Copacalama, outros caminhos
Tem dias que eu fico pensando na vida e sinceramente não vejo saída. Tanta Copacabana no outdoor colorido, nenhum respingo de lama nas modelos
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.
Tem dias que eu fico pensando na vida e sinceramente não vejo saída. Tanta Copacabana no outdoor colorido, nenhum respingo de lama nas modelos. Outro dia, falando em cores, meus olhos se depararam com uma situação que merece um conto, apesar de crônica. Por 'outro dia', refiro-me precisamente à temporalidade q'eu bem entender, senão a de um dia que é meramente outro que não este, apesar do causo continuar presente – de grego. Por 'conto', bem, qualquer coisa que você entenda serve, um alimenta o estômago, o outro a fantasia, igualmente necessários. Por crônica enquanto gênero textual, esta trata de caminhos separados pelo esgoto a céu aberto nomeado Baía de Guanabara, onde de um lado há arranha-céus, do outro, seu duplo, um lugar nem tão bom pra encontrar. Para desdobrá-la, imprescindível é andar pelos cantos da xará, também crônica, todavia problema social. Bem-vindos à Copacalama! Mas vamos por partes, só é possível ligar os pontos olhando pra trás. O texto que segue começa no intervalo de trinta segundos, depois do anúncio comercial.
...
Época de eleições. Fui convocado para ser mesário e compareci – não exatamente pelo enobrecimento da atividade cívica, mas pela experiência, digamos, de trabalho de campo. Enfim, senão a Política enquanto espaço de disputa para mim naquele momento, ao menos possibilidade de ver de pertinho o que não cabe nos números do noticiário, intradutores da trivialidade cotidiana, inventores da opinião pública.
Gente querendo fazer boca de urna, voto de cabresto atrás de uma dentadura capaz de trazer sorrisos às tais banguelas – em suma, lixo demais dando trabalho para os garis e eleitores. Entretanto, não quero lhe falar do que aprendi nos discos e livros, mas tudo que aconteceu ali comigo, o poder das ideologias nas maiores miudezas, unidas para descrever o fracasso crônico.
Éramos quatro de papo. Dentre os tais: uma senhora de cabelos devidamente pranchados, de quarenta e uns, com aparência de tantos, mais senhora pelo tic-tac do patrão do que da natureza; uma menina, recém-maior, fundamentalista ocidental. Ou seja, passível para a massa – porque massificada -, pois cristã, apesar das pernas não virem de Deus, mas da academia; um coroa, angustiantemente mais baixo que eu, desesperadoramente ancorado num marxismo rudimentar – este só via o relógio da mais-valia. Não menos religioso.
Lugar vazio, sobrou assunto. Se parecia inviável abordar a Política sem ser excludente ou soar presunçoso, chegou num momento que não suportei ser inerte, todo ouvidos. Em meio a absurdos puristas, a tal garota veio com história que não escuto nem de carolas teens à época de João Paulo II, mas que foi tirado de lugar alhures: a mulher teria, segundo ela, que ser submissa ao homem. Desse diálogo, saímos rápido, cada qual com seus porquês e variações, mas todos estupefatos. Depois disso, impossível fechar a boca. A mudez provocava a sensação de negar socorro – a garota parecia não sofrer, contudo não percebia o quão vasta pode ser a vida. Por horas, os tópicos variavam na suposta velocidade dos neutrinos – a senhora, conformada, tentava tirar-nos do embate, sem êxito.
Eis que uma mulher vem votar, Dona Lourdes, tia da menina mesária. Seu olhar revelava uma força de arquitetura de baralho: fácil-fácil desmoronar. Quando ela saiu, Janaína – já não impessoal, agora nomeável – contou uma tragédia. Para Janaína, menina, tragédia particular; pra mim, males do mundo. Relatava que sua prima, filha da Dona, tinha sido estuprada semanas atrás. O acusado, “é o que dizem”, viciado em drogas, estava sob o efeito de qualquer uma. Ficamos nesse confronto por tempos. Ela dizia que tudo que faz mal, inclusive aquilo que só mora no indivíduo, deveria ser punido, proibido – que o usuário é que deveria ser preso. Eu disse que as drogas são liberadas arbitrariamente, com critérios nebulosos, tanto é que não pode maconha, mas vale cachaça e cigarro, fora o tanto de drogas que trazem benefícios e efeitos colaterais chamadas remédio. Punir não resolve, é necessário educar e não esquecer que o problema, de tão sistemático, desvia o olhar para o fato de que, mais que usuário, o indivíduo é um consumidor de drogas.
Quando já não tinha mais o que dizer, uma vez que me pôr cocar no cucuruco junto aos salmos contados em latim parecia irrazoável, apelou para a empiria: “Você só entende de algo quando vive”, falando da experiência de trauma próxima e valendo-se da ficção em Tropa de Elite, atrelada ao ocorrido de tal forma que só enxergava com sentimento. Mas, porra, já tive arma colocada nas costas em assalto e trabalho em um centro de apoio psicossocial no tratamento de redução de danos em usuários de drogas (incluindo o álcool). Eu vivo constantemente o envolvimento com meninos, com muito nome, mas inomeáveis, relacionados ao tráfico. Já recebi ameaça de agressão. Já recebi abraços de verdade, apertados. Não que justifique, mas todos têm suas trajetórias. E não compreender isso demonstra o quão necessário é conhecer caminhos que outras pessoas fizeram. Não que o fato de compreender faça com que se perdoe. Até porque, a única coisa que justifica é a Moral, mas eu quero é explicar pra saber comé que a gente muda esse problema crônico.
Mudemos a crônica, sigamos ao caminho do fim. Bem-vindos à igualmente trágica Copacalama, praia de lodo e esgoto, em Niterói, onde quem não tem a pobreza chic da novela curte o que lhe sobra, sobrevivendo sob a pena de vida, mas dando seu jeitinho de alimentar a fantasia – senão por furto, por empréstimo simbólico ao nomear a praia com ironia de tamanha fineza. É disso que se fala: restos. Os mesmos garotos abandonados que procuraram na droga alguma maneira de suprir suas carências, mais que indivíduos de faltas psicológicas, são seres sociais, desejosos de cafuné, de sociabilidade, de resoluções. E do tênis daquele comercial. Eles não têm como comprá-lo e a violência, em vez do giz, foi a arma unívoca que lhes foi dada para tocar a vida. Não deveria ser assim, mas assim que é.
Em alguns casos, para ser suficiente, apenas a ilusão – e todos temos as nossas. Dentre tantos garotos, um deles, psicótico e paranóico, vive sob delírios, mas não menos atento à Tv. Se apaixonou por uma atriz de novela, escreveu carta e tudo. Acha que ela também está apaixonada e espera retribuição. Outro dia, imprevisível se permanecerá presente, mas decerto inesquecível, pediu, acometido pelo medo da perseguição, que eu o levasse até o ponto de ônibus. Nesse trajeto, sempre que ele precisa, eu vou – e ele me conta o indizível dentro da Clínica. Naquela tarde, valia-se da crença em Deus, da citação de trechos bíblicos para garantir que ele ficaria com a estrela da televisão. Minha Razão dizia para ir contra a religiosidade, mas conhecer o caminho que ele trilhou só permitiu que eu o ouvisse e entrasse no prisma que o sustentasse, diferentemente do caso da mesária. Depois de tantos anos, admiti o Ser Divino para dizer que Ele poderia querer algo melhor pro rapaz. De alguma maneira, eu lhe dei o conforto possível, mesmo que insuficiente para a magnitude da questão dele e da sociedade.
Ali, assim como ele, com os pés tão próximos à Copalama, a cabeça em qualquer lugar fantástico como a praia quase homônima e, sob os acordes tão singelos de Felicidade – do Marcelo Jeneci -, daquele lugar, impossível não me sentir mais junto, não perceber que a única saída é ajudar que ele e tantos outros sigam adiante. Essa crônica termina com um abraço. Nele e pra você.
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:
Comentários
Os comentários aqui postados expressam a opinião dos seus autores, responsáveis por seu teor, e não do 247