Adeus às armas. Já!
Não se deve discutir a religião do assassino, mas sim o porte de armas
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Letícia Moreli *
Assistindo ao massacre na escola Tasso da Silveira, em Realengo, Rio de Janeiro, é inevitável lembrar do mais famoso documentário já feito sobre massacres em escolas com armas de fogo. Tiros em Columbine (2002), de Michael Moore, reflete com cinismo, ironia e até uma pitada de humor negro como a sociedade norte-americana trata a questão do porte de armas nos Estados Unidos. O filme parte do massacre de 20 de abril de 1999, no Condado de Jefferson, Colorado, quando os estudantes Eric Harris, de 18 anos, e Dylan Klebold, de 17, entraram no Instituto Columbine, onde estudavam, e atiraram contra seus colegas e professores. Três anos depois, o documentário ganhou as telas do cinema, descortinando o sistema de venda de armas nos Estados Unidos e denunciando a facilidade com que qualquer cidadão daquele país adquire - pessoalmente ou até pelo correio - seu próprio armamento, seja nas grandes redes de supermercados, como o Walmart, seja como brinde de uma caderneta de poupança.
O filme de Moore não funciona apenas para ilustrar a “distante” realidade norte-americana, mas também serve como motivo de reflexão sobre o cotidiano brasileiro, assim como a tragédia desta quinta-feira no Realengo. Para começo de conversa, o que se deve discutir não é a religião de um assassino, mas sim a facilidade do acesso a armas de fogo. Por aqui, mesmo ilegal, o porte de armas faz 40 mil vítimas ao ano. Muitas delas não vão parar nas páginas de jornal ou na tela da televisão. Só ficam marcadas na memória as tragédias de repercussão televisiva e com sacrifício de inocentes, a exemplo do sequestro de um tal Ônibus 174, que aconteceu no mesmo Rio de Janeiro do massacre no colégio deste 7 de abril. E aos que acham que armas de fogo são simples instrumentos de defesa, aí vão alguns dados.
A maior parte das mortes por armas de fogo acontecem por motivos banais: brigas de bar, de torcida, desavenças, ciúmes. Com uma arma ao alcance da mão, um momento de irritação passageira transforma-se em uma tragédia cujas consequências se prolongam para o resto da vida. Segundo dados da polícia civil, por dia 95 brasileiros são vítimas de armas de fogo. Isso significa dizer que a cada 15 minutos, uma vida é perdida no País. Cerca de 63,9% dos homicídios cometidos são praticados com arma de fogo, conforme números do Banco de Dados do Sistema Único de Saúde. Pior, mais de 70% das armas usadas em crimes entre 1999 e 2005 no Rio de Janeiro pertenciam a cidadãos de bem e caíram nas mãos dos bandidos em assaltos e outros crimes, segundo pesquisa da Secretaria Estadual de Segurança Pública.
Mesmo assim, no referendo de 2005, em que a população brasileira tinha o poder de decidir pelo desarmamento, 64% votou “não”. Um claro não à redução da violência. Ao contrário, depois do plebiscito, o número de armas de fogo vendidas no Brasil aumentou 70%. De acordo com a Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército, em 2005, foram vendidas 68 mil armas. Em 2009, esse número chegou a 116,9 mil, quando foram importadas 3,2 mil armas – o triplo do que se importou em 2005.
Tiros em Columbine conseguiu irritar muita gente poderosa no país mais poderoso do mundo. Não por acaso, Moore faturou um Oscar pelo filme e passou a fazer uma série de documentários de denúncia – um inclusive sobre o sistema de saúde que consome metade dos medicamentos fabricados no planeta, chamado Sicko. No caso de Columbine, o filme faz uma reflexão de como a violência que tanto aflige a sociedade está ligada à cultura bélica norte-americana. Na América, arma de fogo é sinônimo de proteção contra os que estão lá fora ameaçando o império. (E não é como muitos pensam por aqui?) É como se todos estivessem prontos para atacá-los, sentimento que passou a ser potencializado após os atentados de 11 de setembro – que Moore também retratou dois anos mais tarde em Fahrenhet 9/11. Fica evidente na obra de Michael Moore que a cultura do medo é a responsável pela aterrorizante média anual de 11 mil americanos mortos por armas de fogo, montante baixo se comparado aos índices brasileiros. Quando se fala em 11 de setembro, vem à cabeça a guerra ao terror desencadeada no governo de George W. Bush que fez – e ainda faz, com outros nomes e outras falsas razões que encobrem o motivo real: “petróleo” - milhares de vítimas no Oriente Médio e perseguiu povos árabes acusados de “fundamentalistas” como se fossem insetos.
Um fato relevante no massacre desta manhã, no Rio, é que o frio atirador escolheu suas vítimas: a maioria do sexo feminino. Fontes próximas do assassino revelaram que o rapaz era “um alucinado mental com costumes fundamentalistas”. Como o governo brasileiro vai reagir a isso? Esperamos que não do mesmo modo como fizeram os americanos. Agora, mais urgente do que avaliar as ideologias que levaram o “fundamentalista” Wellington Meneses de Oliveira, de 24 anos, a cometer a barbárie é reabrirmos o debate sobre o porte de armas. No Brasil, até onde se tem conhecimento, não é tão fácil adquirir um 38 como é nos Estados Unidos. Como o ex-aluno da Escola Municipal Tasso da Silveira, conseguiu dois revólveres, um calibre 38 e outro 32, além de um cinturão de balas? Talvez seja hora das autoridades repensarem esse referendo e dos 59.109.265 brasileiros que votaram “não” questionarem o peso dessa escolha.
* Letícia Moreli é jornalista
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