Zoe Martinez e a diferença entre ser Neguinho da Beija-Flor e neguinho do Nelson Piquet

Como comparar o “neguinho” que Piquet empregou para inferiorizar Hamilton, com o nome artístico de Luís Antônio Feliciano Marcondes, ou, Neguinho da Beija-Flor

Nelson Piquet e Lewis Hamilton
Nelson Piquet e Lewis Hamilton (Foto: ABR | Reprodução | Reuters)


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A polêmica continua e esse articulista que vos escreve não foge à uma quando necessário. As falas racistas que o ex-piloto de fórmula 1 e atual chover de jumento, Nelson Piquet, proferiu contra o heptacampeão mundial Lewis Hamilton, ganhou contornos mais problemáticos e não menos racistas. Eu já havia escrito aqui no Brasil 247 um texto sobre o assunto, mas volto à tona e à tônica do caso para falar sobre o cinismo dos racistas e dos simpatizantes à tão nojenta causa, cuja a convicção de superioridade racial expressa através do seu, digamos, raciocínio, beira o escárnio. Não é possível que essas pessoas sejam tão canalham e debochadam a tal ponto. Olha, devo dizer que está ficando insustentável aturar tanta sem vergonhice por parte dessa gente.

A começar pelos comentaristas do programa “Morning Show” da Jovem Klan, uma emissora especializada em debater racismo baseada na opinião de jornalistas brancos, como a cubana naturalizada brasileira Zoe Martinez, uma espécie de chapeuzinho vermelho que a extrema direita bolsonarista adotou como mascote na luta contra o comunismo lobo mau cubano. Inimiga de Fidel Castro e adoradora de Jair Boslonaro, a "menina veneno" da branquitude reacionária brasileira reproduz o pensamento de seus mentores e promove ideias à altura da capacidade cognitiva de seus ouvintes. Como, por exemplo, comparar o “neguinho” que Piquet empregou para tentar inferiorizar Hamilton, com o nome artístico de Luís Antônio Feliciano Marcondes, ou, simplesmente, Neguinho da Beija-Flor, um dos maiores intérpretes de samba-enredo da história do carnaval.

Segundo a Alice cubana do país das maravilhas bolsonaristas, se Nelson Piquet não pode chamar Lewis Hamilton de “neguinho”, Neguinho da Beija-Flor também deveria se sentir ofendido quando o chamam pela alcunha que ele mesmo escolheu como marca. Para piorar, ela enaltece o orgulho que o sambista tem da sua cor, salientando que ele é “tão negro, que na escuridão só dá para ver as gengivas”, arrancando gargalhadas do seu colega Paulo Figueiredo Filho, neto do ex-presidente João Batista Figueiredo, que se apresenta como um bolsonarista ultraconservador e fã de Olavo de Carvalho. Boa coisa não daria para esperar mesmo dessa combinação. A naturalidade com que a fala de Zoe Martinez foi recebida pelos demais debatedores, ilustra bem o pacto narcísico da branquitude. Até Guga Noblat, a voz que destoa do bolsonarismo que permeia e pontua a atração, não questionou a declaração da comentarista.

Eu não sou especialista em linguística, mas aprendi que uma das funções da semântica é o estudo do significado das palavras, analisando, inclusive, o conteúdo e o contexto na qual são empregadas. Baseado nisso, as únicas situações onde o termo "neguinho" é empregado com carinho e afeto, são entre casais ou amigos íntimos. Em todas as demais situações, a intenção é expressar desdém através de uma ideia de inferiorização racial. Querer comparar a fala do Piquet sobre o Hamilton, com o nome artístico do Neguinho da Beija-Flor, é, no mínimo, desonestidade intelectual. É o mesmo que comparar o "gostosa" ou o "safadinha" - para usar termos menos chulos - ditos pelo marido ou namorado na intimidade para uma mulher, com o "gostosa" ou "safadinha" ditos na rua por qualquer homem que passe por ela. Será que Zoe Martinez entenderia que não há maldade em ambas as situações?

A expressão “filho da puta”, do espanhol, hijo de puta, também se encaixa no exemplo acima. Tanto pode ser usada de maneira lúdica durante um bate papo entre amigos, como de maneira ofensiva durante uma discussão. Para mim, todo racista é um filho da puta, mas é diferente de um amigo “filho da puta” que faz uma zoação comigo, por exemplo. Portanto, deixem de ser caras de pau, seus racistas estruturais xexelentos, e parem de tentar justificar o injustificável. Nelson Piquet foi racista e a comentarista cubana da Jovem Pan foi ainda mais. No entanto, um precedente perigoso foi aberto pelo próprio Neguinho da Beija-Flor, ao dizer que não viu maldade na fala de Nelso n Piquet. O que motivou uma foto postada pelo ex-piloto, mostrando o dedo médio e debochando de quem o criticou com razão. Acionou o “chupa, seus otários” e acelerou com seu racismo para receber a bandeirada da vitória.

É importante dizer que, não é porque um preto ou uma preta relativize o racismo, que ele deixa de existir. Se alguém toma um soco na cara e diz que não doeu, não significa que ele não tenha tomado um soco na cara. O posicionamento tomado por Neguinho da Beija-Flor não colabora em nada no combate ao racismo que ele sofreu. Ele mesmo explica que a origem do seu pseudônimo vem de um apelido que recebeu na infância de uma vizinha. Segundo o cantor, a senhora o chamava de “neguinho da vala”, por ele gostar de caçar rãs nas valas próximas de casa. Não creio que isso fosse uma menção elogiosa ou carinhosa a uma criança. Hoje, sendo o maior ca ntor de samba-enredo vivo da nossa história carnavalesca, Neguinho poderia ter usado melhor a sua iconicidade e a potência da sua voz nessa discussão. A minha admiração e respeito pela sua obra e representatividade são grandes demais para considera-lo uma decepção, mas confesso que esperava ouvir saindo de sua garganta aquele grito contagiante de: “Olha os racistas aí gente! Fogo neles!” Fica para o próximo carnaval.

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