra?
Claro que eu me lembro! O suicídio do Getúlio realmente abalou o país.
Clima de guerra civil?
Não, não chegou a isso. O clima era de grande hostilidade de parte a parte. O Getúlio era muito querido pelo povo. Era o pai dos pobres.
Mas afinal ele foi um ditador ou um democrata?
Claro que foi ditador de 1930 a 1945... em 37 instituiu o Estado Novo que era uma ditadura de tendência direitista. Mas era muito bem quisto pelo povo.
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