Há 40 anos morria Lamarca, o Che brasileiro
Ex-companheiro de Dilma na guerrilha, ele foi atocaiado e morto na Bahia. Ao 247, outro combatente, Celso Lungaretti, revela o perfil do capito que desertou do Exrcito, para quem defende um status semelhante ao de Tiradentes
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Claudio Julio Tognolli_247 – Neste sábado completam-se 40 anos que o capitão do Exército Carlos Lamarca, nascido no Rio de Janeiro em 1937, foi atocaiado e morto no interior da Bahia. Lamarca desertou em 1969, e converteu-se num dos comandantes da Vanguarda Popular Revolucionária, VPR, grupo de guerrilha armada no qual também lutou a presidente Dilma Rousseff. Tido e havido como o Che Guevara brasileiro, Lamarca foi elevado ao status do maior inimigo do governo militar. Caçado pelas forças de segurança por todo o país, ele comandou diversos assaltos a bancos, montou um foco guerrilheiro na região do Vale do Ribeira, no sul do estado de São Paulo. Liderou o grupo que seqüestrou o embaixador suíço Giovanni Bucher, no Rio de Janeiro, em 1970, em troca da libertação de 70 presos políticos.
Perseguido por mais de dois anos pelos militares, foi localizado e morto no interior da Bahia 17 de setembro de 1971. Trinta e seis anos após sua morte, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, sob o ministro Tarso Genro, dedicou sua sessão inaugural a promovê-lo a coronel do Exército. Lamarca teve reconhecida a condição de perseguidos políticos de sua viúva e filhos.
Ninguém melhor para falar do mito Lamarca do que o escritor e jornalista paulistano Celso Lungaretti. Nascido em 1950, autor do livro "Náufrago da Utopia" (Geração Editorial, 2005), Lungaretti lutou com Lamarca na Vanguarda Popular Revolucionária.
Falsamente acusado de delator da área de treinamento da VPR em Registro/SP, conseguiu restabelecer a verdade dos fatos no final de 2004, a partir de um relatório secreto militar que veio a público e da intervenção em seu favor do historiador Jacob Gorender, que o inocentou dessa acusação em carta publicada na Folha de S. Paulo. “Ele era um revolucionário sincero, extremamente dedicado à causa e disposto a todos os sacrifícios. A cultura militar também era muito forte nele, de uma forma peculiar: identificava-se com os subalternos, não com os outros oficiais. Tinha uma relação de zelo e carinho para com os comandados, ao passo que sempre se referia com desdém aos graduados”, relata Lungaretti ao Brasil 247.
“Lembro-me de que, na área de treinamento de Registro, ele até se emocionava ao conversar conosco sobre a rotina simples da caserna, como a brincadeira que a soldadesca fazia quando eram tocados certos temas nas paradas. Segundo ele, pelos cantos da boca, cantavam: "A mãe do tenente/ morde o pau da gente". E, ao rufar dos tambores, "bunda! bunda!"...Lamarca chegou à VPR com um conhecimento muito superficial das teses marxistas e correu atrás do tempo perdido, devorando livros nos longos períodos de inatividade em "aparelhos". Mas, sempre coisas muito objetivas, diretas, operacionais. Não lhe interessavam temas teóricos como os desvios do stalinismo e a importância da verdade como fator revolucionário.” Prossegue Lungaretti: “Daí certas "versões convenientes" que deu, nos momentos em que julgou atenderem melhor aos interesses superiores da revolução. Hoje percebo que ele não fazia por mal. Apenas, acreditou que isto fosse necessário para combater com alguma chance de êxito um inimigo totalmente sem escrúpulos”.
Lamarca era um matador? Lungaretti repele a tese. “Nem de longe era um sanguinário. Desde o primeiro momento percebi que ele mataria pela causa, se considerasse imprescindível, mas não por prazer ou por vingança. A clandestinidade lhe pesava, como a todos nós, mas não ao ponto do desequilíbrio. Sua maior contribuição às concepções guerrilheiras foi o conceito de coluna móvel estratégica. Ou seja, a coluna guerrilheira não teria o papel de crescer até se transformar num exército revolucionário, pois a repressão a aniquilaria antes disso e os moradores da região sofreriam terríveis retaliações”.
Segundo Lungaretti, a ideia de Lamarca era que a coluna guerrilheira “enterrasse previamente munição e mantimentos por uma extensa área, que deveria ser bem mapeada pelos guerrilheiros antes de entrarem em ação. Aí, assestariam golpes nos inimigos, escapando graças à sua mobilidade e conhecimento do terreno. Então, seu papel seria de símbolo vivo da possibilidade de se derrotar as Forças Armadas. Utilizando tal símbolo, a propaganda revolucionária, nas cidades e nos campos, iria estimulando a união de todas as forças contrárias à ditadura, até sua derrubada. Ou seja, o exército revolucionário se formaria a partir do exemplo dado pela coluna, mas não em torno da coluna.
É uma concepção que ninguém tinha enunciado até então. Lamarca a lançou”.
Leia, abaixo, outras percepções de Lungaretti sobre o Lamarca que ele conheceu
O Legado de Lamarca:
“O mesmo de Tiradentes: sua visão de que deveria dedicar a vida e arriscar-se à morte para concretizar seus ideais. Mesmo que travando uma luta tão desigual, com chances ínfimas de êxito no começo e nenhuma no final. Na boca dele também caberia o "dez vidas eu tivesse, dez vidas eu daria" do inconfidente”.
Pelo que Lamarca lutaria hoje:
“É uma incógnita. Com certeza, defendendo sempre o povão, os trabalhadores e os excluídos. Era com eles que se identificava -- tinha muito orgulho de ser filho de sapateiro, não de abastados, e mesmo assim haver chegado aonde chegou na carreira militar. Ficávamos sensibilizados ouvindo-o falar da pena que sentia da gente comum oprimida pelos israelenses, quando integrou a missão da ONU em Suez. E não necessariamente por meio da luta armada, pois ele estava bem consciente das dificuldades inerentes, mesmo quando se combate uma ditadura. E detestava perdas inúteis.
Então, o mais provável é que hoje atuasse dentro dos limites de uma democracia. Mas, claro, é só minha avaliação pessoal”.
Mortes:
“Destacando poucos episódios da sua vida, evitei falar sobre o pior deles, a decisão de matarem o ten. Alberto Mendes Jr. -- até compreensível para quem priorizava a salvação dos seus comandados, mas politicamente desastrosa. Seria melhor terem corrido o risco de deixá-lo vivo. Já o atentado ao QG do II Exército no qual morreu o recruta Kotzel, na minha avaliação, nada teve a ver com o Lamarca. Levando em conta datas e outros detalhes, concluí que seu envolvimento (como autor da sugestão) foi apenas boato”.
Imprensa:
“Quando falo na dificuldade de se travar uma luta com tamanha desigualdade de forças e em circunstâncias tão dramáticas, na verdade estou expondo o motivo que me levou a ser mais condescendente com ele. Quando a imprensa caiu matando sobre sua memória naquele episódio da anistia e promoção a coronel, segui meu impulso de a defender. Foi mais instinto do que decisão pensada. E, desde então, tenho procurado equilibrar os pratos da balança, transcendendo as mágoas pessoais”
Morte de Lamarca:
“Neste sábado (17) se completarão 40 anos da morte do comandante Carlos Lamarca, que estava debilitado e indefeso quando foi covardemente executado pela repressão ditatorial no sertão baiano, em 17 de setembro de 1971, numa típica vendetta de gangstêres. O que há, ainda, para se dizer sobre Lamarca, o personagem brasileiro mais próximo de Che Guevara, por história de vida e pela forma como encontrou a morte? Foi, acima de tudo, um homem que não se conformou com as injustiças do seu tempo e considerou ter o dever pessoal de lutar contra elas, arriscando tudo e pagando um preço altíssimo pela opção que fez. Teve enormes acertos e também cometeu graves erros, praticamente inevitáveis numa luta travada com tamanha desigualdade de forças e em circunstâncias tão dramáticas”.
Melhores momentos:
“Mas, nunca impôs a ninguém sacrifícios que ele mesmo não fizesse. Chegava a ser comovente seu zelo com os companheiros -- via-se como responsável pelo destino de cada um dos quadros da Organização e, quando ocorria uma baixa, deixava transparecer pesar comparável ao de quem acaba de perder um ente querido. Dos seus melhores momentos, dois me sensibilizaram particularmente. Logo depois do Congresso de Mongaguá (abril/1969), quando a VPR saía de uma temporada de luta interna e de quedas em cascata, o caixa estava a zero e a rede de militantes, clandestinos em sua maioria, carecia desesperadamente de dinheiro para manter as respectivas fachadas -- qualquer anomalia, mesmo um atraso no pagamento de aluguel, poderia atrair atenções indesejáveis. Mas, o chamado grupo tático fora o setor mais duramente golpeado pelas investidas repressivas. Então, quando se planejou a expropriação simultânea de dois bancos vizinhos, na zona Leste paulistana, o pessoal experiente que sobrara não bastava para levá-la a cabo. Eu e os sete companheiros secundaristas que acabáramos de ingressar na Organização fomos todos escalados -- na enésima hora, entretanto, chegou a decisão do Comando, que me designou para criar e coordenar um setor de Inteligência, então fiquei de fora. Lamarca, procuradíssimo pelos órgãos repressivos, fez questão de estar lá para proteger os recrutas no seu batismo de fogo. Os outros quatro comandantes tudo fizeram para demovê-lo, em nome da sua importância para a revolução. Em vão. A lealdade para com a tropa nele falava mais alto. Depois de muita discussão, chegou-se a uma solução de compromisso: ele não entraria nas agências, mas ficaria observando à distância, pronto para intervir caso houvesse necessidade. Houve: um guarda de trânsito, alertado por transeunte, postou-se na porta de um dos bancos, arma na mão, pronto para atingir o primeiro que saísse.
Lamarca, que tomava café num bar a 40 metros de distância, só teve tempo de apanhar seu .38 cano longo de competição, mirar e desferir um tiro dificílimo -- tão prodigioso que, no mesmo dia, a ditadura já percebeu quem fora o autor. Só um atirador de elite seria capaz de acertar.
Segundo o Darcy Rodrigues, foi a vida dele que Lamarca salvou. O próprio, contudo, contou-nos que seria um dos novatos o primeiro alvejado.
Como resultado, a repressão teve pretexto para fazer de Lamarca o inimigo público nº 1 -- e, claro, o fez. A imagem dele foi difundida à exaustão, obrigando-o a redobrar cuidados e até a submeter-se a uma cirurgia plástica.
Também teve de brigar muito com os demais dirigentes e militantes, para salvar a vida do embaixador suíço Giovanni Butcher, quando a ditadura se recusou a libertar alguns dos prisioneiros pedidos em troca dele e ainda anunciou que o Eduardo Leite (Bacuri) morrera ao tentar fugir.
Dá para qualquer um imaginar a indignação resultante -- afinal, as (dantescas) circunstâncias reais da morte do Bacuri ficaram conhecidas na Organização.
Mesmo assim Lamarca não arredou pé, usando até o limite sua autoridade para evitar que a VPR desse aos inimigos o monumental trunfo que as Brigadas Vermelhas mais tarde dariam, ao executarem Aldo Moro. O episódio foi tão traumático que ele acabou deixando a VPR.
E, no MR-8, novamente divergiu da maioria dos companheiros -- quanto à sua salvação.
Pressionaram-no muito para que saísse do Brasil, preservando-se para etapas posteriores da luta, pois em 1971 nada mais havia a se fazer. Aquilo virara um matadouro.
Conhecendo-o como conheci, tenho a certeza absoluta de que não perseverou por acreditar numa reviravolta milagrosa. Em termos militares, suas análises eram as mais realistas e acuradas. Nunca iludia a si próprio.
O motivo certamente foi a incapacidade de conciliar a idéia de fuga com todos os horrores já ocorridos, a morte e os terríveis sofrimentos infligidos a tantos seres humanos idealistas e valorosos. Fez questão de compartilhar até o fim o destino dos companheiros, honrando a promessa, tantas vezes repetida, de vencer ou morrer.
Doeu -- e como! -- vermos os militares exibindo seu cadáver como troféu, da forma mais selvagem e repulsiva.
Mas, ele havia conquistado plenamente o direito de desconsiderar fatores políticos e decidir apenas como homem se preferia viver ou morrer.
Merece, como poucos, nosso respeito e admiração.
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