Além de não ter lido o Alienista de Machado de Assis, o juiz Sergio Moro parece também não conhecer o Espírito das Leis, de Montesquieu.
Os noticiários informam hoje que Moro ordenou a prisão de João Vaccari Neto, tesoureiro do PT.
Moro age como um procurador, um juiz de instrução, não como um juiz de verdade, que olha imparcialmente os dois lados da balança: a acusação e a defesa.
Os sigilos de todos os familiares de Vaccari foram quebrados: dele, mulher, filha, cunhada.
Nunca se viu nada parecido na Justiça brasileira.
Descobriram que, de 2008 a 2013, o patrimônio da filha de Vaccari cresceu de R$ 240 mil a R$ 1 milhão. Tudo devidamente declarado à Receita Federal.
Se a pessoa comprou ou ganhou um apartamento de dois quartos, pronto, já virou um criminoso na cabeça de Moro.
A mulher de Vaccari é criminalizada porque, de 2008 a 2014, recebeu um pouco mais de R$ 300 mil em “depósitos picados”.
Ora, esses valores permitem à pessoa inclusive requerer atestado de pobreza diante da Justiça, para não pagar custas judiciais!
A mulher do Vaccari é tratada como bandida por causa de R$ 3,5 mil / mês? Ou seja, por causa de um décimo do que ganham mensalmente o próprio juiz Moro e os procuradores?
Depósitos picados… Isso é “novilíngua” para designar movimentação bancária normal?
Um dos delatores da Lava Jato, o executivo Augusto Ribeiro de Mendonça Neto, da Setal, deu informações à Moro que o fizeram decidir prender Vaccari.
É uma coisa ridícula.
Mendonça Neto pagou uma gráfica, do bolso dele. E disse ao juiz que pagou porque Vaccari teria pedido.
Esse é um dos motivos da prisão de Vaccari.
Lembrando que Mendonça Neto é um tucanão de quatro costados, envolvido até o pescoço no trensalão, além de primo de Marcos Mendonça, presidente da Fundação Anchieta, que controla a TV Cultura, a tv pública do governo de São Paulo.
Qual o perigo que Vaccari representa à sociedade ou qual o obstáculo que representa para as investigações?
Nenhum.
Mas a prisão cumpre a função de manter, como disse o Fernando Brito, do Tijolaço, a coxinha quente no forno.
O espetáculo tem de continuar.
Com a Lava Jato perdendo o protagonismo para a Zelotes, a reviravolta provocada pelo depoimento de Paulo Roberto Costa, a alta nas ações da Petrobrás, o esvaziamento das marchas golpistas, Moro tinha de produzir um factoide pesado para que a Lava Jato voltasse a centralizar a agenda política nacional.
É uma questão de timing. Tem de aproveitar o que ainda existe de energia golpista nas ruas.
Então Moro usou a sua cartada mais importante no momento: a prisão de Vaccari, que permite à mídia voltar a usar o nome PT nas manchetes e telejornais.
Ao fazê-lo, porém, Moro aplicou um golpe à liberdade no Brasil.
Nas marchas golpistas do último dia 12, um dos carros de som que pediam intervenção militar deu espaço para um fascista declarado fazer um discurso, no qual condenou o sufrágio universal, a separação dos poderes, pediu uma ditadura e mandou “Montesquieu tomar no c…”.
Pois bem. Depois dessa, eu peguei meu velho Montesquieu da estante, para homenageá-lo e consolá-lo do covarde ataque que sofreu de um punhado de analfabetos políticos.
O autor do clássico Espírito das Leis diferencia dois conceitos de liberdade: a liberdade política em relação à constituição; e a liberdade política em relação ao cidadão.
A primeira dessas liberdades consiste na existência do direito, ou seja, é uma liberdade conceitual.
A segunda tem a ver com a segurança física do cidadão: é a liberdade concreta, carnal, aquela que nos protege dos arbítrios do Estado.
Ou seja, no Brasil só temos a primeira das liberdades. Ainda não temos liberdade concreta, porque juízes fazem o que querem e prendem quem eles querem, já que transformaram a prisão provisória, que vem antes do direito à defesa, numa condenação de fato.
Quando fala sobre a liberdade do cidadão, Montesquieu enfatiza que ela só existe diante de processos criminais justos, que garantam a segurança do cidadão contra o arbítrio do Estado.
E daí resume como esta liberdade nasceu no Ocidente: “Clotário criou uma lei para que um acusado não pudesse ser condenado sem ser ouvido; o que demonstra [que existia] uma prática contrária em algum caso particular ou em algum povo bárbaro. Foi Carondas que introduziu os julgamentos contra os falsos testemunhos. Quando a inocência dos cidadãos não está garantida, a liberdade também não o está.”
Em seguida, o francês observa que “as leis que condenam um homem à morte com base no depoimento de uma só testemunha são fatais para a liberdade“.
Montesquieu associa a liberdade política do cidadão a tudo que o protege contra “falsos testemunhos” ou do arbítrio de juízes.
Em termos mais contemporâneos, a liberdade, para Montesquieu, seria tudo que nos protege de linchamentos midiáticos e prisões arbitrárias, baseadas em falsos testemunhos, o que é justamente o que está acontecendo no mundinho fantástico de Sergio Moro.
Montesquieu sintetiza assim a sua preocupação dramática em relação à liberdade: “Os conhecimentos que foram adquiridos em alguns países e que serão adquiridos em outros sobre as regras mais seguras que se possam seguir nos julgamentos criminais interessam mais o gênero humano do que qualquer outra coisa que exista no mundo“.
Infelizmente, a preocupação de Montesquieu parece não interessar nem coxinhas neofascistas, nem o juiz Sergio Moro, nem a grande mídia.
Daí a liberdade, esse destino, essa utopia, esse sonho democrático, é violentada pelos autoritários e apoiadores da ditadura de sempre.
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