Antes que me devore

Do mesmo espelho, me deparo com o reflexo trágico da Esfinge de Gizé, do pai do Terror, o conhecimento



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Meu nome é Marcel. Sou cronista – também sou um lavador de louça procrastinador, sonâmbulo que apresenta quadro de sinilóquio, jogador do time sem-camisa desde quando pele e osso e incapaz de ser telespectador de premiações do naipe Miss Universo. Mas, pra você, sou só cronista. Você, você mesmo que deve estar procurando o significado de sinilóquio, quiçá de procrastinador. Por sinal, devo lhe informar, você está na minha crônica agora. Então, vê se toma cuidado pra não tropeçar: como trata-se do começo do texto, é possível que alguma borracha te passe rasteira sem aviso prévio. Se bem que não estou escrevendo ainda, estou apenas pensando. Mentira, se você lê, é porque já está escrito – metalinguagem, tá servido? Em meio aos meus dedos, nenhuma caneta ou mesmo teclado, só a umidade advinda da mistura de água e detergente. Essa é a cena que vou começar a narrativa. Analepsia, conhece? Meu xará, Proust, gostava bastante. Voltemos no tempo, antes que seja perdido, permitindo-nos às digressões catárticas. Mas pode deixar o dicionário de lado, agora começa a crônica tal qual você espera.

Estou no banheiro – viu, a crônica começou - de frente para o espelho. Do lado direito, ligeiramente acima da orelha, alguns fios brancos chamam-me atenção. A pele está meio oleosa, um pouco por conta do calor, e isso fez brotar uma espinha interna, impossível de ser removida e ignorada. Quero lavar o rosto, mas o detergente que acabo de jogar nas mãos também é oleoso, então acho que vai piorar a situação. Lavo o rosto, saio do banheiro e cumprimento um futuro amigo, ainda apenas conhecido hoje em dia. Minha mão está molhada e, para evitar sondagens constrangedoras, faço qualquer piada que põe em neon a causa: Á-G-U-A. Ele riu, tive êxito. Mas atenta que poderia ser suor de tanta soleira que faz fora do prédio. Não pensei nisso, talvez meu comentário tenha sido sutilmente indelicado. Agora foi, já era, ele nem está pensando mais nisso – acho que não. Chegam juntos do elevador minha Ela, Julya, e um cara qualquer que acaba de olhar pra sua bunda. Não gosto e, se tivéssemos tantas vidas quanto o Sonic, decerto deceparia sua cabeça neste instante, [pulando nela?] porquanto estranho seria essa cena – afinal, eu seria o Sonic. O fato é que não sou, não temos mais de uma vida, e contento-me com a constatação que olhares são naturais. Aliás, culturais. É meio como ir a um museu e apreciar uma instalação sem querer levá-la pra casa. Perdoo o cara sem saber que o conhecerei em instantes. Agora, chacoalho sua mão esquerda – presumo que seja canhoto. É amigo antigo do meu futuro amigo. Escreve num grande jornal e eles comporão a mesa de um evento sobre Literatura, pode ser um bom contato. Todavia, retenho-me ao silêncio, gagueira ou no máximo aos balbucios, metade por nervosismo precoce, três terços por não ter o que dizer pelo ridículo que seria lançar mão de uma entrevista profissional improvisada. Então, partamos logo pro auditório onde acontecerá a palestra, a situação já me acanha e o parágrafo deveria ter se encerrado alguns caracteres atrás.

Pronto [suspiro], chegamos. Sou eu quem abre a porta do lugar, quase integralmente lotado, sob olhares proporcionais – afinal, quem seria o intruso? Todos conhecem Julya e meu futuro amigo, senão por nome, de bebedouro. Por isso, percebo certo estranhamento nas sobrancelhas intelectuais. Talvez, xenófobos acadêmicos, crentes demais na especialização do conhecimento, mesmo que não assumam isso em suas falas - não preciso estar em Lie To Me ou ser Behavorista pra compreender o comportamento corporal. O fato é que essa fragmentação do Saber está ligada à chamada Era Pós-Moderna – cuja definição é renegada, curiosamente, por seus propulsores.

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Enfim, tem lugar lááá na frente, vambora! Ok, o lugar nem é tão bom, mas senta aí, você tá só observando a crônica, não é personagem. Pegamos o fim do debate anterior, uma escritora critica a Pós-modernidade, mas defende a expansão do conceito artístico, um “tudo é arte”, o que me remete ao ready-made dadaísta de Duchamp em que o vaso sanitário alude a uma buçanha imaginária aberta ao falo. Ou seja, um objeto do cotidiano que seria arte não pela criação, mas transformação do olhar para ele. Qualquer Análise do Discurso rasteira percebe como a escritora está inserida na ideologia relativista, onde a perspectiva é quem dita a realidade, tese maior da Pós-Modernidade, tão batida e defendida pela senhorita. Eis que indago se eu também: você, que espero não me deixar falando sozinho, diga-me, trazer o meu olhar rotineiro a um jornal é arte?

Mas não, o assunto não é este. Vou retomar o texto, acho que perdi um pouco o fio da meada. Deixa-me ver qual parte da história irei contar... porra, bati com o pé no sofá. Ah, sim, meu sapato. Ainda estamos na palestra. E meu sapato, muito sujo. Será que alguém nota? E por que seria problema, a não ser por subserviência à estética ou etiqueta burguesinhas? Vá lá, eu resisto. Que mentira, já estou arrastando meu pé ao pé da cadeira pra limpá-lo. Sou contraditório, exibicionista, filhote das Superestruturas, diria Marx: uma mulher me olha fileiras atrás e eu correspondo não por interesse carnal, Julya me é mais que suficiente, mas me confundo com Narciso. Talvez, quando bebê de colo, tenha sido carente de atenção da mamãe. Interrompo a troca, digladiando-me contra meu desejo, e viro pra frente. Eis que me pego perguntando se o palestrante, amigo do meu quase-amigo, está realmente mirando fixamente a mim quando traz referências eruditas ou se minha cogitação é puramente egocêntrica. Eu não sei, mas certamente poderia formular mil hipóteses. E o pior é isso: não consigo ficar convicto, assim como sou inábil à quietude. Indago obsessivamente.

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Saio da palestra, vou ao banheiro. Olho-me de novo no vidro colado à parede, penso no desejo exibicionista pra garota; olho um mictório, penso no Dadaísmo. Toda essa psicose de analista faz eu perguntar ao espelho se há solução para Ser sem perceber, desprezo de qualquer estrutura subjetiva e sistemática de onde emergem interrogações. Do mesmo espelho, me deparo com o reflexo trágico da Esfinge de Gizé, do pai do Terror, o conhecimento. Dela, o imperativo incisivo e paradoxal: se não decifro o mundo, sou estrangulado pela paranoica necessidade de saber; se decifro, não suporto-me intensa e profundamente. Decifro-te, ego, para sobre-viver.

E você, na pia ao lado, lava a mão tal qual Pôncio Pilatos, mas não consegue terminar essa crônica sem me analisar e indagar: será que este é o Marcel procrastinador ou o Marcel cronista?

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