'Com delação, Direito Penal também é lavado a jato'

Advogado Aury Lopes Jr (foto) e juiz de Direito Alexandre Morais da Rosa questionam os artifícios que sustentam as acusações da operação Lava Jato, conduzida pelo juiz Sérgio Moro: “O pacto no processo penal pode se constituir em um perverso intercâmbio, que transforma a acusação em um instrumento de pressão, capaz de gerar autoacusações falsas, testemunhos caluniosos por conveniência, obstrucionismo ou prevaricações sobre a defesa, desigualdade de tratamento e insegurança"

Advogado Aury Lopes Jr (foto) e juiz de Direito Alexandre Morais da Rosa questionam os artifícios que sustentam as acusações da operação Lava Jato, conduzida pelo juiz Sérgio Moro: “O pacto no processo penal pode se constituir em um perverso intercâmbio, que transforma a acusação em um instrumento de pressão, capaz de gerar autoacusações falsas, testemunhos caluniosos por conveniência, obstrucionismo ou prevaricações sobre a defesa, desigualdade de tratamento e insegurança"
Advogado Aury Lopes Jr (foto) e juiz de Direito Alexandre Morais da Rosa questionam os artifícios que sustentam as acusações da operação Lava Jato, conduzida pelo juiz Sérgio Moro: “O pacto no processo penal pode se constituir em um perverso intercâmbio, que transforma a acusação em um instrumento de pressão, capaz de gerar autoacusações falsas, testemunhos caluniosos por conveniência, obstrucionismo ou prevaricações sobre a defesa, desigualdade de tratamento e insegurança" (Foto: Roberta Namour)


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Por Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa, para o Consultor Juridico 

A “barganha e a justiça criminal negocial”, como manifestações dos espaços de consenso no processo penal, vem (pre)ocupando cada vez mais os estudiosos, mas também os atores judiciários. A tendência de expansão é evidente, resta saber que rumo será tomado, se seguirá o viés de influência do modelo norte-americano da plea bargaining; o italiano do patteggiamento; o prático-forense alemão (cuja implantação evidenciou o conflito do law in action com o law in books). Ampliaremos o tímido (mas crescente) modelo brasileiro introduzido pela Lei 9099/95 (transação penal e suspensão condicional) até chegar na Lei 12.850/13 e a colaboração premiada. Que rumo tomar? Quais os limites? Que vantagens e inconvenientes isso representa? São questões importantes a serem ponderadas.

A expansão dos espaços de consenso decorre de fatores utilitaristas e eficientistas, sem falar na evidente incompatibilidade com o Princípio da Necessidade (nulla poena sine iudicio), mas é uma realidade que se impõe diante da insuficiência estrutural do poder judiciário (sustentam os defensores do viés expansionista). Mas a aceleração procedimental pode ser levada ao extremo de termos uma pena sem processo e sem juiz? Sim, pois a garantia do juiz pode ficar reduzida ao papel de mero ‘homologador’ do acordo, muitas vezes feito às portas do tribunal (nos Estados Unidos, acordos assim superam 90% dos meios de resolução de casos penais).

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A negotiation viola desde logo o pressuposto fundamental da jurisdição, pois a violência repressiva da pena não passa mais pelo controle jurisdicional e tampouco se submete aos limites da legalidade, senão que está nas mãos do Ministério Público e submetida à sua discricionariedade. Isso significa uma inequívoca incursão do Ministério Público em uma área que deveria ser dominada pelo tribunal, que erroneamente limita­se a homologar o resultado do acordo entre o acusado e o promotor. Não sem razão, afirma-se que o promotor é o juiz às portas do tribunal.

O pacto no processo penal pode se constituir em um perverso intercâmbio, que transforma a acusação em um instrumento de pressão, capaz de gerar autoacusações falsas, testemunhos caluniosos por conveniência, obstrucionismo ou prevaricações sobre a defesa, desigualdade de tratamento e insegurança. O furor negociador da acusação pode levar à perversão burocrática, em que a parte passiva não disposta ao “acordo” vê o processo penal transformar‑se em uma complexa e burocrática guerra.

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Tudo é mais difícil para quem não está disposto ao “negócio”.

O acusador público, disposto a constranger e obter o pacto a qualquer preço, utilizará a acusação formal como um instrumento de pressão, solicitando altas penas e pleiteando o reconhecimento de figuras mais graves do delito, ainda que sem o menor fundamento.

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A tal ponto pode chegar a degeneração do sistema que, de forma clara e inequívoca, o saber e a razão são substituídos pelo poder atribuído ao Ministério Público. O processo, ao final, é transformado em um luxo reservado a quem estiver disposto a enfrentar seus custos e riscos, conforme a doutrina de Ferrajoli.

A superioridade do acusador público, acrescida do poder de transigir, faz com que as pressões psicológicas e as coações sejam uma prática normal, para compelir o acusado a aceitar o acordo e também a “segurança” do mal menor de admitir uma culpa, ainda que inexistente. Os acusados que se recusam a aceitar a delação ou negociação são considerados incômodos e nocivos, e sobre eles pesarão todo o rigor do direito penal ‘tradicional’, onde qualquer pena acima de 4 anos impede a substituição e, acima de 8 anos, impõe o regime fechado.

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O panorama é ainda mais assustador quando, ao lado da acusação, está um juiz pouco disposto a levar o processo até o final, quiçá mais interessado que o próprio promotor em que aquilo acabe o mais rápido e com o menor trabalho possível. Quando as pautas estão cheias e o sistema passa a valorar mais o juiz pela sua produção quantitativa do que pela qualidade de suas decisões, o processo assume sua face mais nefasta e cruel. É a lógica do tempo curto atropelando as garantias fundamentais em nome de uma maior eficiência.

No Brasil, a tendência de expansão é evidente e a preocupação, crescente. Dos limites tímidos da transação penal e suspensão condicional do processo, caímos no outro extremo: o amorfismo da colaboração (leia-se: delação) premiada e a Lei 12.850/13.

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Essa semana foi noticiada uma sentença penal condenatória na operação “lava a jato” em que alguém — beneficiado pela delação premiada (ou seja, pena negociada) — é condenado a 15 anos e 10 meses em regime de “reclusão doméstica” ou “prisão domiciliar”. Depois vem um regime “semiaberto diferenciado”(??) e uma progressão para o regime aberto após dois anos. Tudo isso sob o olhar atônito do Código Penal, que não se reconhece nessa ‘execução penal a la carte’.

Mas isso é outro Direito Penal? Com certeza. E outro processo penal também.

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Mas o que é esse “outro”? A serviço de quê(m) ele está? Quais seus limites de incidência? Por mais que se admita que o acordo sobre a pena seja uma tendência mundial e inafastável, (mais) uma questão que preocupa muito é: onde estão essas regras e limites na lei? Onde está o princípio da legalidade? Reserva de lei? Será que não estamos indo no sentido negociação, mas abrindo mão de regras legais claras, para cair no erro do decisionismo e na ampliação dos espaços indevidos da discricionariedade judicial? Ou ainda, na ampliação dos espaços discricionários impróprios do Ministério Público? Fico preocupado, não apenas com banalização da delação premiada, mas com a ausência de limites claros e precisos acerca da negociação. É evidente que a Lei 12.850/13 não tem suficiência regradora e estamos longe de uma definição clara e precisa acerca dos limites negociais.

A delação premiada, enquanto forma de consenso sobre a pena, precisa ser objeto de uma problematização muito mais complexa (para além da simples recusa, pois ela está aí), como por exemplo:

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a) Quais os limites quantitativos e qualitativos acerca da pena? Como fixar uma pena de 15 anos em regime de prisão domiciliar? E as penas acessórias? Qual o critério para fixação dos valores (milionários) a serem restituídos (ou pena pecuniária)?

b) Até que momento pode ser efetivada? Apenas na fase pré-processual? Após a denúncia mas antes da instrução? A qualquer momento (então não haverá a aceleração procedimental característica)?

c) Que consequências procedimentais ela gera em termos de aceleração e limitação da cognição?

d) Uma vez feita, mas por qualquer motivo não efetivada ou descumprida, como vamos lidar com a confissão já realizada? E o pré-julgamento, como fica? O juiz que teve contato com a confissão/delação deve ser afastado ou continuaremos com a ilusão de que não há quebra da imparcialidade, de que o juiz pode dar um rewind e deletar o que ouviu, viu e leu?

e) Nos casos penais de competência do tribunal do júri, como se dará o julgamento? Haverá júri e os jurados poderão não homologar a delação? E a íntima convicção, como fica? Haverá quesitação sobre a delação? Ou com a negociação usurparemos a competência do júri?

f) Havendo assistente da acusação, poderá se opor a negociação sobre a pena? Qual o espaço da vítima no ritual negocial? Ela poderá estabelecer ‘condições’ ou será ignorada (como ocorre na transação penal oferecida pelo Ministério Público nas ações penais de iniciativa privada)?

g) Existe um “direito” do imputado ao acordo ou ele é um poder discricionário do Ministério Público?

h) Qual o nível e dimensão de controle jurisdicional feito? Qual o papel do juiz no espaço negocial sem que ele deixe de ser ‘juiz’ (ou seja, imparcial)?

Muitas são as perguntas não respondidas pelo sistema jurídico brasileiro, chegando-se a uma elasticidade absurda (e decisionismo igualmente absurdo) de fixar uma pena de 15 anos de reclusão a ser cumprida em regime de recolhimento domiciliar, absolutamente fora de tudo o quem temos no Código Penal brasileiro.

Mas, antes de pensarmos que ‘legislar’ é a solução para tudo isso, faço mais um questionamento: já foi elaborado um sério e profundo ‘estudo de impacto carcerário’ da expansão do espaço negocial? A expansão da possibilidade de concretização antecipada do poder de punir por meio do reconhecimento consentido da culpabilidade, não representará um aumento significativo da nossa já inchada população carcerária? Como o sistema carcerário sucateado e medieval que temos irá lidar com isso? Pois é, parece que mais uma vez legislaremos primeiro, para ver o que vai ocorrer depois...

Dessarte, estamos entrando — sem muito rumo ou prumo — em terreno minado, (em grande parte) desconhecido e muito perigoso para o processo penal democrático e constitucional.

Aury Lopes Jr é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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