De volta ao local do crime que não fui eu quem cometeu

Os índios viram o líder da guerrilha, Osvaldão, pendurado no “ericópire”



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Representantes da Comissão da Verdade chegam hoje, 16,  ao município de São Domingos do Araguaia, no sudeste do Pará, para ouvir os índios suruí. Eles foram recrutados para servir de guias dos grupos do Exército que entravam na selva à procura de guerrilheiros. Quer dizer: o Exército, que não tinha peito como se alardeia, terceirizava a caçada.

Estive no  Sororó, como é conhecida a aldeia dos suruí, em novembro de 1976. E 20 deles acompanharam  o relato que Massu, um dos batedores,  deu a mim e ao fotógrafo Vincent Carelli, numa noite bela e tranquila, à luz de lampião. Quando lhe faltam as palavras, Massu rabisca o chão da oca e imita o som dos combates.

 Alguns se comportavam como se tivessem traumas daqueles tempos. Era o caso de Areni, também batedor, que às vezes acordava gritando.

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Conto isso no livro-reportagem A Guerrilha do Araguaia, publicado em 1978 pela editora Alfa-Omega,  o primeiro sobre o episódio.  Eu e Vincent  éramos correspondentes de uma guerra que tinha acabado fazia dois anos.  E o que colhemos era publicado em etapas na imprensa: IstoÉ de Mino Carta, Movimento de Raimundo Pereira, Coojornal de Elmar Bones, e enfim o livro.

Eis  um trecho do meu livro com o relato de Massu:

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“Os soldados sempre procurava nós:

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--  Rapaz, você conhece  a mata, né?

--  Sabe, sim.

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--  Vocês sabe onde está terrorista?

-- Sabe sim.

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Então os soldado pediu licença da Funai. Maravi e Arecachu, os dois entrou primeiro na mata – veio um Toyota buscar. Nós procurava a pinicada, via barraquinha dele debaixo do cipozal. A gente achava muita coisa, remédio, farinha, no buraco do cupim. Mas terrorista se escondeu mesmo.

Nós esperava na mata, esperava, esperava. Tinha muito avião. Ericópire voava baixinho.

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Demorou. Até  que quebrou o pau. Terrorista mandou uma brasa: “tá-tá”. Soldado também mandou uma brasa: “trrrrr”.

Esse cara ( o índio Arecachu) ajudou muito carregando morto dentro do ericópire. Cortava a cabeça e levava pro São Raimundo pra tirar retrato. Era homem, mulher, tudo misturado.

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De primeiro morreu um bocado de soldado. Soldado foi tomar água, a Dina (Dinaelza Coqueiro, a Maria Dina, exímia atiradora) tava esperando lá: “paaaaaá”.  Agora chegou um cara lá de Brasília, rapaz. Foi ele que acabou tudo. Como era o nome dele? Doutor Antônio (general Antônio Bandeira).

Elze trouxe muita espingarda pra nós, cartucho pra gente caçar. Soldado primeiro pegou pessoal que dava coisas pros terrorista.  Foi tudo preso, tudinho. Bateram, bateram. Soldado perguntava pra ele assim:

 -- O que tu deu pra  ele?

 -- Cartucho.

 -- E mais?

 -- Farinha?

-- E mais?

-- Sal.

-- Aonde tem quem ajuda terrorista?

-- Tem muito aí.

 -- Me diz qual ele é.

 -- Pernambuco.

E fomo atrás do Pernambuco. Levemo ele pro São Raimundo. Amarremo de cabeça pra baixo numa árvore. Aí o cara ficava à altura. Soldado falou e levou logo a peixeira na testa dele: “tec”, só estrelava.

-- Conta aí, nego velho, o que tu deu?

 -- Ele convidou pra mim fazer paiol na mata pra ele, paiol de farinha.

 -- Tu tava mentindo pra mim, rapaz.

 -- Eu tava com medo dele me matar.

 -- É, matava nada. Porque vocês que dá, rapaz.

Uma vez terrorista saía da mata. Pegaram soldado lá no entroncamento de São Domingos. Terrorista pegou a arma dele. E voltava pro acampamento dele.

Os soldado entraram de seis com a gente no mato. Ele avisava pra nós:

-- É escutar barulho, vocês passa pra trás de mim.

Agora o soldado,  na hora que vê o barulho dele vai andando mesmo: “taaaaá”. Quebrou tudinho cabeça, saiu tudinho o miolo: “paaaá”.  A gente escutava aqui o barulho:  “tá-tátátá  tátátá-tátátá-trrrrrrr”.

Antes era difícil de achar. Agora, não: é fácil. Soldado falou:

-- Tem que acabar com esse terrorista: ele quer tomar o Brasil, esse terrorista não presta.

Roupa de terrorista já parecia saco velho. Primeiro camisa nova, depois camisa velha. Gente branca, morena, preta. Amarelo tinha também. Tem ferida. Amarelo tinha também. Tem ferida, tudinho também aqui na cara, tudinho cheio de caroço. Não tem fogo, não tem fósforo, acabou tudo. Nós chegava no acompamento dele no cipozal e soldado ia mexer nas coisas, não deixa nós.

--  Rapaz, você não pega nesse bicho aí.

Ele abriu, rapaz. Coisou, queimou tudo na cara do soldado, o pólvora. Ele fez o negócio todo feito pra morrer qualquer soldado. Mas soldado já tava com muita força.

A Dina – diz que ela era baiana – foi pegada em Marabá: ia atravessar pro São Félix, mataram ela. O Osvaldão  (Osvaldo Orlando da Costa) morreu sozinho. Foi ali. Nós vimos ali no São Raimundo (uma das pequenas bases de apoio do Exército dentro do mato), morto, pendurado pela corda no ericópire. Rapaz, ele era fogo mesmo.  Muito preto. Roupa dele não presta não. Tudo rasgado.

Enterraram todos no São Raimundo, mas já vieram buscar os ossos.”

Quem nasceu em 1974, quando eliminaram o último guerrilheiro, e se formou jornalista, é um veterano com 38 anos. De sua geração ninguém pisou mais lá para extrair esse relato. Precisava uma comissão do governo para reconstituir fatos que vão virando fábulas, mitos.

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