Sinto lhe dizer

A porta da cozinha bate, mal espero, ela ainda esbaforida, indago como criança impressionada com acidente, pedindo que responda sobriamente, sem drama algum: “Amor, meu grande amor, você ainda me ama?”



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Acabo de sair do consultório, desço os vinte e poucos degraus, desvio de panfletos pelos paralelepípedos sobrelotados da calçada estreita. Não gosto, mas pego um folder, curioso e minimamente solidário. Meu pulso dói, por isso o ortopedista. À caminho de casa, passo por todos os lugares de sempre, alguns invisitáveis, e encaro circunstância condizente com os agasalhos. Um par, o mesmo de todas as noites, não sei se casal, abraçava-se em meio às tulipas devidamente borbulhantes de cerveja, num pé-sujo de uma miséria nem pra intelectualóide apreciar. De um lado, uma mulher aberta, etilicamente dilacerada, entregue a braços roliços. Do outro, o dono – dos braços e um pouco dela. Ela, embriagada, muito efusiva. Ele, sóbrio, sóbrio demais, mas ali presente, tal qual ontem, anteontem, mês passado, amanhã. Ela, bêbada decerto. Ele, pelo olhar de domingo à noite em plena sexta, suponho equilibrista. Aquilo mexeu comigo.

Chego em casa, a minha Ela ainda não está. Bato pés ansiosos por uma hora e vinte e seis minutos. A porta da cozinha bate, sinal de que foi aberta, mal espero, ela ainda esbaforida, mão sujas da rua, indago como criança impressionada com acidente, pedindo que responda sobriamente, sem drama algum: “Amor, meu grande amor, você ainda me ama?”. Ela se assusta, pergunta se houve algo, eu conto o trajeto de casa, sabemos do percurso da semana e consensualizamos por contraste ao vazio que não temos nos encaixado, tal qual o abraço na birosca. Angustiante, dentre tantos ouvidos indispostos e bocas forçosamente polidas, concordar apenas com a divergência. Discutimos, entre farpas e teorias, fazemos citações, entramos em um palco, declamamos versos em performance e eu nos puxo para a realidade novamente. “Me responde... ainda?”. Ela diz que depende do que é o amor, do quão colorido espero que seja, de quantos pontos na escala de disposição ao abraço se faz um amor. Me replica, passando-me a culpa, como se eu tivesse perguntado por peso na consciência. O fato é que toda vez que estamos mal, de vistas turvas e inebriadas, dando pouca liga, não há muita clareza. Ainda assim, amamos um sobre o outro, dormimos abraçados – e nos soltamos à noite, devido à posição desconfortável. Enfatiza que gosta muito de mim, mas faltou o verbo certo.

Dia seguinte, amanheço mais tranquilo. A noite, colada aos afagos e suspiros, é habilíssima em parar ponteiros e desviar olhares. Passo minha roupa, passa uma hora hora e passo maus bocados no trânsito. Engarrafamento por conta de uma batida, adulto nada atento, pouco curioso e solidário, lembro Dela e começa o dia. Tudo remete, do broche na bolsa da grávida sentada dois bancos à frente, até o pagode – veja só – que me encontra receptivo para perceber o incrível fato de que descreve melhor meu relacionamento que Chico ou Queen. Olho pra fora da janela, hoje está sol, pego o que há de brisa e avisto no fundo do cenário um cemitério. De rabo de olho, enxergo uns e outros fazendo o sinal da cruz. Eu não sei mais rezar, volto mais uma vez a Ela. Desvio para a realidade, como quem reluta desesperado pra não se afogar, re-olho os sepulcros ao longe e memoro que aquele era o lugar onde fui pela primeira vez a um velório. Filho de professor meu, conheceu a morte sem sequer ter engatinhado. Quase dez anos se passaram, porém recordo do semblante nocauteado do pai órfão. Muitos abraços, nenhum deles suficiente. Em meio a tantos, escutei balbucios de quem não podia fazer nada, mas solícitos a dizer “Eu sei bem como é isso”. Eu não sabia o que dizer, tampouco o que falar, quem sabe epígrafe de um bom livro, frase colada da internet. E eu, eu não sabia bem como era aquilo – sempre quis saber se alguém realmente sabia. Nada pude, apenas compartilhei do sofrimento, sem abraços, sem dizeres, apenas um sinal com a cabeça.

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Os pneus rodaram, avançamos no asfalto e cheguei até a esquecer do calor que me suava a camisa – sinto até que imaginava outra coisa, penso que passageira. Olho pra fora do ônibus mais uma vez, vi uma placa sobre acupuntura, recordo da teimosia Dela em me aconselhar e da minha em dizer não. Ela sente a mesma coisa, pulso pouco firme. Escrevemos demais: poemas, artigos, crônicas. Muito drama pra poucas mãos...

Onde estamos agora? Na semana que vem. Aliás, hoje. São sete e alguma coisa, já devo ser o próximo a ser atendido. Entro na sala, esbarro na mesa de mogno, me impressiono com o ar gélido, com os traços muito ocidentais no rosto do doutor e da decoração, enquanto permaneço de pé observando o cenário com olhos realistas e uma funcionária entra e sai. O homem de branco me oferece café, aceito. Me pergunta se quero açúcar ou adoçante, queria doce verdadeiro – às vezes, aleatoriamente, tenho paladar de formiga. Após conferir, percebe que a garrafa térmica da sala está vazia, eis que pede, por telefone, para a secretária trazer, ainda que houvesse alguém entrando e saindo capaz de fazê-lo. A outra senhorita, secretária, docilizada apesar do avançar da hora, avisa que o café acaba muito rápido e que só há o descafeinado, mas que poderia fazer mais. Eu rejeito duplamente.

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Enfim, começa a consulta protocolar. O doutor perguntou do que se trata. O psicanalista seria no dia seguinte, contudo deito-me já de antemão, à espera de qualquer exame prévio, ao passo que ele mexe em algumas agulhas, e eu disposto a lhe contar tudo. Sua voz me corta e quer saber se é uma dor normal. Mas como eu saberia disso? Remexo a cara e o tutano e gaguejo. Vivo sob o fardo e magnitude de ser sempre eu mesmo, único e unilateral, mesmo que capaz de ter um lado abarcador. Não faço a mínima ideia se a dor que costumo suportar é a que se tem expectativa ou, ainda, que é encontrada em um tipo médio, segundo qualquer estatística nebulosa – que nunca participo, mas sabe de mim.

Eu afirmo o dizível: “Sinto lhe dizer, eu sinceramente não sei”. Digo que não acredito que seja realmente comunicável, ou, ao menos, que seja possível comparar minha sensação. O cara fala que, caso todos tivessem conhecimento do que acontece por dentro do ser humano, seria fácil explicar. Gosto da ideia – apenas por segundos. Olho pra dentro de mim, humano, mas ainda eu, e encontro resposta. Lhe comunico: para nomear algo, basta um nomeador, e o fato de nomearmos algo em comum não quer dizer que exista qualquer coisa, de fato palpável, realmente igual.

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Precisamos seguir adiante e ele pede apenas que eu descreva o que sinto, como é, sem nome. O bolso treme, mensagem de celular: “Vem pra casa, fiz torta de limão!”. Então respondo sem a mínima dúvida: Doutor, acho que é amor.

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