A biblioteca africana e o poeta Craveirinha

Não temos dívidas com a África. Uma Mãe não cobra de seus filhos. Nós, brasileiros somos filhos de africanos. Todos, sem exceção



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Era o 2º semestre de 2001. Eu lecionava 3 disciplinas no Instituto Politécnico e Universitário – ISPU de Quelimane. Curso de ciências jurídicas. Moçambique. A pequena biblioteca tinha uma moça sorridente de pouca idade e vasta caminhada. O dia que me vem à mente era o enterro de seu pai. Um africano que morreu de malária. Fomos ao velório na casa da família. A casa com chão de terra vermelha batida era típica. Casa de gente humilde. Mas a tristeza da morte não tem casta.

Há quem diga que os sofredores contumazes não solenizam a morte. Ninguém morre em África. Deixamos a família com sua dor e despedida. A noite escura e estrelada de Quelimane era luz para a inquietude dos espíritos. O Rio dos Bons Sinais e seu navios acesos guiavam o professor até os seus alunos que o ensinavam uma nova vida além do seu continente. Os exames iriam começar. Folhas distribuídas com questões de “v” ou “f”.

Escolher entre verdadeiro e falso não foi problema para os alunos. Em que pese não conhecerem até aquele momento esse tipo de prova. Afinal, os africanos já conheciam a lógica hermética maniqueísta imposta pelo secularismo. Socialismo e Capitalismo, Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) e Renamo (Resistência Nacional Moçambicana), Negros e Brancos, Acordo de Paz e Ultimato, Islamismo e Cristianismo, Moçambique e Europa. Em meia hora de prova a energia elétrica caiu. A Faculdade não tinha gerador.

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O que fazer? Velas. Fomos todos comprar velas. Assim foram feitos os exames. À luz de velas. Luz. Ao voltar para casa passei antes na biblioteca. A moça não estava lá como sempre estava. Nessa noite estava com o seu pai. Em África ninguém morre. Peguei um livro do poeta moçambicano José Craveirinha e levei para casa. Li: Em meus lábios grossos fermenta a farinha do sarcasmo que coloniza minha Mãe África e meus ouvidos não levam ao coração seco misturado com o sal dos pensamentos a sintaxe anglo-latina de novas palavras.

Amam-me com a única verdade dos seus evangelhos a mística das suas missangas e da sua pólvora a lógica das suas rajadas de metralhadora e enchem-me de sons que não sinto das canções das suas terras que não conheço. E dão-me a única permitida grandeza dos seus heróis a glória dos seus monumentos de pedra a sedução dos seus pornográficos Rolls Royce e a dádiva quotidiana das suas casas de passe. Ajoelham-me aos pés dos seus deuses de cabelos lisos e na minha boca diluem o abstracto sabor da carne de hóstias em milionésimas circunferências hipóteses católicas de pão. Comi. Lembrei de Minas. Dormi. Sonhei com a iluminada noite moçambicana. Mãe África de Craveirinha que ainda clama por liberdade. Não temos dívidas com a África. Uma Mãe não cobra de seus filhos. Nós, brasileiros somos filhos de africanos. Todos, sem exceção. Feliz ano novo. De muita luz. Minha amada Mãe África.

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