Comissão da Verdade para já
Temo que se não apurarmos com igual rigor os crimes cometidos durante a ditadura militar e os praticados no presente, surgirá a dúvida de que na realidade importa mais o torturado do que a tortura
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Sábado último, dia 31 de março de 2012, fez um ano que o Programa da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro de “acolhimento compulsório” de CRIANÇAS e ADOLESCENTES (supostamente) usuários de crack foi implantado.
Durante esse período, segundo dados da própria Prefeitura, foram feitos 544 acolhimentos e 108 crianças e adolescentes foram internadas (?!), com 24 tendo tido alta.
Infelizmente, não se tem como avaliar a eficácia do programa uma vez que a Prefeitura não disponibiliza dados a respeito do mesmo e os poucos divulgados não despertam confiança.
Interessante observar que nesse mesmo dia, 31 de março, o golpe de Estado promovido por militares em 1964 também faz aniversário.
Os que ainda sonham por justiça social lutam para passarmos a limpo um dos capítulos mais obscuros da história do Brasil através da instalação da Comissão da Verdade, a qual teria como objetivo a apuração de crimes cometidos por agentes do Estado durante a ditadura, como assassinatos, sequestros, TORTURA, esse um crime bárbaro, covarde, praticado por insanos que, sem dúvida, devem ser afastados do convívio social.
A implantação da Comissão da Verdade é justificada também pelo fato de que é necessário que fique definitivamente claro para todos que a sociedade brasileira não tolera a barbárie seja no passado, no presente ou no futuro; que para nós, a imensa maioria do povo brasileiro (os que trabalham, pagam impostos, são secularmente explorados pelas nossas elites) que os fins não justificam os meios, seja lá para que fim for e por que meio for; que o fim e o meio somente são justificados se se justificarem por si só e permanecerem estritamente de acordo com a ética e as leis vigentes em nosso país.
Mas se é assim, se o objetivo da Comissão da Verdade é evidenciar definitivamente que não toleramos os crimes contra os direitos humanos, como, por exemplo, a tortura, porque apurar somente os crimes cometidos no passado? Porque não apurarmos também as diversas denúncias sobre crimes de tortura cometidos já, agora, neste momento, no Brasil?
Por que crimes de tortura cometidos no interior de instalações da Prefeitura do Rio de Janeiro contra crianças e adolescentes, supostamente usuárias de crack, deveriam ser tolerados, esquecidos, acobertados? Por que esses crimes de tortura não devem ser apurados com igual rigor aos praticados no interior do DOPS, quartéis e outros aparelhos da repressão durante a ditadura militar?
Alguns podem justificar a incompatibilidade dos crimes cometidos no presente serem também apurados pela Comissão da Verdade tendo em vista que teriam motivações absolutamente distintas, mas será? Então vejamos...
A justificativa mais usada durante a ditadura militar para a prática da tortura por representantes do Estado Brasileiro era que estávamos em “guerra contra o terrorismo”, com o futuro da nação em jogo, uma vez que o inimigo comum (os terroristas) poderiam impôr valores estranhos à nossa cultura, principalmente as crianças e adolescentes, cidadãos ainda em formação e, portanto, sem capacidade de avaliação e defesa.
Coincidentemente as vítimas dessa barbárie promovida pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro são “crianças e adolescentes”, também, supostamente, vítimas de um inimigo mais forte que eles, que os induz a acreditar numa outra realidade que não a imposta pelo regime atual, inimigo esse eleito, no momento, como “comum da nossa sociedade”: as drogas, contra a qual travamos uma “guerra”, o que justificaria a aplicação de medidas de exceção.
Por fim, ao analisarmos a real motivação dessas duas barbáries veremos que são idênticas: atender a interesses econômicos estranhos aos reais interesses da população brasileira, no caso dessas crianças e adolescentes vítimas dessa farsa da Prefeitura do Rio de Janeiro a necessidade de afastá-las das ruas da cidade, promovendo uma higienização social na cidade com vistas à realização dos grandes eventos, como a Rio +20 em 2012, o Encontro da Juventude Católica em 2013, a Copa do Mundo de 2014, Olimpíadas de 2016.
Mas e quanto ao Programa da Prefeitura que teria a intenção de resgatar essas crianças e adolescentes dos braços das drogas (o inimigo em comum), acolhendo-os, “nem que seja compulsoriamente”, para cuidar e devolvê-los ao convívio social sadio e produtivo?
Tal justificativa já não se sustenta devido as inúmeras declarações do próprio Secretário Municipal de Assistência Social, Rodrigo Betlhen, se contradizendo a todo momento a respeito das reais motivações do programa em questão; as contradições da política de saúde mental da atual gestão municipal; diversas denúncias apresentadas sistematicamente à justiça pela Defensoria Pública, por nossas mídias (ver, por exemplo, o programa A Liga, da TV Band, exibido em 27 de março último), por inúmeras organizações civis (OAB, movimento “respeito é BOM e eu gosto!”, CEDECA); a proibição do livre acesso ao interior dos locais onde essas crianças e adolescentes estão internadas por pais e/ou responsáveis contrariando o disposto no artigo 12, capítulo 1 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a parlamentares, a membros do Conselho de Direitos Humanos da ONU; a supressão de direitos básicos dessas crianças e adolescentes, como o de estudar, por exemplo.
Mas alguém poderia argumentar que a Comissão da Verdade está sendo criada para apurar crimes com motivação política. Ora, e essas crianças e adolescentes estão privadas de suas liberdades por quê, ainda resta alguma dúvida? E qual teria sido o crime político cometido por essas crianças e adolescentes se vivemos em pleno regime democrático?
O crime de denunciar, através de suas existências, que o sistema sócio-econômico que vivemos é hipócrita, desigual, corrupto, arrogante não sendo capaz de acolher, respeitar, cuidar os que o denunciam por suas incoerências.
Temo que se não apurarmos com igual rigor os crimes cometidos durante a ditadura militar e os praticados no presente, surgirá a dúvida de que na realidade importa mais o torturado do que a tortura, o que temos a certeza que a Presidenta Dilma não permitirá, pois correria o risco de entrar para nossa história não como vítima da tortura, mas como cúmplice.
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