Um pouco da história da USP

Escolha de reitor pela própria Universidade de São Paulo é um acerto de contas com seus fundadores



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Um dos maiores entreveros quando se vai discutir a greve na USP está na discussão sobre a autonomia universitária. Quando lançada abruptamente pela mídia nos lares das pessoas esta ideia soa para muitos como “os uspianos se sentem acima da lei”. Motivado por este desentendimento resolvi escrever este texto na tentativa de esclarecer alguns pontos sobre o assunto.

A fundação da USP deveu-se a um grupo de empresários e intelectuais liberais que tinham como ideólogo o educador Fernando de Azevedo. Nossa instituição nasceu num momento político particular, quando um dos membros desse grupo liberal, Armando Salles de Oliveira, foi nomeado interventor por Getúlio Vargas. Adentrando no pensamento de Fernando de Azevedo talvez consigamos entender um pouco melhor a concepção liberal de Universidade desse grupo. Para Azevedo, o Estado devia ser o grande promotor da educação pública e, também, da Universidade. Afirmava ele que as “elites” deveriam ser educadas antes das “massas”, pois cabia às primeiras a educação das segundas. As elites correspondiam a uma classe aberta e acessível que se recrutava e se renovava em todos os segmentos sociais. Aos mais inteligentes e dedicados, estava reservado um lugar entre as elites, mesmo estas pessoas tendo nascido dentre as classes mais pobres da sociedade [1].

O grupo uspiano, com Azevedo à frente, fazia críticas à já constituída Universidade do Rio de Janeiro e propunha que as faculdades da recém estabelecida Universidade fossem integradas sob um sistema único, mas com direção autônoma. Assim, desde o início já se cogitava uma Universidade de São Paulo com uma administração federativa internamente. Outro aspecto interessante de se ressaltar no projeto de criação da USP é a respeito da escolha do reitor, que se daria inteiramente dentro da Universidade, de acordo com o ideário liberal de autonomia universitária e afastamento das disputas políticas. Porém, essa medida foi revogada por resolução do governo varguista. O professor Ernesto de Souza Campos, na sua História da Universidade de São Paulo, teve acesso às atas do Conselho Universitário e dá detalhes de como esse assunto foi discutido:

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“Em 13 de agosto um dos conselheiros acentuou que o decreto liberal de 25 de janeiro de 1934 havia sido modificado nos estatutos, em sentido restritivo da autonomia da instituição. Respondeu outro conselheiro, esclarecendo o assunto. Declarou que, pairando dúvidas quanto ao motivo porque o Conselho Universitário havia adotado disposição até certo ponto cerceadora da autonomia, convinha que tudo se esclarecesse perfeitamente. Representava esta elucidação um ponto importante para a história da instituição. Discorreu, então recordando preliminares da fundação universitária. Antes do decreto de 25 de janeiro de 1934, que criou a Universidade, o governo do Estado ouviu uma comissão de dez professores, sete dos quais entraram depois para o Conselho, e ao mesmo pertenciam quando foram elaborados os estatutos. A comissão referida, naquele período preliminar, havia proposto medidas liberais, tais como o da eleição do Reitor pelo Conselho e a indicação dos diretores de escolas pelas respectivas congregações. Propôs essas medidas e o governo aceitou, incluindo tais regras no decreto de 25 de janeiro. Posteriormente, porém, foi decretada uma lei federal, exigindo que nas universidades estaduais o reitor e diretores de escolas fossem nomeados pelo Governo. Assim, o Conselho, ao elaborar seus estatutos, teve de subordiná-los a esta lei. Portanto, as disposições que o conselheiro reclamante considerava como infensas à autonomia da Universidade não partiram do poder público estadual, nem do Conselho Universitário”. [2]

Como dito acima, o grupo liberal que fundou a USP primava pela autonomia administrativa da Universidade em relação às esferas governamentais, embora esse auspício tenha sido mutilado pelo governo federal de Vargas. Mas mesmo esse primor por autonomia, que se colocava como dissociação de intrigas políticas, tinha, no fundo, caráter político. O que é importante levarmos em conta é que a fundação da USP, e a sua concepção como instância autônoma, está associada a uma relativa resistência das elites paulistas frente ao projeto federal, pois, após a derrota em 1932, as elites paulistas deram-se conta da necessidade de buscar novos caminhos para a compreensão do tecido social brasileiro. Ante a queda de sua hegemonia sobre a nação, São Paulo viu na instituição da Universidade uma forma de modernizar e preparar melhor seus quadros dirigentes.

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A mesma autonomia apregoada frente ao governo federal também estava presente no modelo federativo que regia as unidades que constituíam a USP, pois seu nascimento ocorreu com a formação de um conglomerado de escolas superiores. Essas escolas que se reuniram para formar a USP não desfizeram suas antigas relações de poder, permanecendo fechadas, sempre resistentes aos movimentos centrípetos. Tal fato dificultou a formação de uma Universidade coerente, realmente integrada e multifuncional. “Esse fato dá as dimensões da incoerência da USP. Um conglomerado de escolas cuja dinâmica conduziu à revitalização do padrão tradicional de escolas superiores agrupadas como se fossem uma universidade unida”. [3] A esperança nessa batalha contra o tradicionalismo acadêmico estava na fundação de uma “microuniversidade” dentro da universidade. Despida de tradição e poder político, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras era a única unidade que poderia demonstrar o quão salutar e dinâmico poderia ser a real unificação dos diversos campos do ensino superior. Quando foi criada, a FFCL (atual FFLCH) foi chamada de “coração” da USP, o que claramente incomodou as tradicionais escolas superiores, as quais não viam com bons olhos o fato de que uma faculdade despida de tradição e formação elitista arrogar para si a centralidade dentro da universidade. E foi justamente no solo dessa Faculdade que brotou um pensamento crítico que colocava em xeque a organização tradicionalista da USP. Na década de 60 o “Frankenstein uspiano” foi atacado por sua má formação institucional, seu paternalismo, nepotismo e servilismo. Posto isso, pode-se perceber que por trás do discurso autonomista também se escondia o ímpeto de conservação do status quo das escolas tradicionais, as quais jamais admitiriam que a FFCL atingisse um primado dentro da universidade.

Notas:

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[1] Ver AZEVEDO, Fernando de. A Cultura brasileira. 4ª Ed. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1964.

[2] CAMPOS, Ernesto de Souza. História da Universidade de São Paulo. São Paulo: EDUSP, 2004, p. 121.

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[3] FERNANDES, Florestan. USP: passado e presente. In. Ciência e Cultura. São Paulo: SBPC, 37 (7) suplemento, 1985, pp. 102-117.

Renan Perondi é mestrando do Programa de História Social da USP.

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