O deslize: uma história de corrupção

Confira nesta história como funciona o mecanismo do corruptor. Qualquer semelhança com a realidade é intencional



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PRIMEIRA PARTE

— Dimas!

Ninguém respondeu.

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— Diiiimaaas!

Afobado e pressuroso como um cãozinho de madame que acaba de ser requestado como um estalo de dedos, o chefe de gabinete abriu a larga porta de madeira enfeitada por um alto relevo representando os orixás.

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— Pois, não, excelência.

— Preciso chamar duas vezes, Dimas? — perguntou o governador.

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— É que eu... eu estava apertado, excelência...

O governador pigarreou, saboreando o constrangimento do subordinado e o autorizou a sentar-se.

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— Então, senhor Dimas, o Salgado já caiu em tentação?

— Ainda não, excelência.

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— Como ainda não? — estranhou o governador — Seis meses de governo e nada?

— O homem parece um santo, excelência.

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— Santo?! — duvidou o governador — Santo?! Só se for do pau oco, senhor Dimas. Não existem santos, mas virtudes mal testadas.

O chefe de gabinete sorriu, amarelo.

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— Mas ele parece imune às safadezas do cargo — deixou escapar o subordinado, logo se arrependendo da inconveniência.

— Safadeza?! — reagiu o governador. — Safadeza, senhor Dimas ?! Esta é uma administração séria. Aqui não existe safadeza. Deslize! Deslize, homem de Deus!

— Foi o que eu quis dizer, com a minha pressa. Perdoe a força de expressão. Deslize, sim senhor. O homem parece imune a deslizes.

O governador aquiesceu, satisfeito com a demonstração de magnanimidade diante do funcionário inferior.

— É isso, mesmo, senhor Dimas. Bom achado. Deslize!

— Obrigado. Obrigado, excelência.

— Mas a expressão foi minha — cobrou o governador.

— Sem dúvida. Meritosa, excelência.

O governador fechou os olhos, por alguns instantes, parecendo elocubrar uma saída para aquela situação incômoda. Por fim, quis saber:

— Como não caiu em tentação? Não lhe facilitamos o caminho, cumulando-o de poderes nas licitações?

— Facilitamos, excelência.

— Eu facilitei. Eu facilitei, não se esqueça, senhor Dimas.

— De fato, o senhor facilitou-lhe o caminho, excelência.

— E então, homem de Deus? Porque o Salgado ainda não caiu em tentação?

Dimas pensou um pouco antes de responder e, depois, julgando-se um expert nas fraquezas humanas, sentenciou:

— Parece que o butim não foi suficiente para despertar-lhe a cobiça, excelência.

— Cobiça que sobra em você, Dimas. O chefe de gabinete soltou um risinho, escabreado.

— Nem tanto. Nem tanto, excelência.

O governador ficou sério, mirou o retrato do seu antecessor, pendurado ao lado do seu próprio quadro em todas as repartições. Aquele, sim, fora seu mestre. Porém, livre das primeiras e decisivas influências, ele seguiu, de vento em popa, carreira solo. Hoje, em nada devia ao professor, aprendera a lição de política e procurava cortar os passos de qualquer outro que lhe ameaçasse a carreira. Afinal, era sempre fácil criar um escândalo nos jornais e afastar o enxerido do caminho.

— Olha, Dimas — disse, saindo do enlevo ególatra —, o Salgado tem que cair em tentação, sim. Você sabe que o segredo do nosso poder é formar bons quadros técnicos e deixar que cometam deslizes, até certo limite. Assim, todos ficam em nossas mãos, manietados, amarrados como cordeirinhos. O segredo é este: permita que deslizem, feche os olhos para as pequenas faltas e eles, pombos manipuláveis, comem na palma da mão. Portanto, temos que instigar a cobiça do Salgado. Sabe como? Sabe como, Dimas?

— Não, excelência. Rogo que me diga, excelência.

O governador demorou de responder, saboreando sua sapiência. O subalterno aguardava em gotejante expectativa.

— Simples. Muito simples, senhor Dimas. Aumentemos o poder dele e frouxemos a fiscalização. Com mais dinheiro em jogo, cairá em tentação. Logo veremos, logo veremos, senhor Dimas.

— Perfeito, governador.

— Excelência...

— Desculpe. Perfeito, genial, excelência!

Assim foi feito. Dobraram, triplicaram, decuplicaram o orçamento sob a responsabilidade do Salgado. Mais seis meses se passaram, um ano, um ano e meio, dois.

(FIM DA PRIMEIRA PARTE)

Na próxima semana, confira a segunda e última parte desta crônica que desvela o pathos da corrupção, com o tempero da Bahia e o jeitinho brasileiro

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