Acorda, amor, que hoje é Páscoa
E todo esse sofrimento tem seu quê de prazeroso – mais que amantes, somos amadores
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Páscoa chegando e eu que não sou lá chegado em datas estava no shopping – lugar que também não me apetece muito - prestes a comprar os devidos e duvidosos chocolates. Os preços dos doces estavam um tanto salgados, mas, apesar da compreensão da completa ausência de necessidade de consumi-los, me permiti descansar nas frivolidades - afinal, quem é este ser que não se aliena de nada, vive e sabe da plenitude da vida e que só tem gozo no compromisso? Decidi, então, fazer hora – em se tratando de quem é, acho o plural “horas” mais adequado - na praça de alimentação, aguardando meu atual eterno amor, minha “ela” de hoje em dia, escondendo devidamente sua esperada surpresa – datas comerciais são como partos cesarianos: marca-se hora para o que, por natureza, é poeticamente inesperado. Enfim, passei alguns minutos cumprindo o protocolo local: fiquei na velha dúvida entre fast-food e uma comidinha mais light; depois, entre qual das redes de fast-food optar; tendo escolhido uma, se me esbaldaria em colesterol ou se abonaria meu pecado com um suco de néctar. Fiz o óbvio que você – quase todos “você” - faz: me esbaldei em um famoso nº 1 tradicional, com as devidas culpas.
Em meio a gorduras trans, os mais variados estímulos visuais e adivinhações da vida de estranhos, bati o olho em outra “ela”. Fazia tempo que não a via, primeira de minhas damas, meu primeiro amor. Não estava tão bonita quanto já fora. Quando ela dizia, anos atrás: - “São seus olhos”, eu mal percebia a razão infincada ao afeto – vemos sempre com outros olhos. Estranhei não sentir nada mais do que um singelo carinho que abominava qualquer desejo instintivo sexual, a não ser pela inevitabilidade das memórias. Memórias, era só isso que carregava comigo. Então, por que cogitar uma troca de palavras? Ela, provavelmente, me ignoraria, e eu não tinha lá um interesse objetivo em qualquer interação. Talvez, a única coisa que eu queria era um sorriso, perguntar como está o tio Clayton, saber se a carreira no cursinho vingou, se conseguiu o canudo, se o dedo anelar está preenchido e se quem o fez é de merecimento – não querer mais é diferente de não ter valido a pena. De pernas um tanto trêmulas, tomei coragem, fui em sua direção, pensando "Diz alguma coisa, qualquer coisa. Qualquer coisa serve". Previ a gagueira circunstancial e optei por um cordial “Como vai você?”. Ela fingiu não se espantar em me ver e, com um desdém blasé estampado em seu sorriso amarelo, disse-me: - “Bem, bem”, até virar o rosto, da mesma maneira que diria a um pedinte desprezado ao sinal vermelho. Me recolhi à frustração, lamentando ela ter ignorado que meu cumprimento subentendia a introdução de um bate-papo casual. Se o término de um relacionamento é sua morte, este tipo de situação é o enterro. Sexta-feira da paixão: o divino amor subira aos céus.
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Hoje é sábado. Discutimos ainda agora pelos mesmos motivos de sempre e de todos vocês, senhoras e senhores. Contei sobre o encontro despretensioso com a ex e, depois, vi um recado para um alguém e me emputeci, não sei se por revanche dela ou por neurose minha. Não tem como vislumbrar um amor no mundo ocidental que esteja completamente desprezo da ideia de posse. E, para mim em particular, ateu-agnóstico por convicção intelectual, é absolutamente conflitante ter de aceitar a impossibilidade de saber com certeza sobre os desejos dela e ainda assim acreditar. Eu sei, eu sei, todo mundo tem lá os seus, inclusive eu, mas para se ter um relacionamento não adianta trabalhar com evidências – é imprescindível ter a tão famigerada fé. Deus do céu!
Ela voltou ao quarto, nos cubro com panos quentes. Puxo assunto sobre um livro que ela está lendo. Ela, pautada no perspectivismo, me diz: - “2+2 só é igual a 4 em um dado contexto”. Eu, já irracional, sou racionalista e digo que 2+2 é 4 irrefutavelmente. E então, ela deixa cair o copo em cima da cama. Nestas horas, qualquer coisa é gota d'água: discussões acadêmicas, brigas remoídas e gritos. Já são umas 3 da manhã. Há pessoas na sala, não podemos fazer escândalo. Por isso, ela se levanta, vai para a janela, avista o invisível lá fora e, caso fumasse, seria a hora para tal. Decidiu sair abruptamente, corro atrás, seguro seu braço no desespero de ser uma despedida, como faria um mocinho de novela. Ela esperneia, tenta se soltar e seguro quase como vilão. Suplico pra que fique, e ficou à contragosto. Sento-a na cama, tento pegar suas mãos sem sucesso. Constato: em termos racionais, não há o mínimo cabimento de se ter um relacionamento amoroso nos moldes que existem. Mas, voltando à velha vontade de possuir o outro, não estou disposto a vivermos como sugere “Jules e Jim”. Ouço, de súbito e intimamente, tocar Chico, me arrastando parado, querendo saber, depois de ter confundido tanto nossas pernas, com que pernas eu poderia ir embora. E todo esse sofrimento tem seu quê de prazeroso – mais que amantes, somos amadores. Eis que me entrego à única forma de se amar: prometo o incumprível e me comprometo em acreditar.
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Levanto mais cedo, percebo suas pálpebras começarem a reagir ao sol que adentra ao quarto, passando pela persiana quebrada, dando-lhe um sublime “Bom dia”. Não esqueçamos a história e o tanto de resíduos de tantos amores que foram e ficaram, que hoje você herda. Sinto como se você fosse uma nova “ela”, que é nada menos que meu amor. Eu sei, isso te deixa com ciúmes, mas não ligue, amor não é coisa que se acabe. É como se o peito fosse uma tela e os amores esboços, rabiscos, desenhos. Você é a pintura que resulta de todos os traços feitos dentro de mim.
Acorda. Hoje é domingo, meu amor, dia de ressurreição. Renasçamos, não do zero, mas do momento em que negamos a aritmética e que um mais um dava um. O instante sem fim em que eu sou mais eu porque sou você.
E vê se vai na varanda procurar os ovos, porque hoje é Páscoa.
Marcel Albuquerque é cronista
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