ABI resgata correspondência de Florestan Fernandes e Antonio Candido

A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) lançará neste domingo (10/7), no YouTube, a série "ABI Teatro", um espaço para reconhecer a existência de vida inteligente no Brasil

Florestan Fernandes Júnior e o diretor do espetáculo, Oswaldo Mendes
Florestan Fernandes Júnior e o diretor do espetáculo, Oswaldo Mendes (Foto: Reprodução)


✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.

ConJur - A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) lançará neste domingo (10/7), no YouTube, a série "ABI Teatro", um espaço para reconhecer a existência de vida inteligente no Brasil. Não por acaso, reverenciará dois ícones da literatura e da Sociologia do país: Florestan Fernandes e Antonio Candido.

 O trabalho pode ser visto a partir das 19h no canal da ABI.

continua após o anúncio

A peça "Vicente e Antonio", do dramaturgo, ator e diretor Oswaldo Mendes, é a história da amizade de Florestan e Candido, baseada na correspondência trocada por eles a partir de 1942. Escrita e gravada no período do isolamento social recente, foi exibida em julho de 2020, no centenário de Florestan Fernandes.

A direção da leitura dramática é de Eduardo Tolentino de Araújo; o elenco contou com Walter Breda, Augusto Zacchi, Caetano O'Maihlen e Oswaldo Mendes; a direção de imagens coube a Lilian Bento; e a produção, a Florestan Fernandes Júnior. A apresentação será sucedida de um bate-papo com a plateia.

continua após o anúncio

A peça foi escolhida pela relação estreita dos personagens com o chamado "jornalismo cultural", dos anos 1940 até a morte de Florestan, em 1995. A apresentação e o debate serão conduzidos por Maurini de Souza, teatróloga e professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná.

O projeto é que "Vicente e Antonio" estreie no teatro presencial, se possível ainda neste ano.

continua após o anúncio

Responsável pela pesquisa que resgatou a passagem especial da cultura brasileira, o jornalista Florestan Fernandes Jr., a pedido deste site, relatou a exegese da peça engendrada por Oswaldo Mendes. Leia o texto:

"Em setembro de 2019, Oswaldo me convidou para comentar a leitura dramática de 'Murro em Ponta de Faca'. O texto foi escrito por Augusto Boal em 1974 e conta o drama de seis exilados brasileiros em sua trajetória pela América do Sul e Europa. Experiência parecida com a de meu pai, aposentado compulsoriamente pelo AI-5 em dezembro de 1968 e obrigado ao exílio.

continua após o anúncio

A diferença é que Florestan partiu sozinho, deixando no Brasil a família: mulher, seis filhos e uma neta. A minha fala, após a leitura do texto de Boal, foi pontuada por trechos das cartas do exílio de meu pai, principalmente aquelas endereçadas a minha mãe, numa correspondência que cobre a primeira metade dos anos 70, desnuda as marcas do exílio, da solidão e da impotência de um intelectual distante de seus amores, de seu povo e de suas origens.

Em uma das cartas para a esposa, dona Myrian, meu pai afirma: 'Retirado do seu ambiente, o intelectual não tem vida, é uma planta de estufa, que morre precocemente'. O mesmo tema retorna em outra carta, desta vez endereçada à amiga Barbara Freitag: 'Torna-se cada vez mais difícil estabelecer uma ponte entre o que sou e o que faço e o que desejaria ser e fazer... Às vezes, olho para mim mesmo com certa ironia, pois me especializei em dar murros em ponta de faca e agora que me vejo lançado realmente no mercado, como mercadoria estimada em dólares, sinto... Que seria melhor vender sorvetes numa rua quente de São Paulo do que ser professor de Sociologia no norte das Américas'.

continua após o anúncio

De Toronto, no Canadá, Florestan relata em carta enviada para minha mãe a dor provocada pela perda da sua terra, do seu clima e de sua gente: 'O frio é desanimador (...), com o capote que você viu, eu me sinto como se estivesse pelado quando ando pela rua. Ontem à noite fui a um cinema aqui perto, pois me sentia cansado e deprimido. Para voltar ao apartamento, tinha de andar uns cinco ou seis quarteirões. Com a neve no chão e a neve que estava caindo, parecia que estava arrastando o mundo nas costas'.

Após a leitura de meu texto no Sesc Bela Vista, muitos na plateia estavam aos prantos. Oswaldo, emocionado, me abraçou e sugeriu que eu escrevesse um livro sobre as correspondências de meu pai. Devolvi a sugestão com um desafio: que Oswaldinho escrevesse uma peça sobre a amizade de Florestan e Antonio Candido, baseada nas cartas trocadas pelos dois em mais de 50 anos.

continua após o anúncio

Ninguém melhor que Oswaldo, com o seu olhar acurado e sensível, para escrever sobre a amizade dos dois grandes intelectuais. Após algumas semanas, nos encontramos na Casa do Saber, com a participação de Mario Vitor Santos. Entre um café e algumas fotos para registrar a conversa, contei detalhes de momentos marcantes na vida dos dois amigos, do beijo no rosto que eles trocavam ao se encontrar. Falei, em especial, sobre uma das cartas trocadas por eles. Nela, foi descrito um fato assemelhado a uma cena de cinema: em 1976, Florestan estava desembarcando no aeroporto de Nova York, vindo de Toronto. Vê, através do vidro que separa as alas de embarque e desembarque, Antonio Candido embarcando para o Brasil. Os dois tentam uma conversa, mas o vidro blindado impede que escutem a voz um do outro. Em silêncio, eles pousam as mãos no vidro, como se estivessem se tocando de verdade.

Naquele mesmo dia, meu pai escreveu para o amigo: 'Foi bom ver seu rosto tão amado de dentro daquela gaiola e ter visto que Gilda estava com você. Vocês formavam um lindo par. Os dois estavam com ótima aparência e deram uma nota de alegria, da qual não me esquecerei, a essa fuga do quotidiano'. Oswaldo ficou encantado e, para minha felicidade, aceitou o desafio. Ficou acertado que a estreia da peça seria no dia 22 de julho de 2020, data do centenário de meu pai. Levando em conta os ensaios e a produção da peça, Oswaldo teria cerca de seis meses para fechar o texto.

continua após o anúncio

Saí em busca das cartas e fotografias dos parentes, colegas e amigos mais próximos, como Fernando Henrique Cardoso, Celso Furtado, Gilberto Freire, Roger Bastide e outros. Passei meses lembrando e escrevendo conversas que tive com Antonio Candido e com meu pai. Muitas vezes contei com a ajuda fundamental de minha irmã, Heloisa Fernandes Silveira, que trouxe informações preciosas, que havia guardado na memória.

Eu e o Oswaldo fizemos, em tempo recorde, o levantamento de artigos, entrevistas, textos de palestras e livros dos dois personagens. Oswaldo submergiu nessa pesquisa e, com frequência diária, conversávamos pelo telefone para dirimir algumas dúvidas.

Eis que surge a Covid-19. A pandemia nos impôs uma dificuldade intransponível: os teatros estavam fechados e seria impossível montar a peça. Decidimos gravar a leitura dramatizada da peça, atendendo a todo o protocolo sanitário das autoridades de saúde.

Da gravação, concluída em um único dia, participaram apenas 12 pessoas, entre atores, direção e produção de vídeo. O diretor, Eduardo Tolentino, primo de Antonio Candido, fez as marcações fixas dos atores, com distanciamento de três metros. O resultado não poderia ter sido melhor: a direção, interpretação e os cortes de câmara criaram uma nova linguagem teatral.

A estreia foi vista por milhares de pessoas, através da exibição simultânea de um pool de sites.  O formato inovador da peça, hospedada em plataforma de compartilhamento de vídeos na internet (YouTube), permitiu que alcançasse número superlativo de espectadores, o que não seria possível no formato teatral tradicional.

Os comentários nas páginas do YouTube registram a emoção de uma plateia virtual: relatos de lágrimas escorrendo dos olhos de pessoas que acreditam no amor vencendo o ódio, na amizade que dá a perfeita dimensão daquilo que nos define seres humanos.

Eu estava certo. Oswaldo foi capaz de capturar e expressar, com seu texto primoroso, em apenas uma hora e 20 minutos de espetáculo, a essência dessa linda e inspiradora amizade. 'Vicente e Antonio: a história de uma amizade', por toda a emoção e inovação que traduz, é um belo presente aos cem anos de Florestan".

iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

Comentários

Os comentários aqui postados expressam a opinião dos seus autores, responsáveis por seu teor, e não do 247

continua após o anúncio

Ao vivo na TV 247

Cortes 247