Dilma no Jô: a chefe dura entre homens meigos

Em novo artigo para o 247, o jurista Luiz Moreira destaca um ponto importante da entrevista da presidente Dilma Rousseff ao apresentador Jô Soares, que lhe questionou sobre a fama de ser uma "chefe dura"; "Quando homens administram, exercem o papel que deles se espera; quando mulheres exercem o mesmo papel são tidas como usurpadoras dessas funções, como se desempenhassem um ofício que não lhes pertence. Nesse momento a mulher é vista somente como dura, menosprezando-se seus feitos e os homens continuam meigos", afirma; no texto, Moreira também aborda a outra polêmica da semana: a discussão sobre biografias, que sobrepôs a liberdade de expressão ao direito à intimidade; leia a íntegra

Dilma no Jô: a chefe dura entre homens meigos
Dilma no Jô: a chefe dura entre homens meigos


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Por Luiz Moreira

Dois fenômenos ocorridos na última semana expressam os dilemas que devem ser enfrentados pela sociedade brasileira a fim de consolidá-la como sociedade plural e democrática. 

O primeiro envolve o julgamento, pelo STF, da relação entre privacidade e liberdade de expressão, contida no caso das biografias. O segundo diz respeito à definição do papel das mulheres nessa sociedade, expressa pela Presidente Dilma Rouseff em resposta à questão formulada por Jô Soares de se ela é uma chefe dura. Dilma respondeu ser “uma mulher dura no meio de homens meigos”.

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No que diz respeito ao caso das biografias parece-me que não houve um correto enfrentamento dos aspectos presentes na tensão entre privacidade e liberdade de expressão. O STF vislumbrou a existência de contradições entre autonomia privada e liberdades civis, ou entre direito privado e direito público, estabelecendo não apenas uma preferência do direito público sobre o direito privado, como também instituindo uma supremacia conceitual da liberdade de expressão sobre a privacidade, desconhecendo os contornos do sistema jurídico brasileiro como sistema coerente de normas que tem na Constituição sua diretriz política e sua unidade estrutural.

Com o propósito de melhor delinear a questão, utilizarei uma das mais conhecidas distinções do filósofo alemão Hegel (1770-1831), consistente na existência de três dimensões que perpassam o Direito na sociedade ocidental. Na sua Filosofia do Direito, define essas dimensões como decisivamente conciliadas, são elas: a família, a sociedade civil e o Estado.

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Na família estão as dimensões dadas, quase naturais, em que nos descobrimos ao nascermos e que nos constitui como segunda natureza, como dimensão cultural a envolver o corpo físico; a sociedade civil é o reino das liberdades públicas, na qual exercemos nossa autonomia como cidadãos; já o Estado é a institucionalização das liberdades, em que se desenvolvem mecanismos capazes de garantir as duas dimensões anteriores. Para Hegel, essas três dimensões são compatíveis, não havendo contradições entre elas, sucedendo-se e conectando-se.

Essas dimensões hegelianas influenciaram profundamente o direito moderno, que as adotou como categorias para sua organização. Do mesmo modo há, no Direito, três dimensões articuladas pelo conceito de Constituição: direito privado, direito público e direito de estado. O direito privado disciplina as relações de intimidade; o direito público, as liberdades civis; e o direito de estado, marcado pelas exigências de legitimação estatal, é regido pela idéia de contrição e sua marca é o exercício restrito de suas faculdades, possibilitando que, apesar dele, brotem as liberdades, ante as arbitrariedades próprias à aplicação das penas, à cobrança de impostos e à administração estatal.

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É que privacidade e liberdades civis se complementam, constituindo uma dupla face na qual a liberdade para dentro (privacidade) se acopla à liberdade para fora (liberdades civis). Ao contrário do que alguns pretendem a proteção jurídica à privacidade não significa que se autorizou a existência de violência em seu seio. Significa apenas o reconhecimento de que a privacidade é um momento concreto da liberdade que deve ser compatibilizado com o conceito de estado de direito. Sendo assim, vida privada e liberdade pública se compatibilizam justamente nas democracias constitucionais.

Voltando à questão das biografias: é aceitável que a curiosidade de alguns devasse a intimidade de outros? É lícito que o direito acolha essas pretensões e submeta a intimidade à curiosidade da maioria? E submetê-la a interesses comerciais? É crível que o direito devasse a privacidade subordinando-a a finalidades lucrativas? O art. 20 do Código Civil acertadamente diz que não.

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Penso não haver incompatibilidades entre liberdade de expressão e intimidade, não é disso que se trata. A liberdade de expressão não é algo dado, há de ser compatibilizada com o sistema de direitos no qual se encontra elencada. Ademais, sua absolutização geraria absurdos, como se admitir, por exemplo, a livre exposição de imagens que patrocinassem a pedofilia ou a divulgação de panfletos que promovessem golpes de estado.

Em geral, o que torna alguém famoso é o aspecto excepcional de sua conduta profissional, que lhe faz, em decorrência dessa performance, obter o reconhecimento dos demais. Um artista, por exemplo, pelo seu processo criativo invulgar. Admitir que a exploração comercial de sua preferência sexual ou de seus gostos possam ser confundidos com interesse público e que, por isso, podem ser livremente difundidos é capitular ante a coisificação do homem que tem sido patrocinada pela lógica do mercado, que institucionaliza o reino das necessidades.     

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O processo civilizatório se confunde com a criação de regras de conduta e de etiqueta e com a conseqüente criação da intimidade. Mesmo as inovações tecnológicas guardam essa dimensão. O perfil na internet, por exemplo, é expressão desse processo pelo qual o indivíduo fornece ao público a identidade com a qual quer ser conhecido, salvaguardando sua privacidade, na medida em que só dado a conhecimento uma de suas persona, ficando resguardadas as outras nuances de sua personalidade. 

Desse modo, os arts. 20 e 21 do Código Civil brasileiro não são inconstitucionais. Ao contrário, compatibilizam, com precisão técnica e teórica, a relação entre privacidade e interesse público, regulamentando os casos em que a liberdade de expressão precisa adequar-se às normas de uma democracia constitucional.

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A essa questão sucede o papel que cabe às mulheres na sociedade brasileira. Em recente entrevista ao artista Jô Soares, à Presidente Dilma Roussef é dada oportunidade de problematizar algo sorrateiramente difundido que, segundo penso, cria as condições para se consolidar uma rejeição a que mulheres ocupem postos-chave no Brasil, reservando-lhes posições subalternas ou o papel de símbolos sexuais.

Elegantemente, Jô Soares pergunta à Dilma Rousseff se ela é uma “chefe dura”, ao que responde ser “uma mulher dura no meio de homens meigos.” 

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A resposta de Dilma explicita o problema de gênero no Brasil. Há postos ou posições tipicamente femininas? 

Quando homens administram, exercem o papel que deles se espera; quando mulheres exercem o mesmo papel são tidas como usurpadoras dessas funções, como se desempenhassem um ofício que não lhes pertence. Nesse momento a mulher é vista somente como dura, menosprezando-se seus feitos e os homens continuam meigos. 

É isso que está em jogo: a constituição de uma sociedade emancipada que culturalmente não reserve às mulheres o papel de cidadãos de segunda classe. 

Uma mulher ocupar a Presidência do Brasil tem alto valor simbólico. Nas últimas eleições presidenciais, dos três favoritos na disputa, duas eram mulheres. É alentador que Dilma Rouseff tenha a exata noção do que significa para o Brasil ter uma mulher como ela na Presidência da República.

Luiz Moreira, Doutor em Direito, ex-Conselheiro Nacional do Ministério Público, é professor de Direito Constitucional.

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